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quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Cesário Verde


Aspectos biográficos de Cesário Verde

José Joaquim Cesário Verde nasceu em Caneças, no concelho de Loures, a 25 de Fevereiro de 1855.
O seu pai era lavrador e comerciante, sendo proprietário de uma quinta nas imediações de Lisboa, em Linda-a-Pastora, e de uma loja de ferragens na baixa lisboeta, onde Cesário Verde chegou a trabalhar. Foi nestas actividades que repartiu a sua vida, fazendo do quotidiano o assunto da sua poesia. Desta forma, ia alimentando o seu gosto pela leitura e pela criação literária, embora longe dos meios literários oficiais com os quais nunca se deu bem, o que o levou, por exemplo, a abandonar o Curso Superior de Letras da Faculdade de Letras de Lisboa, que frequentou entre 1873 e 1874, e onde travou conhecimento com figuras da vida literária, como Silva Pinto, que se tornou seu grande amigo e, após a sua morte, compilador da sua obra.
Para além de algumas viagens curtas a Paris e a Londres, a sua vida resumia-se aos caminhos percorridos entre Lisboa e Linda-a-Pastora, e são esses mesmos caminhos e as pessoas desses locais que Cesário Verde reproduz na sua obra.
Aquando da sua entrada para a Faculdade de Letras, estreou-se com várias poesias nos jornais Diário de Notícias, Diário da Tarde, A Tribuna e Renascença, acolhidos com críticas quase sempre desfavoráveis. Em 1874, foi anunciada a edição de um livro de Cesário Verde, o que, no entanto, não aconteceu. Esta falta de estímulo da crítica e um certo mal-estar relativamente ao meio literário, fizeram com que Cesário Verde deixasse de publicar em jornais.
Assim, a partir de 1879, Cesário Verde empenha-se cada vez mais no auxílio nas tarefas da loja de ferragens e da exploração da quinta. Em 1872, a sua irmã morre, seguindo-se, dez anos depois, o seu irmão, ambos de tuberculose. Foi esta a doença que viria a vitimar igualmente o poeta, a 19 de Julho de 1886, apesar das várias tentativas de convalescença.
Só em 1887 foi organizada, por iniciativa de Silva Pinto, uma compilação dos seus poemas com o título de O Livro de Cesário Verde.


Correntes literárias influentes

Cesário Verde era, antes de mais, um realista que utilizou também o impressionismo nos seus poemas, já que materializa o abstracto, insiste na impessoalidade, utiliza paisagens e locais para traduzir estados psicológicos, dá espírito a objectos.
Além disso, Cesário Verde e as suas composições poéticas enquadram-se também no Parnasianismo que defende “a arte pela arte” e que foi iniciado em França no século XIX.
Esta corrente literária procura um acabamento perfeito através de poesias descritivas. É uma reacção contra o Romantismo, defendendo a objectividade em detrimento do sentimentalismo, e a perfeição formal em detrimento da indisciplina da linguagem. È um retorno ao racionalismo e uma busca pela impessoalidade.
Através da junção do realismo, com o impressionismo e o Parnasianismo, os poemas de Cesário Verde tornam-se autênticas representações pictóricas da realidade devido à utilização de uma linguagem colorida, à musicalidade e à perfeição formal.
Desta forma, Cesário Verde preocupa-se bastante em apresentar o quotidiano da realidade de uma forma realista, clara, objectiva e concreta. Procura descrever o mundo com objectividade, tentando captar os mais ínfimos pormenores de forma a poder, depois, transmitir percepções sensoriais e partir para uma subjectividade sóbria.


Flores Velhas[1]

Fui ontem visitar o jardinzinho agreste,
Aonde tanta vez a lua nos beijou,
E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste,
Soberba como um sol, serena como um voo.

Em tudo cintilava o límpido poema
Com ósculos rimado às luzes dos planetas;
A abelha inda zumbia em torno da alfazema;
E ondulava o matiz das leves borboletas.

Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,
A imagem que inspirava os castos madrigais;
E as vibrações, o rio, os astros, a paisagem,
Traziam-me à memória idílios imortais.

Diziam-me que tu, no flórido passado,
Detinhas sobre mim, ao pé daquelas rosas,
Aquele teu olhar moroso e delicado,
Que fala de langor e de emoções mimosas;…

E, ó pálida Clarisse, ó alma ardente e pura,
Que não me desgostou nem uma vez sequer,
Eu não sabia haurir do cálix da ventura
O néctar que nos vem dos mimos da mulher.

