domingo, 1 de fevereiro de 2009

Mensagem por Fernando Pessoa (Introdução e Brasão)


ilustrada por Carlos Alberto Santos , anotada por João Manuel Mimoso

Mensagem é um Poema constituído por 44 poemas independentes que foram inseridos numa espécie de esqueleto que deu coerência ao conjunto. Este esqueleto está dividido em três partes (Brasão, Mar Português e O Encoberto que tratei individualmente em textos introdutórios) e a coerência é dada, não pelos poemas propriamente ditos, mas antes pelos seus nomes e pelos títulos e subtítulos das partes em que se inserem. Esta é uma solução deveras inovadora!! Para evitar confusões, quando falar do Poema (com maiúscula) estarei a referir Mensagem; se falar de poema (com minúscula) referir-me-ei a qualquer dos 44 poemas que constituem o Poema.

.Mensagem foi publicada em livro no dia 1 de Dezembro de 1934, em vida de Fernando Pessoa, mas em condições muito particulares que influenciaram a sua composição: destinava-se a participar num concurso com regras rígidas em relação ao prazo e número de páginas. Das três partes do Poema a segunda "Mar Português" já existia como um conjunto e é evidente a sua homogeneidade e a constância da qualidade da generalidade dos poemas; as duas restantes foram fabricadas a partir de poemas soltos. Destes, pelo menos quatro dos dezanove poemas da primeira parte (Brasão) foram escritos no próprio ano da publicação (as datas dos poemas, quando conhecidas, estão indicadas no índice) enquanto que pelo menos sete dos treze da terceira parte (O Encoberto) foram escritos em 1933 ou 1934. Talvez por ter sido mais apressadamente preparada, esta é a "menos boa" (todas são boas!!) do conjunto. Segundo as regras do concurso o livro teria que ter pelo menos cem páginas que foram conseguidas com muita dificuldade à custa dos 44 poemas e das páginas interpostas entre eles (artifício que, aliás, o júri não aceitou). Daqui resultaram enxertos de poemas soltos, anteriores, num conjunto para o qual não teriam sido pensados (pelo menos na posição que vieram a ocupar), duplicações e acrescentos. Quer isto dizer que Fernando Pessoa teve que construir de forma relativamente rápida um Poema que, provavelmente, teria sido diferente se as circunstâncias o não tivessem pressionado.

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Os Lusíadas foi escrito ainda no apogeu da expansão portuguesa (na sua fase final, que hoje sabemos ser já irremediavelmente decadente mas que, na época, não seria necessariamente apercebido como tal) glorificando o esforço da Raça e apontando para uma ainda maior predominância futura. Quando a si próprio se pôs como desafio produzir um Poema de grandeza semelhante (se possível superior), Pessoa vivia num Portugal descolorido e atrasado, sem nada que o recomendasse excepto a criatividade dos seus literatos. Há duas caracteristicas de Fernando Pessoa que importa notar: por um lado amava apaixonadamente a Pátria, de uma maneira que hoje, na Europa onde as nacionalidades se diluem, nos é difícil compreender; por outro era um lógico obsessivo cujas tentativas "científicas" de racionalizar o irracionalizável impressionam e, às vezes, divertem pela candura que demonstram.
Posto perante a inelutável equação do seu tempo, parece ter racionalizado a situação da seguinte maneira: o Universo teve uma causa que o contém, um Criador a que podemos convenientemente chamar "Deus"; se Deus contém em si o Universo então também contém toda a História, que deve ter determinado desde o início (a esta determinação chama-se "Destino"); alguns homens conseguem por vezes entrever o futuro porque ele já está estabelecido; um destes homens foi o Bandarra que profetizou nas suas "Trovas" (pensava o Padre António Vieira e com ele Fernando Pessoa, embora reconhecendo-lhes uma autoria múltipla) a hegemonia portuguesa numa época futura; o único trunfo de que Portugal dispunha era a cultura duma elite e, particularmente, um génio poético desproporcionado à sua população; logo a hegemonia terá uma base cultural e será alcançada através de uma poesia tão superior que inspire os homens à fruição da beleza em paz e concórdia...
Este será o Quinto Império, uma época de união e paz universais sem limite final no tempo. Se Portugal está predestinado, então terá que produzir um grande poeta (a que Pessoa chamava super-Camões referindo-se, presumivelmente, a si próprio) e um grande lider que inspirem e conduzam todo o Mundo à união cultural que marcará o advento do Quinto Império. Esse lider é convenientemente chamado de "O Desejado", "O Encoberto" ou "D.Sebastião", uma designação que Pessoa valorizava por pensar ser mais fácil passar a ideia de um mito já estabelecido do que criar um inteiramente novo. Na prática é uma esperança semelhante à do Grand Roi da mitologia francesa, que seria o Carlos Magno do futuro.
A insistência de Fernando Pessoa na figura de D.Sebastião não significa realmente que esperasse ver o espírito do rei morto reencarnar para conduzir o País à glória. Até porque a história nos ensina (e Pessoa sabê-lo-ia melhor do que eu) que D.Sebastião tinha muito pouco que o recomendasse. Só me ocorre uma coisa: soube morrer bem! Quando o nome do rei morto em Alcácer Quibir ocorre nos poemas, ou se trata de uma passagem histórica e, portanto, literal, ou então deve subentender-se que Pessoa se refere Àquele que há-de guiar Portugal e o Mundo ao Quinto Império.

