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domingo, 1 de fevereiro de 2009

D.Duarte

Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
em dia e letra escrupuloso e fundo.

Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.



D.Pedro, o Regente

Claro em pensar, e claro no sentir,
é claro no querer;
indifferente ao que há em conseguir
que seja só obter;
duplice dono, sem me dividir,
de dever e de ser-

não me podia a Sorte dar guarida
por não ser eu dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
calmo sob mudos céus,
fiel à palavra dada e à ideia tida.
Tudo o mais é com Deus!

D.João, Infante de Portugal

Não fui alguém. Minha alma estava estreita
entre tam grandes almas minhas pares,
inutilmente eleita,
virgemmente parada;

porque é do portuguez, pae de amplos mares,
querer, poder só isto:
o inteiro mar, ou a orla vã desfeita-
o todo, ou o seu nada.

Comentários:
D.Duarte Rei de Portugal: "A regra de ser Rei almou meu ser"- A disciplina de ser rei encheu a minha vida (isto é, como D.Duarte viveu o fim do seu curto reinado no remorso das consequências da falhada expedição a Tânger e da prisão do irmão Fernando não tinha prazer na vida, dedicando-se inteiramente ao dever da governação). Esse remorso é a razão da frase do poema: "firme em minha tristeza".
D.Pedro Regente de Portugal: "indiferente ao que há em conseguir que seja só obter"- não fui movido pelo desejo de posse; não fui ambicioso de bens materiais.
"Dúplice dono, sem me dividir, de dever e de ser"- eu e o meu dever fomos um só.
D.João Infante de Portugal- "Minha alma estava estreita entre tão grandes almas...etc"- os meus irmãos (o Infante D.Henrique, o Rei D.Duarte, o Infante D.Pedro, e o Infante D.Fernando) tiveram tal grandeza que me ofuscaram completamente.
"virginalmente parada"- sem actividade; virgem de acção (esta afirmação é inexacta em relação ao Infante D.João que foi um homem de mérito e de préstimo para o País. Aliás, qualquer comparação com um homem de estatura mundial como o Infante D.Henrique só pode resultar injusta para o comparado!).
"é do português querer só isto: o inteiro mar ou a orla vã desfeita"- para um português não há meios termos: ou tudo ou nada (por isso, como não fui tudo, então eu não fui nada!).
"a orla vã desfeita"- a cercadura do mar; a espuma das ondas que se desfazem futilmente na costa.
NOTA: Para os que queiram saber mais sobre D.Duarte sugiro ESTA página.
Sobre D.Pedro sugiro ESTA página excepcional que mostra como o infante, apesar da sua morte trágica e inútil na batalha de Alfarrobeira (que inspirou a ilustração a esta página) teve uma vida verdadeiramente extraordinária e um papel importante no início das Descobertas.
Sobre o Infante D.João Sugiro ESTA página, notando apenas uma correcção: o ano da sua morte foi 1442 e não 1422 como refere a página aconselhada na versão que existia à data em que preparei esta página.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

As rosas, poema de Ricardo Reis

As Rosas amo dos jardins de Adónis, (hipérbato)
Essas volucres amo, Lídia, rosas, (hipérbato)
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.

A luz para elas é eterna, porque (transporte)
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.

2ª parte – Mais apelativo - sugere a Lídia que faça qualquer coisa

Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente (hipérbato)
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

Vocabulário útil:
Volucres – efémeras, que morrem cedo
Inscientes – que desconhecem, não sabem
Jardim de Adónis – diz a mitologia que as rosas do jardim de Adónis não duravam mais que um dia e como nasciam e cresciam com o dia, o dia era a única realidade que conheciam.