Falou-me tudo, tudo, em tons comovedores,
Do nosso amor, que uniu as almas de dois entes;
As falas quase irmãs do vento com as flores
E a mole exalação das várzeas rescendentes.

Inda pensei ouvir aquelas coisas mansas
No ninho de afeições criado para ti,
Por entre o riso claro, e as vozes das crianças,
E as nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.

Lembrei-me muito, muito, ó símbolo das santas,
Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas,
E sob aquele céu e sobre aquelas plantas
Bebemos o elixir das tardes perfumadas.

E nosso bom romance escrito num desterro,
Com beijos sem ruído em noites sem luar,
Fizeram-mo reler, mais tristes que um enterro,
Os goivos, a baunilha e as rosas-de-toucar.

Mas tu agora nunca, ah! Nunca mais te sentas
Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,
E eu não te beijarei, às horas sonolentas,
Os dedos de marfim, polidos e delgados...

Eu, por não ter sabido amar os movimentos
Da estrofe mais ideal das harmonias mudas,
Eu sinto as decepções e os grandes desalentos
E tenho um riso mau como o sorrir de Judas.

E tudo enfim passou, passou como uma pena
Que o mar leva no dorso exposto aos vendavais,
E aquela doce vida, aquela vida amena,
Ah! nunca mais virá, meu lírio, nunca mais!

Ó minha boa amiga, ó minha meiga amante!
Quando ontem eu pisei, bem magro e bem curvado,
A areia em que rangia a saia roçagante,
Que foi na minha vida o céu aurirrosado,

Eu tinha tão impresso o cunho da saudade,
Que as ondas que formei das suas ilusões
Fizeram-me enganar na minha soledade
E as asas ir abrindo às minhas impressões.

Soltei com devoção lembranças inda escravas,
No espaço construí fantásticos castelos,
No tanque debrucei-me em que te debruçavas,
E onde o luar parava os raios amarelos.

Cuidei até sentir, mais doce que uma prece,
Suster a minha fé, num véu consolador,
O teu divino olhar que as pedras amolece,
E há muito me prendeu nos cárceres do amor.

Os teus pequenos pés, aqueles pés suaves,
Julguei-os esconder por entre as minhas mãos,
E imaginei ouvir ao conversar das aves
As célicas canções dos anjos teus irmãos.

E como na minha alma a luz era uma aurora,
A aragem ao passar parece que me trouxe
O som da tua voz, metálica, sonora,
E o teu perfume forte, o teu perfume doce.

Agonizava o Sol gostosa e lentamente,
Um sino que tangia, austero e com vagar,
Vestia de tristeza esta paixão veemente,
Esta doença enfim, que a morte há-de curar.

E quando me envolveu a noite, noite fria,
Eu trouxe do jardim duas saudades roxas,
E vim a meditar em quem me cerraria,
Depois de eu morrer, as pálpebras já frouxas.

Pois que, minha adorada, eu peço que não creias
Que eu amo esta existência e não lhe queira um fim;
Há tempos que não sinto o sangue pelas veias
E a campa talvez seja afável para mim.

Portanto, eu, que não cedo às atracções do gozo,
Sem custo hei-de deixar as mágoas deste mundo,
E, ó pálida mulher, de longo olhar piedoso,
Em breve te olharei calado e moribundo.

Mas quero só fugir das coisas e dos seres,
Só quero abandonar a vida triste e má
Na véspera do dia em que também morreres,
Morreres de pesar, por eu não viver já!

E não virás, chorosa, aos rústicos tapetes,
Com lágrimas regar as plantações ruins;
E esperarão por ti, naqueles alegretes,
As dálias a chorar nos braços dos jasmins!