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Introdução a BRASÃO

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A primeira parte de Mensagem é curiosíssima na ideia que a estruturou: considera uma versão do brasão real português utilizado no século XV e a cada uma das suas partes relevantes associa um poema relativo a Portugal. O Brasão tem dois campos: o escudo central que é o campo dos cinco escudetes azuis com besantes brancos a que chamamos "quinas", e a bordadura periférica que é o campo dos castelos (ver a figura abaixo). Cada um destes campos inspirou um poema adequado: "O dos Castelos" refere-se à terra (ou mais genericamente à materialidade) e consiste numa descrição geográfica da Europa e da posição de Portugal nela; "O das Quinas" ( segundo a lenda as quinas representariam as cinco chagas de Cristo) refere-se à divindade, ao Deus Cristão cuja religião se entrelaça indissociavelmente com a história de Portugal e ao sacrifício da felicidade à obrigação para com a História (genericamente representa, assim, os valores espirituais). Nenhum dos campos é explicitamente dedicado ao povo português: Mensagem é um poema sobre elites (e, creio, também para elites).
Aos poemas relativos aos Campos, segue-se um conjunto de poemas chamado "Os Castelos". A cada um dos sete castelos do brasão associa-se um herói (incluindo o mítico Ulisses) ou um monarca que pela sua acção tenha moldado a História de Portugal de uma maneira materialmente relevante.
Segue-se, em "As Quinas", um conjunto de cinco poemas dedicados a figuras portuguesas que, por uma razão ou por outra, foram vítimas da engrenagem implacável da História, e dela sofreram as consequências (tais como o Infante Santo ou D.Sebastião). Num caso realça-se o triunfo da espiritualidade ("D.Fernando Infante de Portugal"), mas o tema comum é a infelicidade terrena.

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Uma parte individual, chamada "A Coroa", distingue com um belo poema o cavaleiro que combinou em si as qualidades de comando do Rei Artur, a bravura de Sir Lancelote e a piedade pura de Sir Galahad: Nuno Álvares Pereira.
Finalmente "O Timbre" (que no sécXV era uma espécie de dragão conhecido na Mitologia como grifo) justifica três poemas referidos aos três alicerces da política de expansão portuguesa: o Infante D.Henrique que a iniciou, D.João II que apontou a meta das Índias e traçou o futuro de Portugal, e Afonso de Albuquerque que foi o arquitecto e o braço do Império Português do Oriente.

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Cada uma das partes do Poema inclui uma divisa ou epígrafe em latim e que em "Brasão" é: BELLUM SINE BELLO (literalmente "Guerra sem a guerra") que eu, não sendo latinista, traduziria por "Guerra sem combate". Este parece ser, pois, o mote que Fernando Pessoa associaria a Portugal através da lição da sua história e, como tal, merece-me um curto comentário, sobretudo porque, de certa maneira, me recordou o Fado Tropical do Chico Buarque (e do Ruy Guerra) em que ele diz pela boca de um português-brasileiro da época dos holandeses: "Meu coração tem um sereno jeito e as minhas mãos o golpe duro e presto, de tal maneira que depois de feito, desencontrado eu mesmo me contesto. Se trago as mãos distantes do meu peito é que há distância entre a intenção e o gesto...". BELLUM SINE BELLO é um ideal português de paz a que hoje se convencionou chamar "brandos costumes". "Guerra sem combate" é o poder associado à recusa consciente da violência, recusa essa que enobrece o poder. A divisa poderia igualmente ser "A Paz dos fortes" embora, claro, lhe faltasse então a subtileza da epígrafe escolhida por Fernando Pessoa!
Uma outra explicação da epígrafe (que imaginei não porque me pareça provável mas apenas para exemplificar as dúvidas que se deparam a quem tenta interpretar alegorias alheias) poder-se-ia basear na tradução alternativa "Guerra sem armas". Neste caso a divisa representaria um ideal de conquista espiritual e humana (pela difusão da cultura portuguesa e não apenas da religião) que foi no passado um importante vector da expansão portuguesa e seria no futuro, presumivelmente, a via para o Quinto Império. A cultura é, afinal, o único remanescente da colonização que não é efémero...

