A introdução da mitologia, do maravilhoso pagão, era própria do género épico, só que em Camões a mitologia greco-latina introduzida ultrapassa a função de simples adorno poético exigido pela regra de “imitação”. A partir das estrofes 19-20 do Canto I, os planos da viagem e dos deuses vão acompanhar-se sempre, intimamente relacionados, constituindo, no seu conjunto, a acção central da obra.
A realização deste 1.º Concílio marca o momento exacto em que os deuses são chamados a intervir, pronunciando-se sobre o futuro dos homens que navegam em mares até então desconhecidos, num empreendimento novo, extremamente importante, no qual vêm dando mostras de coragem e valor ao enfrentarem múltiplos perigos. Reconhecendo o valor de tais humanos, os deuses reúnem, a pedido de Júpiter, para deliberar se devem ou não ajudar os navegadores a encontrar um porto amigo em que possam repousar e recuperar alento para prosseguirem uma viagem que os Fados haviam já determinado viesse a ser coroada com êxito.
Gera-se no Olimpo, onde os deuses se reuniram, grande desavença. Dois “partidos” se formam: um, encabeçado pela Deusa do amor, Vénus, que defende que os portugueses sejam ajudados; outro, por Baco, Deus das paixões, dos vícios, do vinho, que é contrário a tal ajuda. A discussão é violenta, como expressivamente no-lo descreve Camões na estrofe 35:
"Qual Austro fero ou Bóreas, na espessura,
De silvestre arvoredo abastecida,
Rompendo os ramos vão da mata escura,
Com impito e braveza desmedida;
Brama toda a montanha, o som murmura,
Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
Tal andava o tumulto, levantando
Entre os deuses, no Olimpo consagrado."
Marte, Deus da guerra e velho apaixonado de Vénus, têm então uma intervenção decisiva em que incita Júpiter a não voltar atrás com a decisão que já havia tomado de ajudar os navegadores portugueses:
"Não tornes por detrás, pois é fraqueza
Desistir-se de cousa começada"
As razões que movem os diversos deuses na sua tomada de posição são devidamente apontadas por Camões. Júpiter, limita-se a cumprir, ou antes, a fazer cumprir as decisões dos Fados, pois sabe, à partida, que é inútil lutar contra eles; aceita-as, de resto, pois reconhece o valor dos lusitanos.
Quanto a Vénus, ela imagina que, ajudando os portugueses, poderá vir a lucrar: eles são descendentes dos romanos e, portanto, de Eneias, seu filho, de quem herdaram uma língua latina; são, por outro lado, conhecidos como devotos do amor, de que ela é deusa; prezam a beleza e poderão vir a promover o culto de Vénus no Oriente, se por ela forem ajudados; Marte, para além da "ligação" a Vénus, preza o valor militar dos portugueses; Baco é, de certo modo, o “mau da fita” pois a sua psicologia é complexa: não aceita que os portugueses venham a ser bem sucedidos no Oriente, vindo, um dia, a superar a sua própria fama nessas paragens.
Que os portugueses, humanos, o ultrapassem a ele, um Deus, é algo que não poderá aceitar nunca; tudo fará, por conseguinte, para os liquidar, ainda que numa atitude de revolta contra Júpiter e os Fados. Porque é, no fim de contas, lúcido, ele intui desde logo aquilo que mais tarde virá a dizer: se os portugueses chegarem à Índia tornar-se-ão deuses, reduzindo os deuses à sua dimensão de simples mortais.
Ele, Baco, não poderá consentir em tal inversão de valores, na desordem, no caos, na situação absurda que representaria uma total subversão da ordem do Universo. A presença da mitologia acompanhará a partir de agora toda a narração da viagem.
Os deuses serão intervenientes sempre activos, quer assumindo funções de adjuvantes dos portugueses, quer de oponentes ao seu êxito.
Estarão no centro da trama que constituirá a verdadeira intriga do poema, e da sua luta dependerão avanços ou pausas na viagem.
Sintetizando, a função da mitologia neste poema é a seguinte:
Constituir uma parte importante do maravilhoso inerente aos poemas épicos em geral, obedecendo pois, a uma regra do género;
Assegurar a unidade interna da acção, pela criação de personagens activas e “humanizadas” que se contrapõem a personagens humanas, monolíticas e, de certo modo, “desumanizadas” que são os navegadores;
Embelezar, pela participação na intriga, uma narração de viagem que se arriscava a tornar-se demasiado árida e “prosaica”;
Serem os deuses permanentemente autores de referências engrandecedoras dos portugueses, nomeadamente na formulação de profecias;
Essencialmente, serem pólo de confronto permanentemente com os homens, de modo a que seja evidenciada a supremacia destes últimos.