Estrutura interna
Esta composição poética pode ser considerada uma elegia, já que exprime sentimentos tristes e dolorosos, em consequência da saudade provocada no eu poético por um amor passado. Este poema é um monólogo endereçado a uma mulher, Clarisse, que se encontra ausente. É apresentado um “jardinzinho agreste” onde o sujeito poético passou momentos de grande felicidade.
Podemos dividir o poema em três partes lógicas.
A primeira engloba as primeiras nove estrofes, onde o sujeito poético relembra a sua recente visita ao jardim, associando os elementos da Natureza à própria experiência amorosa que ali viveu (“E as vibrações, o rio, os astros, a paisagem, / Traziam-me à memória idílios imortais…”). Também nesta parte se compreende um certo arrependimento do eu poético por não ter desfrutado devidamente daquele amor (“Eu não sabia haurir do cálix da ventura / O néctar que nos vem dos mimos da mulher.”).
A segunda parte vai da décima à décima quarta quadra, na qual o sujeito poético como que se apercebe, com arrependimento, de que o tempo não pode voltar atrás e que nunca reaverá aquele amor (“Mas tu agora nunca, ah! Nunca mais te sentas / Nos bancos de tijolo…”). Assim, recorre à autocrítica e confessa não ter compreendido a coerência do silêncio do amor passado (“Eu, por não ter sabido amar os movimentos / Da estrofe mais ideal das harmonias mudas, …”). Faz também uma menção ao facto de as memórias, as “Flores Velhas”, que naquele momento estavam a ressurgir, terem sido apagadas temporariamente (“E tudo enfim passou, passou como uma pena / Que o mar leva no dorso exposto aos vendavais, …”).
Este desgosto faz com que recorde as características da amada, passando mesmo a sentir ilusoriamente a presença desta, o que acontece na terceira parte do poema, que vai da décima quinta à décima oitava quadra.
A quarta parte do poema estende-se desde a décima nona ao final do poema, onde o eu poético revela o seu desejo de morrer e ironiza, dizendo que quer que isso aconteça na véspera da morte da sua amada, para que esta morra de desgosto.
O contraste entre a cidade e o campo é um dos temas fundamentais da poesia de Cesário Verde e revela-nos, por um lado, o seu amor ao rústico e ao natural e, por outro lado, uma certa renúncia à perversidade e aos valores urbanos a que, no entanto, adere.
Neste poema, também esta temática é abordada visto que a experiência recordada se passa num “jardinzinho agreste”, o que nos dá a impressão de ser um local isolado, afastado pela cidade, e para onde o sujeito poético e a amada fugiam quando pretendiam estar a sós. O facto de se chamar “desterro” a este jardim, indica que este era um local solitário, mas que permitia escapar ao confinamento da cidade.
Ao revisitar esse jardim, as memórias desse amor agudizaram-se porque o próprio jardim ainda não o tinha esquecido. Este amor só seria possível no campo, longe da cidade. Isto pode ser constatado através dos versos: “Eu trouxe do jardim duas saudades roxas, / E vim a meditar em quem me cerraria, / Depois de eu morrer, as pálpebras já frouxas.”, em que se verifica que após abandonar o campo, o sujeito poético é invadido por pensamentos mórbidos, acabando a sua felicidade, que neste caso, se prendia com as recordações de um amor passado. A cidade é, então, sinónimo de ausência de amor e, portanto, de vida.
Este contraste entre campo e cidade, entre vida e morte, está em tudo relacionado com o facto de o poeta ter sido afastado do campo na sua infância e, depois, ter sido enfraquecido pela cidade, o que fez com que, quando voltava para o campo, encontrasse sempre a energia perdida.
Outra das temáticas de Cesário Verde abordadas neste poema é a imagética feminina, relacionada também com a temática anterior.
A mulher representada neste poema era do campo, sendo retratada como sendo frágil, de olhar “moroso e delicado” de “emoções mimosas”, de “alma ardente e pura”, “boa amiga”, “meiga amante” e uma “pálida mulher, de longo olhar piedoso”. Esta mulher tem, portanto, grandes qualidades, não pertencendo ao mundo da cidade, o que está de acordo com a imagem denegrida que Cesário Verde tem da cidade. Assim, a referida mulher é o sentido da vida do sujeito poético, sendo também a razão do seu desejo de morrer quando este regressa à cidade.
O “néctar”, referido na quinta estrofe, que, para além de ser um suco produzido pelas plantas, é a bebida dos deuses, segundo a mitologia, associado ao “cálix”, que, para além de ser uma estrutura situada abaixo das pétalas numa flor, é também um vaso sagrado, vai dar uma imagem de beleza e pureza à mulher campestre, mas também uma imagem mística e superior.
Em termos de correntes literárias, e como já foi referido, Cesário Verde enquadra-se no Parnasianismo, o que se pode verificar neste poema pelas muitas descrições, acompanhadas de uma rica percepção sensorial e de uma adjectivação abundante, rica e expressiva, que, no entanto, não deixam de ser objectivas, claras e concretas.
Obviamente que também existe uma dimensão subjectiva neste poema que decorre da transfiguração das descrições do jardim em outras descrições, nomeadamente da sua amada e do seu estado de espírito. Cesário Verde dá-nos uma ideia muito clara do jardim e depois faz com que vários pormenores desse mesmo jardim traduzam o seu estado psicológico (“E como na minha alma a luz era uma aurora…”) e sirvam também para descrever a sua amada (“Soberba como um sol, serena como um voo.”).