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Brasão inclui 19 poemas, muitos dos quais verdadeiramente extraordinários. Todos valem a pena ler! Eis alguns dos meus favoritos, com links directos para as respectivas páginas, bem como uma selecção de grandes versos e frases escolhidas que ofereço à vossa atenção:
"O dos Castelos" é um dos melhores poemas do conjunto. É nele que o poeta diz que A Europa fita com olhar esfíngico e fatal o Ocidente- o rosto com que fita é Portugal!
De "O das Quinas" (lembre-se que o nome refere O Campo das Quinas no brasão português) pode não se gostar à primeira, mas aconselho a leitura até se mudar de opinião. É nele que Pessoa escreve: Os Deuses vendem quando dão: compra-se a glória com desgraça. e também o verso maravilhoso: Foi com desgraça e com vileza que Deus ao Cristo definiu: assim o opôs à natureza, e Filho o ungiu.
Em "Ulisses" escreve Pessoa uma frase famosa: O mito é o nada que é tudo.
"D.Tareja" tem uma singular beleza. É neste poema que se encontra o verso: As nações todas são mistérios, cada uma é todo o mundo a sós. Ó mãe de reis e avó de impérios, vela por nós!
"D.Dinis" é uma sucessão de grandes versos (tantos que para os citar necessitaria uma transcrição integral do poema!) sugerindo imagens dos pinhais plantados pelo rei-lavrador e da sua contrapartida futura nas caravelas da Descoberta.
Em "D.João, O Primeiro" diz Pessoa: O homem e a Hora são um só quando Deus faz e a História é feita.
"D.Fernando, Infante de Portugal" (também conhecido como "Gládio") é, para mim, o melhor poema de Brasão e um dos melhores de Mensagem. IMPERDÍVEL!!
Finalmente em "O Infante D.Henrique" Pessoa precisa apenas de cinco versos para demonstrar, quase com desdém, a sua extraordinária craveira.

Pode-se ver na visão de Mensagem uma estranha beleza, bem como uma inegável grandiosidade. Mas não pode ser ocultado que essa visão é também decadente já que, ao dizer que o futuro nos está traçado em grandeza, desincentiva o esforço que poderia levar a essa meta. Não se trata do tradicional efeito de uma "self-fulfilling prophecy" (que pode realmente ter ocorrido no caso das Trovas do Bandarra em relação à Restauração) mas de um convite à inacção porque nos bastaria esperar pelos Tempos e ter fé no Destino! Mas este meu ensaio é sobre beleza e não sobre decadência, por isso passemos a examinar as grandes linhas do Poema.