Tema: o poeta incita Lídia a viverem juntos como as rosas de Adónis, porque a vida é breve tal como a das rosas. O “pouco que duramos” revela de novo a brevidade da vida, e assim sendo é preferível ter tudo num só dia, viver intensamente um só dia, mas vivê-lo como se ignorássemos que a vida dura um pouco mais.
Nesta ode há inversão na ordem natural das palavras. Colocando alguma ordem no pensamento teríamos:

Lídia, eu amo as rosas volucres dos jardins de Adónis, que no mesmo dia em que nascem também morrem. (1ª estrofe)
A luz para elas é eterna porque quando nascem já o sol nasceu e quando morrem o sol ainda não morreu (2º estrofe)
Façamos o mesmo da nossa vida, Lídia, inscientes como as rosas que duram só um dia, porque a vida é breve (3ª estrofe)

Importante o binómio vida/morte e dia/noite
A vida para as rosas é o dia, a morte a noite
Para o ser humano a vida é o conhecimento (dia) e o não conhecimento (noite)

terça-feira, 19 de junho de 2007

Fernando Pessoa



É uma imagem conhecida e já serviu para ilustrar a capa de uma fotobiografia de Fernando Pessoa. O poeta tinha 10 anos quando tirou este retrato em Durban, na África do Sul, onde viveu e estudou. A expressão do Pessoa que nos foi dado a ver já está aqui. E quanto mais se olha para ela mais se fica com a impressão que o poeta só teve uma expressão. E manteve-a sempre de cada vez que enfrentava uma máquina fotográfica, quer tivesse 3, 10 ou 30 anos. No verso da fotografia, Pessoa escreveu esta dedicatória: “Á sua querida tia Lisbella com muitos beijos do seu sobrinho muito amigo Fernando. Durban 1898”.
A fotografia que Fernando Pessoa tirou em Durban, na África do Sul, quando tinha 10 anos, foi vendida a um alfarrabista por 8500 euros, tornando-se na imagem mais cara alguma vez vendida num leilão em Portugal. A outra carte-de-visite de Pessoa colocada em praça (um retrato do atelier Camacho, de Lisboa), captada quando o poeta tinha cerca de 3 anos, foi arrematada por 460 euros (o preço-base era de 300).

quarta-feira, 23 de maio de 2007

FERNANDO PESSOA




Biografia
1888: Nasce Fernando António Nogueira Pessoa, em Lisboa. - 1893: Perde o pai. - 1895: A mãe casa-se com o comandante João Miguel Rosa. Partem para Durban, África do Sul. - 1904: Recebe o Prémio Queen Memorial Victoria, pelo ensaio apresentado no exame de admissão à Universidade do Cabo da Boa Esperança. - 1905: Regressa sozinho a Lisboa. - 1912: Estreia-se na Revista Águia. - 1915: Funda, com alguns amigos, a revista Orpheu. - 1918/21: Publicação dos English Poems. - 1925: Morre a mãe do poeta. - 1934: Publica Mensagem. - 1935: Morre de complicações hepáticas em Lisboa.




Lisboa. 26 de Novembro de 1935. Pessoa encerra o expediente no escritório de import-export e segue para casa. Debaixo do braço, sempre a sua pasta de cabedal. Antes de chegar ao seu andar na rua Coelho da Rocha, passa pelo bar do Trindade, logo na esquina. Rotina. O amigo vende-lhe fiado. Chega-se ao balcão e diz:
- 2, 8 e 6.
Trindade serve-o: fósforos, um maço de cigarros e um cálice de aguardente. No olhar, cumplicidade. Os fósforos custam 20 centavos, os cigarros 80 e um cálice de aguardente 60. Pessoa simplifica: 2, 8, e 6 tostões. Trindade já está acostumado. O poeta acende um cigarro e bebe o cálice, um trago só. Retira da pasta uma garrafa vazia, preta. Entrega-a ao Trindade que, discretamente, a devolve cheia. Com a pretinha bem guardada, Pessoa despede-se. Sai aos tropeções e a recitar:



Bêbada branqueia


Como pela areia


Nas ruas da feira,


Da feira deserta,


Na noite já cheia


De sombra entreaberta.