Unidade forma – conteúdo
Neste poema de Cesário Verde, ao nível de linguagem, o registo é um misto de língua familiar e cuidada, pois, apesar de existir uma intimidade evidente com o “tu” ausente, existe uma certa preocupação na escolha do vocabulário, que é diversificado, e na construção gramatical (“A areia em que rangia a saia roçagante, / Que foi na minha vida o céu aurirrosado…”).
Relativamente ao vocabulário, pode dizer-se que há o emprego de vocábulos concretos, principalmente pertencentes ao campo lexical de jardim, como “abelha”, “alfazema”, “borboletas”, “rio”, “rosas” ou “néctar”.
Ao nível da pontuação, verifica-se que cada quadra engloba uma única frase. Isto permitia que pudesse tratar de determinado tema numa frase (numa quadra) e depois mudar para outro assunto. As frases acabam, na maior parte dos casos, com um ponto final, visto que este poema é descritivo, sendo maioritariamente constituído por frases declarativas. Contudo, existem também algumas exclamações a acompanhar interjeições (“Ah!”), que revelam, principalmente, o arrependimento do sujeito poético, e em invocações da amada (“Ó minha boa amiga, ó minha meiga amante!”). As últimas duas estrofes terminam também com um ponto de exclamação de modo a que a conclusão do poema tenha um tom elevado e marcante.
Este poema é bastante rico em recursos expressivos. Os que são utilizados neste poema são:
- a adjectivação expressiva e abundante (“Os dedos de marfim, polidos e delgados...”), que está de acordo com o facto de ser um poema descritivo;
- a aliteração (“A areia em que rangia a saia roçagante / …aurirrosado”), que imprime uma maior musicalidade ao poema;
- a metáfora e a imagem (“…a lua nos beijou…”, “Nos bancos de tijolo em musgo atapetados…”);
- a sinestesia (“Por entre o riso claro…”, “Bebemos o elixir das tardes perfumadas.”);
- o assíndeto (“O som da tua voz, metálica, sonora…”);
- a enumeração (“E as vibrações, o rio, os astros, a paisagem…”);
- a comparação (“Soberba como um sol, serena como um voo.”),
- o animismo (“Que o mar leva no dorso exposto aos vendavais,…”);
- a apóstrofe (“Ó minha boa amiga, ó minha meiga amante!”),
- a hipálage (“… às horas sonolentas…”);
- a ironia (“Na véspera do dia em que também morreres, / Morreres de pesar, por eu não viver já!”), que serve para interromper o sentimentalismo;
- a repetição (“E o teu perfume forte, o teu perfume doce.”, “Falou-me tudo, tudo…”);
- o hipérbato (“Eu, por não ter sabido amar os movimentos / Da estrofe mais ideal das harmonias mudas, / Eu sinto as decepções e os grandes desalentos…”);
- o diminutivo (“jardinzinho”), revelando ternura;
- o polissíndeto (“…e as vozes das crianças, / E as nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.”);
- a hipérbole (“…dedos de marfim…”);
- o eufemismo (“Que eu amo esta existência e não lhe queira um fim…”);
- a personificação (“As dálias a chorar nos braços dos jasmins!");
- a exclamação (“Morreres de pesar, por eu não viver já!”).

Estrutura externa

O poema é composto por vinte e quatro estrofes que são quadras (cada uma tem quatro versos). As estrofes são constituídas por versos alexandrinos (de doze sílabas), como se pode depreender através da seguinte análise do verso:“A / go / ni / za / va o / Sol / gos / to / sa e / len / ta / men / te, 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12Um / si / no / que / tan / gia, / aus / te / ro e / com / va / gar, 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12Ves / tia / de / tris / te / za es / ta / pai / xão / ve / e / men / te, 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12Es / ta / doen / ça en / fim, / que a / mor / te / há / -de / cu / rar” 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

O esquema rimático é /ABAB/ em cada estrofe, repetindo-se esta sequência ao longo de todo o poema, havendo portanto rima cruzada.
A rima é, na sua maioria, consoante visto que existe uma correspondência total de sons a partir da última vogal tónica de cada um dos versos que rimam (pena / amena, vendavais / mais). Existem, no entanto, excepções em que a rima é toante, havendo correspondência na vogal tónica mas não sendo a rima total a partir daí (beijou / voo, ti / nutri).
Ainda em termos de rima, e analisando as estrofes no seu conjunto, pode-se dizer que existe uma predominância não muito significativa da rima rica (escravas / debruçavas, castelos / amarelos, prece / amolece, consolador / amor…) sobre a rima pobre (santas / plantas, inspiradas / perfumadas, desterro / enterro, atapetados / delgados…).