A realização deste 1.º Concílio marca o momento exacto em que os deuses são chamados a intervir, pronunciando-se sobre o futuro dos homens que navegam em mares até então desconhecidos, num empreendimento novo, extremamente importante, no qual vêm dando mostras de coragem e valor ao enfrentarem múltiplos perigos. Reconhecendo o valor de tais humanos, os deuses reúnem, a pedido de Júpiter, para deliberar se devem ou não ajudar os navegadores a encontrar um porto amigo em que possam repousar e recuperar alento para prosseguirem uma viagem que os Fados haviam já determinado viesse a ser coroada com êxito.
Gera-se no Olimpo, onde os deuses se reuniram, grande desavença. Dois “partidos” se formam: um, encabeçado pela Deusa do amor, Vénus, que defende que os portugueses sejam ajudados; outro, por Baco, Deus das paixões, dos vícios, do vinho, que é contrário a tal ajuda. A discussão é violenta, como expressivamente no-lo descreve Camões na estrofe 35:
"Qual Austro fero ou Bóreas, na espessura,
De silvestre arvoredo abastecida,
Rompendo os ramos vão da mata escura,
Com impito e braveza desmedida;
Brama toda a montanha, o som murmura,
Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
Tal andava o tumulto, levantando
Entre os deuses, no Olimpo consagrado."
Marte, Deus da guerra e velho apaixonado de Vénus, têm então uma intervenção decisiva em que incita Júpiter a não voltar atrás com a decisão que já havia tomado de ajudar os navegadores portugueses:
"Não tornes por detrás, pois é fraqueza
Desistir-se de cousa começada"
As razões que movem os diversos deuses na sua tomada de posição são devidamente apontadas por Camões. Júpiter, limita-se a cumprir, ou antes, a fazer cumprir as decisões dos Fados, pois sabe, à partida, que é inútil lutar contra eles; aceita-as, de resto, pois reconhece o valor dos lusitanos.
Quanto a Vénus, ela imagina que, ajudando os portugueses, poderá vir a lucrar: eles são descendentes dos romanos e, portanto, de Eneias, seu filho, de quem herdaram uma língua latina; são, por outro lado, conhecidos como devotos do amor, de que ela é deusa; prezam a beleza e poderão vir a promover o culto de Vénus no Oriente, se por ela forem ajudados; Marte, para além da "ligação" a Vénus, preza o valor militar dos portugueses; Baco é, de certo modo, o “mau da fita” pois a sua psicologia é complexa: não aceita que os portugueses venham a ser bem sucedidos no Oriente, vindo, um dia, a superar a sua própria fama nessas paragens.
Que os portugueses, humanos, o ultrapassem a ele, um Deus, é algo que não poderá aceitar nunca; tudo fará, por conseguinte, para os liquidar, ainda que numa atitude de revolta contra Júpiter e os Fados. Porque é, no fim de contas, lúcido, ele intui desde logo aquilo que mais tarde virá a dizer: se os portugueses chegarem à Índia tornar-se-ão deuses, reduzindo os deuses à sua dimensão de simples mortais.
Ele, Baco, não poderá consentir em tal inversão de valores, na desordem, no caos, na situação absurda que representaria uma total subversão da ordem do Universo. A presença da mitologia acompanhará a partir de agora toda a narração da viagem.
Os deuses serão intervenientes sempre activos, quer assumindo funções de adjuvantes dos portugueses, quer de oponentes ao seu êxito.
Estarão no centro da trama que constituirá a verdadeira intriga do poema, e da sua luta dependerão avanços ou pausas na viagem.
Sintetizando, a função da mitologia neste poema é a seguinte:
Constituir uma parte importante do maravilhoso inerente aos poemas épicos em geral, obedecendo pois, a uma regra do género;
Assegurar a unidade interna da acção, pela criação de personagens activas e “humanizadas” que se contrapõem a personagens humanas, monolíticas e, de certo modo, “desumanizadas” que são os navegadores;
Embelezar, pela participação na intriga, uma narração de viagem que se arriscava a tornar-se demasiado árida e “prosaica”;
Serem os deuses permanentemente autores de referências engrandecedoras dos portugueses, nomeadamente na formulação de profecias;
Essencialmente, serem pólo de confronto permanentemente com os homens, de modo a que seja evidenciada a supremacia destes últimos.