A lua branqueia


Nas ruas da feira


Deserta e incerta...(1)







A MINHA ALMA PARTIU-SE COMO UM VAZO VAZIO

Revela-se Alberto Caeiro, o heterónimo de Fernando Pessoa. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo?
No quarto passa a noite debruçado à secretária. Confundimo-lo com os livros, papéis, também lápis minúsculos que só ele consegue manusear. O cinzeiro cheio de pontas de cigarro. Escreve, compulsivamente, ao jovem amigo Casais Monteiro:
"…Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida-real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar." (2)
A carta vai a todo o vapor quando Pessoa começa a receber visitas inesperadas. Caeiro, Reis Campos e Soares. Têm planos, e querem levá-los ao conhecimento do grande poeta. Chegam um a um. É madrugada e já estão todos reunidos. São surpreendidos por um Pessoa emocionado, papéis em punho. Terá recebido más notícias? perguntam, preocupados. O poeta tenta desconversar. É confuso, perde-se nas palavras, coisa que nunca acontecera antes. Mas também nunca recebera visitas em tão adiantada hora. Muito menos sem combinação prévia. É obra do "Grande Arquitecto do Universo", pensa. Então que se cumpra o destino... Aos solavancos:
- Adiei a verdade quanto pude. É chegada a hora de deixar cair a máscara.
Os quatro ansiosos. Quem está sentado levanta-se, quem está de pé senta-se ou passeia pelo quarto. Pessoa e o seu discurso enviesado, interrompido por dores e gemidos:
- Numa carta confidenciava a um amigo tudo o que agora sinto que devo dizer-vos.
Um gole de coragem e solta:
- Vocês não existem.
Consternação na assistência.
- É isso, vocês não são mais que personagens da minha criação. Morro e levo-os comigo.
- Só pode ser delírio. Desatino. (diz Álvaro de Campos, ofendido).
- Vou-lhes contar como tudo aconteceu. "Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. (...) E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instintiva e subconscientemente - uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nesta altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num acto, e à máquina de escrever, sem interrupção, nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro Campos - a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem."(2)
- Então, todo este tempo não passámos de uma mentira? (pergunta Ricardo Reis).
Bernardo Soares responde:
O poeta é um fingidor Mente tão completamente Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente. (3)- Pois esta é a chave, explica Pessoa.- Não aceito. Morra em paz o meu criador, porque eu cá continuarei vivinho, poetando como sempre (desafia Álvaro de Campos).
- Arre! Que a criação agora vira-se contra o próprio criador. Deveria ter suspeitado (lamenta-se Pessoa). E quanto a si, Caeiro?
Gosto de tudo que seja real e que tudo esteja certo; E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.(4)Álvaro de Campos:- Não entendo a sua complacência. Não está a ver, Caeiro, que Pessoa usou-nos e, principalmente, usou-o. Compelido a vencer o seu subjectivismo lírico decadentista, venceu-o de forma tão súbita e agressiva que não teve remédio senão dar um nome a esse crítico. É ai que você surge, para salvá-lo.(5)
Caeiro não esconde seu desgosto. Pessoa então revela:
- Escrevi, com sobressalto e repugnância, o poema oitavo do Guardador de Rebanhos, com a sua blasfémia infantil e antiespiritualista. A cada personalidade que consegui viver dentro de mim, dei uma índole expressiva, e fiz desta personalidade um autor, com livros, com as ideias, as emoções, e a arte dos quais eu, autor real, nada tenho, salvo o ter sido, no escrevê-las, o médium de figuras que eu próprio criei.
- Você não tinha esse direito (insiste Campos).
Ainda Pessoa:
- Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de Lady Macbeth. Se assim é das personagens fictícias de um drama, é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é lícito porque elas são fictícias e não porque estão num drama. Parece escusado explicar uma cousa de si tão simples e intuitivamente compreensível. Sucede, porém, que a estupidez humana é grande, e a bondade humana não é notável.
Ricardo Reis, que assistira mudo à revelação, pergunta:
- Mas por que é que você nos inventou? Qual a origem de tudo?
Pessoa, pacientemente, tenta explicar-lhe:
- É o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurastênico. Seja como for, a vossa origem mental está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Se eu fosse mulher - na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas - cada poema do Álvaro de Campos (o mais histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem - e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…(2)
A resposta não convence, não agrada. Longe está o tempo em que fora loquaz. Agora fazem-lhe ouvidos moucos. Pessoa é todo angústia. O silêncio que o rodeia. A incompreensão, mágoa e até o desprezo dos seus outros "eu". Vira-se para um último apelo. Fica só com a sua verdade.