Ó áridas Messalinas, [1]

Ó áridas Messalinas
não entreis no santuário,
transformareis em ruínas
o meu imenso sacrário!
Oh! A deusa das doçuras,
a mulher! eu a contemplo!
Vós tendes almas impuras,
não me profaneis o templo!

A mulher é ser sublime,
é conjunto de carinhos,
ela não propaga o crime,
em sentimentos mesquinhos.

Vós sois umas vis afrontas,
que nos dão falsos prazeres,
não sei se sois más se tontas,
mas sei que não sois mulheres!


Estrutura interna
É conveniente, antes de tudo, esclarecer o que é uma Messalina, já que é uma palavra bastante relevante para a compreensão de todo o poema.
No Império Romano, existiu uma imperatriz, Valéria Messalina, mulher do imperador Cláudio, que ficou famosa pela sua crueldade e pela sua vida libertina, devassa e promíscua, acabando por ser executada por ordem do marido. Deste facto histórico, surge a palavra “messalina”, utilizada, num sentido figurado, para referenciar alguma mulher que leve uma vida como a de Valéria Messalina.
Muito claramente, os temas deste poema são o amor e a sedução, tendo a mulher por objecto. O sujeito lírico faz uma crítica às mulheres que levam uma vida devassa, pedindo para que não o seduzam.
Esta composição poética pode ser dividida em três porções lógicas.
A primeira porção é a primeira quadra, onde o eu poético pede às “áridas Messalinas”, ou seja, às mulheres depravadas e desprovidas de interesse, para que não invadam o “santuário”, referindo-se à sua vida regrada, cuja integridade seria posta em causa caso fosse seduzido por elas.
A segunda parte lógica do poema são a segunda e terceira estrofe onde o sujeito poético solta frases de veneração e descreve o seu conceito de mulher. Assim, para ele, a mulher seria um ser puro, “sublime”, que não transforma o amor num sentimento desprezível.
Na terceira parte do poema, ou seja, na quarta e última estrofe, o sujeito poético utiliza a definição de mulher que apresentou na segunda parte do poema para a comparar com as Messalinas, dizendo que estas, ao contrário das “mulheres”, são falsas, impuras, e que, portanto, não podem ser consideradas mulheres, apesar de o eu poético não saber se a vida que levam se deve à sua falta de juízo ou à sua crueldade.
As temáticas de Cesário Verde mais evidentes neste poema são o símbolo da mulher e a humilhação sentimental.
É apresentada a Messalina, a mulher fatal que desperta o desejo do eu lírico mas que o arrasta também para a morte, num sentido figurado (“…transformareis em ruínas / o meu imenso sacrário!”). Esta faz parte de um dos principais contrastes que Cesário faz ao longo de toda a sua obra, o “mulher fatal / mulher angélica”, estando, normalmente, a primeira estreitamente relacionada com a cidade, e a segunda com o campo. Assim, as mulheres citadinas, como as Messalinas, eram frias, opressoras e artificiais, símbolo do desenvolvimento urbano. Além disso, também surge a mulher objecto, vista enquanto estímulo dos sentidos carnais, sensuais, como impulso erótico.
Também neste poema é tratada a humilhação afectiva visto que a mulher fatal, bela, artificial, poderosa e desumana faz com que o sujeito poético a deseje e a receie, levando a que este se sinta humilhado e seja compelido a controlar os seus impulsos amorosos.
A nível de correntes literárias influentes, percebe-se que mais uma vez está presente o Parnasianismo visto que este poema não tem muito de subjectivo, é muito directo e os termos utilizados são bastante fáceis de entender, recorrendo somente à transfiguração da realidade. Não são apresentados quaisquer ideais, mas coisas que são observadas a cada instante, o que é exemplo do carácter impessoal das composições parnasianas.
Este poema foi escrito em 1873, período em que Cesário Verde elaborou bastantes poemas que têm o amor e a mulher por temas. Nesta altura, Cesário Verde era ainda um adolescente, tinha 18 anos, mas a cidade e o campo constituíam já duas facetas da sua vida.
Assim, Cesário Verde produziu poemas que falavam do campo como representante de um amor vivido no passado (como em “Flores Velhas”) ou de um amor idílico, e que falavam da cidade como símbolo do erotismo e da sedução, que, como já foi analisado neste poema, o eu poético não considera sinónimos de verdadeiro amor, mas antes “sentimentos mesquinhos”. Neste poema, particularmente, é feita, em tom jocoso, uma dessacralização da mulher da cidade, pela qual terá tido alguns amores durante a sua adolescência.