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As duas primeiras partes de Mensagem percorrem a história de Portugal através de personalidades (quer heróis, quer pessoas-chave que, mesmo sem saber, tiveram consequência no futuro do País, quer ainda e até alguns anti-heróis), mitos e sinopses históricas. A Primeira Parte, chamada Brasão, propõe um extraordinário tour-de-force ao percorrer os campos, peças e figuras de um brasão real do tipo do utilizado por D.Joao II associando, a cada, um traço marcante ou uma personalidade relevante da nossa história. A Segunda, chamada Mar Português, aborda a Idade das Descobertas que foi a época individualizante da história portuguesa. No penúltimo poema do ciclo (A Última Nau) a época de ouro é encerrada com o desaparecimento de D.Sebastião e o poeta como que desperta de um sonho transportando subitamente o leitor à sua actualidade e confiando-lhe os seus pensamentos. Mas esses pensamentos são uma janela para um futuro em que O Desejado regressa para retomar o caminho interrompido para o Império Universal. No último poema (Prece) Pessoa invoca a intercessão de Deus para reacender a Alma Lusitana para que de novo "conquiste a Distância".
A Terceira Parte de Mensagem, O Encoberto, é quase inesperada e totalmente extraordinária: Fernando Pessoa retoma o tema só indiciado em "A Última Nau" e precisa o que entende pela "Distância" que haveremos de conquistar. Trata-se do advento do Quinto Império do Mundo, um império de cultura, paz e harmonia entre os povos que será liderado por um português- O Encoberto, O Desejado, o Rei ou D.Sebastião, como é indistintamente chamado. Nesta Parte vai intercruzar profecias, mitos antigos, símbolos de vária origem, e factos históricos sempre orientado por três vectores básicos: Portugal que dorme e que tem que despertar; o Quinto Império que há-de seguramente ser estabelecido mas que depende desse despertar; e O Desejado que realizará a visão do poeta.
Apesar de publicado numa época em que uma revisão ortográfica tinha já imposto um padrão muito semelhante ao que ainda hoje utilizamos, Fernando Pessoa optou por utilizar em Mensagem uma ortografia arcaica. Por isso, essa ortografia é parte do Poema ( e, de facto, está-lhe de tal maneira associada que choca ler "Mar Português" em vez do clássico "Mar Portuguez") e nos textos que transcrevi optei pela fidelidade à intenção do poeta, utilizando a ortografia em que ele quis que Mensagem fosse lido.
Antes de passar à apresentação detalhada de cada parte de Mensagem, deixo-vos com um pensamento: sugere a lógica e comprova a história recente que uma agregação pacífica de estados baseada no entendimento terá necessariamente que advir dentro de alguns séculos, quando a tecnologia tal como a conhecemos já for irrelevante, a menos que a Humanidade sofra um retrocesso. Os grandes passos em frente são em geral fruto da influência de alguém extraordinário, com uma visão revolucionária e a capacidade de a levar à prática. Dentro de alguns séculos, quem sabe, talvez o encoberto se descubra e seja mesmo português (ou portuguesa). Afinal, como diz Pessoa, "Deus guarda o corpo e a forma do futuro"!

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terça-feira, 11 de novembro de 2008

As rosas, poema de Ricardo Reis

As Rosas amo dos jardins de Adónis, (hipérbato)
Essas volucres amo, Lídia, rosas, (hipérbato)
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.

A luz para elas é eterna, porque (transporte)
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.

2ª parte – Mais apelativo - sugere a Lídia que faça qualquer coisa

Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente (hipérbato)
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

Vocabulário útil:
Volucres – efémeras, que morrem cedo
Inscientes – que desconhecem, não sabem
Jardim de Adónis – diz a mitologia que as rosas do jardim de Adónis não duravam mais que um dia e como nasciam e cresciam com o dia, o dia era a única realidade que conheciam.

Tema: o poeta incita Lídia a viverem juntos como as rosas de Adónis, porque a vida é breve tal como a das rosas. O “pouco que duramos” revela de novo a brevidade da vida, e assim sendo é preferível ter tudo num só dia, viver intensamente um só dia, mas vivê-lo como se ignorássemos que a vida dura um pouco mais.
Nesta ode há inversão na ordem natural das palavras. Colocando alguma ordem no pensamento teríamos:

Lídia, eu amo as rosas volucres dos jardins de Adónis, que no mesmo dia em que nascem também morrem. (1ª estrofe)
A luz para elas é eterna porque quando nascem já o sol nasceu e quando morrem o sol ainda não morreu (2º estrofe)
Façamos o mesmo da nossa vida, Lídia, inscientes como as rosas que duram só um dia, porque a vida é breve (3ª estrofe)

Importante o binómio vida/morte e dia/noite
A vida para as rosas é o dia, a morte a noite
Para o ser humano a vida é o conhecimento (dia) e o não conhecimento (noite)