VOU EXISTIR


Quando pensa deitar-se, já é outro dia. Batem à porta. É o "sô" Manacés, o barbeiro. Pessoa mal lhe dá os bons-dias. O pigarro prende-lhe a fala. Calças a cair do corpo, aponta para a pretinha. Manacés compreende o sinal. Vai ao Trindade enchê-la, ainda nem afiara a navalha. Barba feita, o poeta vai para o escritório. Faz algumas traduções. Almoça no Martinho da Arcada e, antes de voltar ao trabalho, entra numa taberna, meio titubeante. Pensa no seu médico que o proibira de beber. Então questiona-se.
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me? Não: vou existir. Arre! vou existir. E-xis-tir... E-xis-tir... Dêem-me de beber, que não tenho sede! (6)
Noite de 27 para 28 de Novembro. Pessoa encolhido na sua cama, as mãos a pressionarem o abdómen, cólica hepática. Geme, dor. Manhã de 28. Pessoa é transportado para o Hospital de S. Luís dos Franceses. A dor aperta, sufoca. O poeta agoniza. Implora pelo fim de tanto sofrimento. Aplicam-lhe um analgésico. Sob o efeito da droga, reflecte sobre a vida que ameaça escapar-lhe agora.

Ó MÁGOA REVISITADA
O poeta Fernando Pessoa ganha a vida como empregado de escritório. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo?