Unidade forma – conteúdo
Nesta composição poética o vocabulário é predominantemente concreto e relaciona-se sobretudo com a religião (”templo”, “sacrário”, “santuário”, “deusa”).
São utilizados bastantes pontos de exclamação ao longo do poema que são usados em frases imperativas (“…não me profaneis o templo!”), em conjunto com interjeições (“Oh!”) e também para exprimir admiração, respeito, devoção (neste caso, à mulher pura, “Oh! A deusa das doçuras, / a mulher! eu a contemplo!”) e aversão (“…mas sei que não sois mulheres!”).
Pode encontrar-se um único ponto final, no final da terceira quadra, já que esta é a estrofe em que se procede à descrição da mulher angélica.
Neste poema, os recursos estético-estilísticos existentes são:
- a apóstrofe (“Ó áridas Messalinas…”);
- a metáfora (“…o meu imenso sacrário!”);
- a aliteração, (“…não sei se sois más se tontas, / mas sei que não sois mulheres!”);
- o hipérbato (“Oh! A deusa das doçuras, / a mulher! eu a contemplo!”);
- a hipérbole (“…transformareis em ruínas…);
- a sinédoque (“A mulher… é conjunto de carinhos…”);
- a exclamação (…não me profaneis o templo!”, “…mas sei que não sois mulheres!”), que serve para intensificar a emoção.
A linguagem utilizada é predominantemente informal, existindo, no entanto, uma selecção cuidada de vocabulário. A linguagem é prosaica, ou seja, aproxima-se da prosa e da linguagem do quotidiano.

Estrutura externa
A composição poética é constituída por quatro estrofes (quadras), sendo estas constituídas por versos de sete sílabas, como se verifica pela seguinte análise de versos:


“A / mu / lher / é / ser / su / bli / me, 1 2 3 4 5 6 7é / con / jun / to / de / ca / ri / nhos,1 2 3 4 5 6 7e / la / não / pro / pa / ga o / cri / me,1 2 3 4 5 6 7 em / sen / ti / men / tos / mes / qui / nhos.” 1 2 3 4 5 6 7
O esquema rimático é //ABAB/CDCD/EFEF/GHGH//, sendo a rima cruzada.



As rimas pobres (Messalinas / ruínas, santuário / sacrário, afrontas / tontas, prazeres / mulheres) e as rimas ricas (doçuras / impuras, contemplo / templo, sublime / crime, carinhos / mesquinhos) existem em igual quantidade. Verifica-se que as rimas pobres se encontram na primeira e na última estrofe e as rimas ricas se encontram nas outras duas estrofes.
As rimas são todas consoantes, à excepção de prazeres / mulheres.


Manias![1]

O mundo é velha cena ensanguentada,
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz, – hoje uma ossada, –
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.

Aos domingos a deia já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,

Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!