Prefiro Rosas.... Ricardo Reis

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre

Se cada ano com a primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam

E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

"Prefiro rosas, meu amor, à pátria, / E antes magnólias amo / Que a glória e a virtude." - Reis demite-se da vida, e prefere as flores à realidade. Não é em vão que Reis clama pelas rosas ao iniciar este poema. As rosas, para os Gregos representam um ideal estético por excelência e opõe-se eficazmente à realidade crua e dolorosa da vida imposta. Estas flores, sobretudo as rosas, são um símbolo da contraposição entre o ideal estético nobre do poeta face à obrigação de viver. Efémeras e belas, as flores não prolongam a dor. Reis prefere as rosas (símbolo do amor), mas ama as magnólias (símbolo da nobreza).
"Logo que a vida me não canse, deixo / Que a vida por mim passe / Logo que eu fique o mesmo." - Marcada indiferença pela vida, um leit motif de Reis ao longo de todas as suas odes. A vida ao passar, deixa-o na margem do rio, do mesmo rio onde ele se senta com Lídia, apenas a observar. Ser alheio, ser estrangeiro é a forma de Reis se proteger da dor, mesmo que assim tenha de se proteger da vida. De notar também aqui os traços clássicos ("Logo que a vida" e "Que a vida").
"Que importa àquele a quem já nada importa / Que um perca e outro vença, /
Se a aurora raia sempre," - o ritmo morto do poema sugere isto mesmo, que Reis está indiferente à vida, às tribulações e movimento, em favor de um "quietismo" assustador, mas ao mesmo tempo mágico e infinito. Para além do homem e das suas preocupações, afinal está o destino e a natureza. Tudo se move e acontece mesmo sem as nossas acções e o egoísmo (de quem vence ou perde) dilui-se no momento.
"Se cada ano com a primavera / As folhas aparecem / E com o Outono cessam?" - eis o reforço do que dizíamos antes. Os ritmos incessantes da natureza. Da primavera (símbolo da renovação) e do Outono (símbolo da negatividade e do fluir do tempo).
"E o resto, as outras coisas que os humanos / Acrescentam à vida, /
Que me aumentam na alma?" - o que os homens acrescentam à vida opõe-se ao que é natural, às flores de gosto clássico. O passar pela vida sem a modificar opõe-se também à mudança, ao que os homens acrescentam à vida.
A interrogação retórica de Reis fica no ar e leva-nos de novo à pátria (em minúsculas, diminuída), à glória e à virtude - "as outras coisas".
"Nada, salvo o desejo de indiferença / E a confiança mole / Na hora fugitiva." - Responde Reis à sua própria interrogação. As coisas da vida trazem-lhe apenas indiferença. Reis espera apenas pela "hora fugitiva", pelo passar do tempo, e fica sereno, sempre igual.
Veja-se agora como é curioso todo o poema. Reis dirige-se a alguém (ao seu amor), mas fala como a um confidente, de maneira calma e solitária. Como se quem o ouvisse não existisse, senão na sua concepção ideal. Até a maneira como o vocativo está intercalado no verso 1 é clássica, fria, formal. Reis fala, mas é como se falasse consigo mesmo, não conseguindo quebrar a barreira que o impede de se encarar o exterior. Esta contemplação, sinal do seu epicurismo, não permite comunicação sincera, nem laços emocionais.
Estilisticamente o poema é constituído por 6 estrofes isomórficas, com um verso decassilábico e dois hexassílabos cada. Os versos são brancos, sem rima, uma marca também de Reis, que lhe advém da influência Horaciana."

"O poema "Prefiro rosas..." de Ricardo Reis, como outros deste heterónimo de Fernando Pessoa, é marcado por temas fortes e constantes da sua obra. Nomeadamente observamos, quase de imediato, a atitude expectante perante a vida, a resignação e a nobreza de espectador perante a realidade que se desenrola perante os seus olhos.
Heterónimo clássico por definição, Reis tem de Pessoa toda a sua disciplina mental, incorporando quase em ícone um classicismo perfeito, quer na forma quer no conteúdo dos seus poemas. Terá surgido a Pessoa como contraposição ao futurismo, representando em teoria uma perfeita imagem do passado no presente - um verdadeiro poeta neoclássico.
Por ser clássico Reis traz uma atitude contemplativa da vida, mas que já não é ingénua como a de Caeiro. Reis é um homem perturbado e a sua aceitação, a sua ataraxia é uma aceitação muito menos pacífica. Por isso podemos dizer que Reis vê na sua atitude perante a vida uma decisão nobre e não apenas uma inevitabilidade, embora esta última perspectiva seja também essencial para o compreender.
Reis sabe que é diferente da Natureza e está revoltado com isso, em vez de, como Caeiro, procurar a proximidade com as coisas. Afasta-se para dentro e encontra nesse afastamento a razão de viver. Austero e contido, ele é - usando palavras de Jacinto do Prado Coelho - civilizado, na beleza do artifício e na prática constante e perfeccionista da Ode.
Esta indiferença, aceitação da vida, recusa do esforço ou do compromisso - tudo isto se encontra nesta Ode.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Dimensão simbólica das personagens em O Memorial do Convento