1888. 13 de Junho. Dia de Santo António, padroeiro da cidade. 15h20. As ruas de Lisboa tomadas por uma procissão. No número 4 do Largo São Carlos a agitação é ainda maior. A açoriana Maria Magdalena Pinheiro Nogueira banhada em suor. Crava os dedos no travesseiro, dores de parto. O marido, Joaquim de Seabra Pessoa, põe-se a ouvir música nas traseiras da casa. Lá fora um Padre reza missa. Dentro do quarto, um bebé a chorar. Nasce Fernando António Nogueira Pessoa. O sol em Caranguejo. "Será uma criança dotada de sensibilidade e humanismo", arrisca uma das tias.
Aos seis anos perde o pai, funcionário público do Ministério da Justiça e crítico de música do Diário de Notícias. Pouco depois morre o irmão Jorge, com pouco mais de seis meses. Muito cedo a solidão no dia-a-dia de Pessoa. Inventa um amigo: um certo Chevallier de Pas, por quem escreve cartas dele a ele mesmo.
Aos sete anos muda-se para Durban. A mãe casara, por procuração, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal na colónia inglesa de Natal, África do Sul. Deste casamento nascem cinco filhos. Uma nova família para Pessoa. Viverá naquela cidade até aos 17 anos. Em 1896 entra para West Street, onde tem aulas de inglês e faz a sua primeira comunhão. Em escolas inglesas aprende técnicas de comércio. Destaca-se como um dos melhores alunos. Em 1904 conclui a sua Intermediate Examination em Artes. Ganha o prémio Rainha Vitória de estilística inglesa no exame de admissão à Universidade do Cabo. Escreve poesia e prosa, sempre em inglês. Lê Milton, Byron, Shelley, Tennyson e Poe. Conhece Pope e a sua escola.
1905. Pessoa decide voltar a Lisboa para fazer o Curso Superior de Letras. Parte a bordo do navio alemão Herzog. Instala-se na casa de sua avó Dionísia. A língua portuguesa revela-se como "estrangeira", com a novidade do "estranho", se bem que a entenda perfeitamente. Ou seja, ao seu ouvido o português não está ainda desgastado pelo uso quotidiano, bom dia, boa tarde, como está? passou bem? e a mãezinha está melhor? está melhorzinha, muito obrigado ! É um bloco de mármore que apetece esculpir, literatura. Inscreve-se no curso. Descobre Cesário Verde e Baudelaire.
1907. Desiste do curso. A avó morre. Com a herança, Pessoa monta uma tipografia: Ibis-Tipográfica Editora-Oficinas a Vapor. Mal chega a funcionar. Frustração.
Falhei em Tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa...(7)
O poeta entra no comércio como tradutor de cartas e depois correspondente estrangeiro. Monotonia. Dá as suas escapadelas sempre que pode. Levanta-se, pega no chapéu e avisa: "Vou ao Abel".
O seu chefe descobre que afinal o Abel é o depósito da casa vinícola Abel Pereira da Fonseca, onde Pessoa vai tomar uns copos de aguardente. É apanhado "em flagrante delitro". O chefe não se importa, pois "volta sempre mais em forma para trabalhar". O emprego é a meio-tempo. A outra metade é para a literatura: Camões, António Vieira, Antero de Quental e os simbolistas. Começa a escrever versos em português. Surge a Renascença Portuguesa, movimento saudosista de Teixeira de Pascoaes. No Porto, o grupo funda a revista Águia. Pessoa colabora. Publica uma série de artigos, entre os quais "A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada".
Também faz crítica no semanário Teatro. Trava amizade com Mário de Sá-Carneiro, Luís de Montalvor, Armando Cortes-Rodrigues, Raul Leal, António Ferro, Alfredo Guisado e o pintor Almada Negreiros. Não falta às tertúlias: Café Chiado, Montanha, A Brasileira, Os Irmãos Unidos. Com este grupo Pessoa funda o Orpheu, revista de vanguarda em sintonia com os novos movimentos europeus: futurismo, orfismo, cubismo...(8) A publicação revela nomes como Santa-Rita Pintor e Ângelo de Lima, poeta marginal internado em manicómio. Orpheu não chega ao terceiro número. Porém bastaram dois para afrontar os conservadores das Letras.
Farto do misticismo transcendental, Pessoa sente-se recompensado. A um amigo escreve: Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude para com a vida que bata certo com a minha íntima sensibilidade, com as minhas aspirações, com tudo quanto constitui o fundamental e o essencial do meu íntimo ser espiritual. Encontro, sim, quem esteja de acordo com actividades literárias que são apenas dos arredores da minha sinceridade. E isso me basta. De modo que à minha sensibilidade cada vez mais profunda, e à minha consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que todo o homem de génio recebe de Deus com o seu génio, tudo quanto é futilidade literária, mera arte, vai gradualmente soando cada vez mais a oco e a repugnante.