Estrutura interna
Este poema, tal como o já analisado “Ó áridas Messalinas”, tem como temas o amor e a mulher. O eu poético conta a história de um sujeito que conhecia que era amante de uma mulher que, apesar de possuir mau aspecto, era prepotente e exercia sobre ele uma grande influência.
Este poema, um soneto italiano, pode ser dividido em três partes lógicas.
A primeira parte é a primeira quadra, na qual o sujeito lírico faz uma pequena introdução, dando a sua opinião sobre o mundo e a vida. Faz um contraste um pouco lúgubre entre a tragédia e a comédia de que é feita a sociedade. Se, por um lado, existem as pessoas excessivamente preocupadas que encaram a vida como se fosse uma desgraça descomedida (“O mundo é velha cena ensanguentada…”), por outro lado, existem os que levam, ridiculamente, a vida de uma forma irreflectida (“A vida é chula farsa assobiada.”).
Daí parte para a segunda parte lógica do poema, iniciando o relato da história de um rapaz já falecido (“…hoje uma ossada…”), a qual serve de suporte para a sua visão jocosamente negra do mundo, já que trata do amor deste rapaz para com uma mulher muito pretensiosa e que exercia no rapaz uma influência tal que este se mostrava receosamente obediente (“…o dengue, em atitude receosa…”).
Na terceira parte do soneto (última estrofe), dá-se a apresentação da ideia principal, ao que se chama “fechar com chave de ouro”. O sujeito poético critica, de modo trocista, a submissão daquele rapaz perante aquela mulher, evidenciando a devoção a Deus por parte da mulher (“…que a amante ia ouvir missa!”) e a devoção àquela mulher por parte do rapaz (“…sujeição canina mais submissa…”).
As temáticas mais significativas abordadas por Cesário Verde neste poema são a humilhação sentimental e a imagética feminina.
O rapaz de quem se fala no poema é, então, o símbolo da humilhação sentimental, já que é totalmente dominado pela mulher que ama, apesar de esta ter mau aspecto (“esquálida e chagada”) e ser mais velha que este (“…já rugosa…”), o que acentua ainda mais o vexame deste rapaz.
Tal como em “Flores Velhas” e em “Ó áridas Messalinas”, também esta composição poética se refere a uma mulher, que, neste caso, é uma mulher fria, perversa, altiva, poderosa, que só deve explicações a Deus (“O livro com que a amante ia ouvir missa!”), vaidosa, afectada e egocêntrica (“…cheia de jactância quixotesca.”), talvez de meia-idade (“…a deia já rugosa…”). Esta imagem da mulher é o símbolo da artificialidade citadina. Desta forma, mais uma vez a cidade está presente no poema na forma de mulher que serve para retratar os valores decadentes e a violência social.
Mais uma vez o Parnasianismo se encontra presente como corrente literária influente. Recorre-se bastantes vezes à descrição, (nomeadamente do rapaz, da mulher e do mundo), usando vocábulos concretos e claros. Está presente uma clara busca pela perfeição que se denota pela constante recorrência a vocabulário e a recursos estético-estilísticos que permitam uma maior expressividade. Existe também uma despersonalização da poesia, muito pelo facto de a história ser narrada na terceira pessoa. Além disto, tudo é descrito conforme realmente acontece.
Este poema é do mesmo período de “Ó áridas Messalinas”, tempo em que Cesário Verde se dedicou a elaborar poemas cujos temas eram o amor e a mulher. Na maior parte dos casos, estas composições poéticas são de tom satírico, que é o caso de “Manias!”. Isto é claramente evidenciado pela ironia presente no próprio título do poema.
A envolvência de Cesário neste poema é evidente, visto que existe não só a presença da cidade como elemento negativo, mas também da mulher como causa de humilhação, o que explica o facto de nesta altura, 1874, Cesário Verde ser um jovem cuja mentalidade era, em parte, influenciada pelo generalizado fascínio exercido pela mulher fatal e poderosa na sensibilidade do tempo. Este aspecto está também presente em “Ó áridas Messalinas”.

Unidade forma – conteúdo
O vocabulário utilizado neste poema é bastante variado e um pouco complicado já que não faz parte da linguagem geralmente usada no nosso quotidiano (“jactância”, “picaresca”, “pedantesca”, “quixotesca”, “deia”, “dengue”).
Relativamente à pontuação, pode-se verificar que, como cada uma das quadras encerra uma frase, os versos destas terminam com uma vírgula ou com ponto e vírgula, excepto o último verso que termina com ponto final, dando assim um término à frase. Também cada um dos versos dos tercetos encerra com uma vírgula, já que os dois tercetos englobam uma única frase, à excepção do último verso que encerra com o único ponto de exclamação do poema, já que este é o verso que revela de forma mais clara a ironia inerente ao texto.
Também se verifica o emprego do hífen na segunda quadra (“…-hoje uma ossada - …”) que tem como função a introdução de um pequeno à parte que nos dá uma informação suplementar.
Comparando “Manias!” com os outros dois poemas anteriormente analisados pode-se constatar que, no que diz respeito à linguagem, este poema é mais complexo do que os outros dois, o que é devido, em grande parte, aos vocábulos pouco usuais, como já foi referido. Assim, pode-se dizer que a linguagem é cuidada. No entanto, a construção sintáctica das frases é simples.
As principais figuras de estilo utilizadas são:
- a metáfora (“Na sujeição canina mais submissa…”);
- a adjectivação expressiva e abundante (“Perversíssima, esquálida e chagada…”);
- a hipálage (“Levava na tremente mão nervosa…”);
- a enumeração (“Perversíssima, esquálida e chagada…”);
- a ironia (“O livro com que a amante ia ouvir missa!”);
- o assíndeto (“O mundo é velha cena ensanguentada, / Coberta de remendos, picaresca…”);
- a imagem (“O mundo é velha cena ensanguentada, / Coberta de remendos, picaresca…”);
- o disfemismo (“…hoje uma ossada…”);
- a exclamação (“O livro com que a amante ia ouvir missa!”).