A Dimensão Simbólica das Personagens






Em Memorial do Convento há dois grupos antagónicos de personagens: a classe opressora, representada pela aristocracia e alto clero, e os oprimidos, o povo. No primeiro grupo destaca-se a actuação do Rei, enquanto que no segundo, além de Baltasar e Blimunda, se integram o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, perseguido pela Inquisição, pela modernidade do seu espírito científico, e Domenico Scarlatti que, pela liberdade de espírito e pelo poder subversivo da sua música, é uma figura incómoda para o Poder. É ainda importante referir que, em Memorial do Convento, as personagens históricas convivem com as fictícias, conduzindo à fusão entre realidade e ficção.

D. João V

Rei de Portugal de 1706 a 1750, desempenha o papel de monarca de setecentos que quer deixar como marca do seu reinado uma obra grandiosa e magnificente - o Convento de Mafra. Este é construído sob o pretexto de que cumpre uma promessa feita ao clero, classe que "santifica" e justifica o seu poder.
É símbolo do monarca absoluto, vaidoso, megalómano, egocêntrico, e mantém com a rainha apenas uma relação de "cumprimento do dever" e, em alguns momentos, pretende ser um déspota esclarecido, à semelhança dos monarcas europeus da sua época (favorece, durante algum tempo, o projecto do padre Bartolomeu de Gusmão e contrata Domenico Scarlatti para ensinar música a sua filha, a infanta Maria Bárbara). Dado aos prazeres da carne e a destemperos vários (teve muitos bastardos e a sua amante favorita era a Madre Pauta do Convento de Odivelas). Sacrificou todos os homens válidos e a riqueza do país na construção do convento.

Maria Ana Josefa
De origem austríaca, a rainha, surge como uma pobre mulher cuja única missão é dar herdeiros ao rei para glória do reino e alegria de todos. É símbolo do papel da mulher da época: submissa, simples procriadora, objecto da vontade masculina.

Baltasar Sete-Sóis
Baltasar Mateus, de alcunha Sete-Sóis, deixa o exército depois de ter ficado maneta em combate contra os espanhóis, conhece Blimunda em Lisboa, e com ela partilha a vida e os sonhos. De ex-soldado passa a açougueiro em Lisboa e, posteriormente, integra a legião de operários das obras do convento. A sua tarefa máxima vai ser a construção da passarola, idealizada pelo padre Bartolomeu de Gusmão, passando a ser o garante da continuidade do projecto, quando o padre Bartolomeu desaparece em Espanha.

Baltasar acaba por se constituir como a personagem principal do romance, sendo quase "divinizado" pela construção da passarola: "maneta é Deus, e fez o universo. (...) Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão-de voar. " (p. 69) - diz o padre Bartolomeu a propósito do seu companheiro de sonhos. Após a morte do padre, Baltasar ocupa-se da passarola e, um dia, num descuido, desaparece com ela nos céus. Só é reencontrado, nove anos depois, em Lisboa, a ser queimado no último auto-de-fé realizado em Portugal.

O simbolismo desta personagem é evidente, a começar pelo seu nome: sete é um número mágico, aponta para uma totalidade (sete dias da criação do mundo, sete dias da semana, sete cores do arco-íris, sete pecados mortais, sete virtudes); o Sol é o símbolo da vida, da força, do poder do conhecimento, daí que a morte de Baltasar no fogo da Inquisição signifique, também, o regresso às trevas, a negação do progresso. Baltasar transcende, então, a imagem do povo oprimido e espezinhado, sendo o seu percurso marcado por uma aura de magia, presente na relação amorosa com Blimunda, na afinidade de "saberes" com o padre Bartolomeu e no trabalho de construção da passarola.

Baltasar é uma das personagens mais bem conseguidas de todo o romance porque descrever a ambição de um rei, as intrigas duns frades e a loucura de um cientista é relativamente fácil, mas escolher uma personagem do povo, maneta e vagabunda, que aparentemente não tem muito para dizer e convertê-la no fio condutor da narrativa e no protagonista duma das mais belas e sentidas histórias de amor, é algo que só conseguem autores como Cervantes, que de um criado como Sancho Pança criou um arquétipo e um digno "antagonista" de Dom Quixote.