OS OUTROS POETAS

1914. Pessoa conhece Alberto Caeiro, homem "louro sem cor, olhos azuis".(5) Nascera em Lisboa em 1888, mas vive no Ribatejo. Não tem profissão. Instrução, pouca. Da quinta de uma velha tia lança o seu olhar sobre o mundo. Simples, bucólico, escreve O Guardador de Rebanhos, O Pastor Amoroso e uma parte dos Poemas Inconjuntos. Em carta a um amigo, Pessoa revela: Desculpe-me o absurdo da frase: Aparecera em mim o meu mestre.
(...) Não acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, Sem dúvida que viria falar comigo E entraria pela minha porta dentro Dizendo-me: Aqui estou! (9)
Pessoa respira e transpira poesia, atrai os poetas. Conhece o vanguardista Álvaro de Campos, autor de Ode Triunfal, Ode Marítima e de Ultimatum. Sujeito alto, cabelo pró liso, risca ao lado, monóculo.(2) Nascera em Tavira em 1890. Concluíra o liceu em Portugal e depois seguira para Glasgow na Escócia, onde se formara em engenharia mecânica e naval. Escrevera Opiário, poema irónico sobre o ópio, o exotismo, decadência. Em Lisboa, dedicara-se apenas à literatura, e às polémicas modernistas. Escrevera também em alguns jornais sobre a actualidade política. Para Pessoa, Álvaro não passava de um tardo-simbolista blasé, burguês culto e entediado. Campos também é discípulo de Caeiro. Mas ao contrário da serenidade de Caeiro, opta pela ética do dinamismo e da violência.(8)
Ah! a selvajaria desta selvajaria! merda Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto! Eu pr’aqui engenheiro, prático à força, sensível a tudo, Pr’aqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando; Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil; Estático, quebrado, dissidente, cobarde da vossa Glória, Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta! (10)
Junho de 1914. Outro poeta surge na vida de Pessoa. Já soubera da sua existência dois anos antes. Ricardo Reis, estatura média, embora frágil não parecia tão frágil como era, de um vago moreno mate.(2) Um ano mais velho que Pessoa, este médico portuense é defensor da monarquia, passa um tempo exilado no Brasil depois da proclamação da República. Tradicional, conservador, parte do classicismo para abordar a inquietação humana, interrogar o sentido do Universo.(8) Escreve intensamente: onze odes num mês.
E assim, Lídia, à lareira, como estando, Deuses lares, ali na eternidade, Como quem compõe roupas E outrora compúnhamos Nesse desassossego que o descanso Nos traz às vidas quando nós pensamos Naquilo que já fomos. E há só noite lá fora.(11)
Pessoa dedica-se por inteiro às novas amizades. O convívio com poetas tão distintos dá mais cor ao seu dia-a-dia cinzento. Um outro escritor fará parte deste rol de artistas. Num destes restaurantes de pasto,(...) o poeta conhece um homem que aparentava 30 anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado. Passaram a cumprimentar-se e logo se tornam amigos. Soares dá ao poeta o seu Livro do Desassossego, um conjunto de escritos, de fronteiras pouco nítidas, entre fragmento autobiográfico, a confissão, a introspecção psicológica, a descrição paisagística, a reflexão, o poema em prosa.(8)
Pessoa tem uma desavença com Campos. A jovem Ophélia Queiroz, que conhecera num dos escritórios da Félix Valadas & Freitas, está na origem do conflito. Aos 20 anos ela desperta logo o interesse no poeta. A relação estremece quando Pessoa e Ophélia começam a namorar. Passeiam de mãos dadas, trocam cartas e bilhetinhos. Ela sente-se hostilizada pelo amigo de Fernando. Campos teme que, por causa de Ophélia, Pessoa se distancie da poesia. Talvez influenciado pelo apelo, Pessoa acaba por desistir do romance.