Estrutura externa
Este poema é um soneto italiano, sendo constituído por duas quadras e dois tercetos. Possui, portanto, catorze versos, que são de dez sílabas, o que se pode confirmar pela seguinte análise:
“O / mun / do é / ve / lha / ce / na en / san / guen / ta / da, 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10Co / ber / ta / de / re / men / dos, / pi / ca / res / ca; 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10A / vi / da é / chu / la / far / sa a / sso / bi / a / da,1 2 3 4 5 6 7 8 9 10Ou / sel / va / gem / tra / gé / dia / ro / ma / nes / ca.” 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

O esquema rimático do soneto é//ABAB/ABAB/CDC/DCD//, pelo que existe rima cruzada. Todas as rimas são consoantes porque existe sempre correspondência de sons a partir da última vogal tónica.
A maior parte das rimas são pobres (picaresca / romanesca, rugosa / receosa, pedantesca / quixotesca, receosa / nervosa), existindo algumas rimas ricas (ossada / chagada, preguiça / submissa, submissa / missa).


Conclusão


Cores, formas, luz. São estas as impressões que se retêm em mente após esta leitura e análise de três dos vários poemas elaborados por Cesário Verde. Ou pelo menos é isso que espero que tenha acontecido aos leitores deste trabalho de exploração.
A forma como estes poemas foram elaborados, que parecem autênticas “pinturas em prosa”, permite uma boa compreensão das paisagens e dos episódios que o poeta nos pretendeu comunicar.
“Flores Velhas”, “Ó áridas Messalinas” e “Manias!” são bons e importantes exemplos das temáticas tratadas por Cesário ao longo da sua (curta) carreira poética, nomeadamente a mulher, a humilhação sentimental e, ainda, o sempre presente binómio cidade/campo. Existem ainda outras, como a questão social e a humilhação estética, que não foram abordadas nestes poemas, o que não deixa de ser um incentivo para uma leitura mais extensa da obra completa de Cesário Verde.
Assim, espero que este trabalho tenha conseguido alcançar os objectivos inicialmente propostos. Espero que tenha contribuído para um maior conhecimento acerca da obra e vida de Cesário Verde, no geral, e para uma melhor compreensão das três obras analisadas, em particular.
Em suma, é do meu desejo que deste trabalho possam ser colhidos dividendos positivos, como o despertar da curiosidade acerca da obra deste autor e o melhor entendimento relativamente às suas ideias, temáticas e formas de expressão.


Bibliografia


AAVV (2004). Diciopédia 2005, Porto: Porto Editora Multimédia.
Borregana, António Afonso (1995). O Texto em Análise, 5ª Edição, Lisboa: Texto Editora.
Macedo, Helder (1999). Nós. Uma leitura de Cesário Verde, 4ª Edição, Lisboa: Presença.
Pinto, José Manuel de Castro e Maria do Céu Vieira Lopes (2002). Gramática do Português Moderno, Lisboa: Plátano Editora.
Rodrigues, Fátima (1998). Cesário Verde: Recepção oitocentista e poética, Lisboa: Edições Cosmos.
Verde, Cesário (1987). O Livro de Cesário Verde, Aveiro: Livraria Estante Editora.
Veríssimo, Artur (2004). Ser em Português 11, Porto: Areal Editores.
http://www.officinadopensamento.com.br/
http://www.portodeabrigo.pt/
http://www.purl.pt/



[1] Este poema foi publicado n’O Diário da Tarde em 1874, no Porto.
[1] Este poema foi publicado no Diário de Noticias em 1873, em Lisboa.
[1] Este poema foi publicado n’O Jornal da Tarde em Dezembro de 1874, no Porto.