Baltasar é um homem simples, elementar, fiel, terno e maneta, que confina a capacidade de surpresa com a resignação típica das pessoas humildes de coração e de condição. Aceita a vida que lhe foi dado viver e a mulher que o destino lhe ofereceu, sem assombro nem protestos; acata as suas circunstâncias e não tem medo nem do trabalho nem da morte. Não é um herói nem um anti-herói, é simplesmente um homem.

Blimunda de Jesus
Blimunda de Jesus é "baptizada" de Sete-Luas pelo padre Bartolomeu de Gusmão ("Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, (...) Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem baptizada estava, que o baptismo foi de padre, não alcunha de qualquer um" - pág. 94).

Conhece Baltasar quando assiste à partida de sua mãe, acusada de feitiçaria, para o degredo. Logo os dois se apaixonam, e este amor puro e verdadeiro foge às convenções, subvertendo a moral tradicional e entrando no domínio do maravilhoso - cf. primeira noite de amor (pp. 56-57).

Blimunda tem um dom: vê o interior das pessoas quando está em jejum, herdou da mãe um "outro saber" e integra-se no projecto da passarola, porque, para o engenho voar, era preciso "prender" vontades, coisa que só Blimunda, com o seu poder mágico, era capaz de fazer. Blimunda é, simultaneamente, uma personagem que releva o domínio do maravilhoso, pelo dom que tem de ver "o interior" das pessoas (poder que nunca exerce sobre Baltasar: "Nunca te olharei por dentro" - p. 57), porque amar alguém é aceitá-lo sem reservas. Blimunda encerra uma dimensão trágica na vivência da morte de Baltasar.

Simbolicamente, o nome da personagem acaba por funcionar como uma espécie de reverso do de Baltasar. Para além da presença do sete, Sol e Lua completam-se: são a luz e a sombra que compõem o dia - Baltasar e Blimunda são, pelo amor que os une, um só. A relação entre os dois é também subversiva, porque não existe casamento oficial e porque os dois têm os mesmos direitos, facto inverosímil em pleno século XVIII.

Como outras personagens femininas de Saramago, também Blimunda tem uma grande firmeza interior, uma forma de oferecer-se em silêncio e de aceitar a vida e os seus desígnios sem orgulho nem submissão, com a naturalidade de quem sabe onde está e para quê.

Glória Hervás Fernandez, in Uma leitura espanhola de Memorial do Convento de José Saramago, in revista Palavras, n.º 21, Primavera de 2002.

Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão
O padre Bartolomeu, personagem real da História, forma com Baltasar e Blimunda o núcleo mágico e trágico do romance. Vive com uma obsessão, construir a máquina de voar, o que o leva a encetar uma investigação científica na Holanda. Como cientista ignora os fanatismos religiosos da época e questiona todos os principias dogmáticos da Igreja. O seu sonho de voar e as suas inabaláveis certezas científicas revelam orgulho, "ambição de elevar-se um dia no ar, onde até agora só subiram Cristo, a Virgem e alguns santos eleitos" e tornam-no persona non grata para a Inquisição que o acusa de bruxaria, obrigando-o a fugir para Espanha e a deixar o seu sonho/projecto nas mãos de Baltasar.

A sua obsessão de voar domina-o de tal forma, que ele não se inibe de integrar no seu projecto um casal não abençoado pela Igreja e de aceitar e usufruir das capacidades heréticas de Blimunda, que farão a passarola voar. A passarola, símbolo da concretização do sonho de um visionário, funciona de uma forma antagónica ao longo da narrativa: é ela que une Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu, mas também é ela que vai acabar por separá-los.


Domenico Scarlatti

Artista estrangeiro contratado por D. João V para iniciar a infanta Maria Bárbara na arte musical. O poder curativo da sua música liberta Blimunda da sua estranha doença, permitindo-lhe cumprir a sua tarefa ("Durante uma semana (...) o músico foi tocar duas, três horas, até que Blimunda teve forças para levantar-se, sentava-se ao pé do Cravo, pálida ainda, rodeada de música como se mergulhasse num profundo mar, (...) Depois, a saúde voltou depressa" - pp. 191-2).

Scarlatti é cúmplice silencioso do projecto da passarola ("Saiu o músico a visitar o convento e viu Blimunda, disfarçou um, o outro disfarçou, que em Mafra não haveria morador que não estranhasse, e (...) fizesse logo seus juízos muito duvidosos" p. 231).

É, ainda, Scarlatti que dá a notícia a Baltasar e Blimunda da morte do padre Bartolomeu. A música do cravo de Scarlatti simboliza o ultrapassar, por parte do homem, de uma materialidade excessiva, e o atingir da plenitude da vida.