MISTÉRIO

1916. Mário de Sá-Carneiro suicida-se em Paris. Pessoa atordoado. Em carta à sua tia Anica diz ter sentido o suicídio à distância. Tormentos. Começa a procurar respostas nas ciências ocultas. "Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos e em existências de diversos graus de espiritualidades", revela. Entusiasma-se com as Sociedades secretas (Rosa-Cruz, Maçonaria, Templários). Conhece o espiritismo, a magia, a cabala. Traduz para o português muitos livros da Colecção Teosófica e Esotérica. Sob a influência do ocultismo escreverá O último sortilégio e Além-Deus. Inicia-se e cultiva, sobretudo, a astrologia. Pensa até em estabelecer-se em Lisboa como astrólogo encartado. Caeiro é contemplado com um mapa astral feito pelo poeta.
A poesia de Pessoa começa a despertar o interesse de críticos. O Times e o Glasgow Herald dedicam espaço às duas plaquettes de poemas ingleses publicados em 1918. Escreve nas mais importantes revistas literárias portuguesas. Em Contemporânea publica O Banqueiro Anarquista, Mar Português, O Menino da Sua Mãe, Lisbon Revisited...
Em 1928 intervém na política. No Interregno (manifesto político do Núcleo de Acção Nacional) o poeta defende a ditadura salazarista. Um equívoco. Pessoa não alinha com o despotismo e o ultranacionalismo do regime vigente. Mais tarde, compõe três textos de sátira ao Estado Novo. Um deles dirigido ao seu próprio chefe:
António de Oliveira Salazar Três nomes em sequência regular... António é António Oliveira é uma árvore. Salazar é só apelido. Até aí está tudo bem. O que não faz sentido É o sentido que isso tudo tem.(12)
No mesmo ano Pessoa mete-se na publicidade. A Coca-Cola acaba de entrar no mercado português e o poeta fica encarregado de criar um slogan para o produto: "Primeiro estranha-se, depois entranha-se". A mercadoria vende como água. Mas proíbem a sua representação em Portugal. A Direcção de Saúde entende que o slogan é o próprio reconhecimento da sua toxidade.
Nos anos seguintes Pessoa mergulha na astrologia. Inicia correspondência com o mago inglês Aleister Crowley, famoso em todo o mundo. Crowley vem a Lisboa para conhecer Pessoa e desaparece misteriosamente. Pessoa colabora na solução do que a polícia passa a chamar de crime. A respeito de toda esta confusão, Pessoa escreve a um amigo: "O Crowley, que depois de suicidar-se passou a residir na Alemanha, escreveu-me há dias e perguntou-me pela tradução, ou antes, pela publicação da tradução." Pessoa refere-se à poesia do mago, "Hino a Pã", que ele publica em 1931.
1934. Pessoa publica Mensagem, poema sobre a história de Portugal. Esotérico, místico. Será o único volume dos seus versos em português, publicado durante a sua vida. Ganha o prémio da segunda categoria do Secretariado de Propaganda Nacional.

DESENCONTRO

1935, 30 de Novembro. Inquieto, a remexer-se na cama, Pessoa arde em febre.
Não sou nada Nunca serei nada Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Estou hoje vencido, como soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer.(7)
O capelão tenta acalmá-lo. Ele insiste em chamar Caeiro, Reis, Campos e Soares. Como que ouvindo o chamamento do seu criador, os poetas seguem para o hospital. Pessoa em agonia. Repuxa o lençol, contrai-se. Dá-me os óculos, os meus óculos, pede. Prepara-se para o último olhar sobre a sua criação. E eles que não chegam. Mas pressente, eles vêm, Ah se vêm.
Caeiro, Reis, Campos e Soares entram de rompante. Porém tarde, já morto o poeta. Sobram uns rabiscos num papel:
Fiz de mim o que não soube, E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido, Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiárioComo um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo. E vou escrever esta história para provar que sou sublime.(7)
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(1) Pierrot Bêbado, F.P. - (2) Carta a Casais Monteiro (13-1-1935) - (3) Livro do Desassossego, B.S. - (4) Poemas Inconjuntos, A.Caeiro - (5) João Gaspar Simões, o biógrafo. - (6) Bicarbonato de Soda, F.P. - (7) Tabacaria, A.Campos. - (8) Maria José de Lencastre, biógrafa - (9) O Guardador de Rebanhos, A.Caeiro. - (10) Ode Marítima, A.Campos, carta de F.P. a Casais Monteiro - (11) Lídia, R.R. - (12) António de Oliveira Salazar, F.P.