Bartolomeu de Gusmão, esse, aliado em diálogo excepcional com o músico Scarlatti, o único que pode de raiz compreender as suas congeminações aladas, representa a possibilidade de articulação entre a cultura e o humano, entre o saber e o sonho, entre o conhecimento e o desejo (...) São os caminhos da ficção os que mais justificadamente conduzem ao encontro da verdade.

Maria Alzira Seixo, in O Essencial sobre José Saramago, INCM.

Relações amorosas em Memorial do Convento

Espaço e Personagens em Memorial do Convento

Espaço
Evocação de dois espaços principais determinantes no desenrolar da acção: Mafra e Lisboa.

Mafra: passa da vila velha e do antigo castelo nas proximidades da Igreja de Santo André para a vila nova em cujas imediações se vai construir o convento. A vila nova cria-se justamente por causa da construção do convento.

Lisboa: descrevem-se vários espaços dos quais se destacam o Terreiro do Paço, o Rossio e S. Sebastião da Pedreira.

Portugal beneficiava da riqueza proveniente do ouro do Brasil. D. João V em decreto de 26 de Novembro de 1711 autorizou que se fundasse, na vila de Mafra, um convento dedicado a Santo António e pertencente à Província dos Capuchos Arrábidos.

Ludwig, arquitecto alemão, estava em Lisboa, em 1700, contratado como decorador-ourives, pelos Jesuítas. Foi a ele que entregaram o projecto do Mosteiro, destinado a albergar 300 frades. A traça do edifício terá sido executada por volta de 1714-1715 ao passo que a igreja, avançada ate ao zimbório, foi sagrada em 1730. Outras dependências foram construídas para além da igreja: portaria, refeitório, enfermaria, cozinha, claustros, biblioteca.

Terreiro do Paço: local onde primeiramente trabalha Baltasar na sua chegada a Lisboa, descrição pormenorizada e sugestiva da procissão do Corpo de Deus, em Junho. É um espaço fulgurante de vida, com grande importância no contexto da sociedade lisboeta da época.

Rossio: surge no início da obra, relacionado com o auto-de-fé que aí se realiza. A reconstituição do auto-de-fé é fidedigna, a cerimónia tinha por base as sentenças proferidas pelo Tribunal do Santo Ofício e nela figuravam não só reconciliados, mas também relaxados, aqueles que eram entregues à justiça secular para a execução da pena de morte. O dia da publicação do auto era festivo, segundo se pode constatar das defesas efectuadas. A procissão propriamente dita saía na manhã de domingo da sede do Santo Ofício e percorria a cidade de Lisboa antes de chegar ao local da leitura das sentenças, numa das praças centrais. À frente seguiam os frades de S. Domingos com o pendão da Inquisição. Atrás destes os penitentes por ordem de gravidade das culpas, cada um ladeado por dois guardas. Depois, os condenados à morte, acompanhados por frades, seguidos das estátuas dos que iam ser queimados em efígie. Finalmente os altos dignitários da Inquisição, precedendo o Inquisidor-Geral. A sorte dos réus vinha estampada nos sambenitos (hábito em forma de saco, de baeta amarela e vermelha que se vestia aos penitentes dos autos-de-fé) para que a compacta multidão que se aglomerava soubesse o destino dos condenados.

S. Sebastião da Pedreira: local mágico ao qual só acedem o padre, Bartolomeu Lourenço, o Voador, Baltasar e Blimunda. É lá que se encontra a máquina voadora que está a ser construída em simultâneo com o Convento de Mafra. A passarola insere-se na narrativa como um mito, do qual o homem depende para viver, mito proibido mas que se evidenciará e se deixará ver pelo voo espectacular que se realizará, mostrando que ao homem nada é impossível e que a vida é uma grande aventura. S. Sebastião da Pedreira era, àquele tempo, um espaço rural, onde não faltavam fontes, terras de olival, burros, noras, e onde se situava a quinta abandonada. Ali irão as personagens, variadíssimas vezes e pelas razões mais diversas.

Personagens
D. João V: proclamado rei a 1 de Janeiro de 1707, casou, no ano seguinte, com a princesa Maria Ana de Aústria e vive um dos mais longos reinados da nossa história. Surge na obra só pela sua promessa de erguer um convento se tivesse um filho varão do seu casamento. O casal real cumpre, no início da obra, com artificialismo, os rituais de acasalamento. O autor escreverá o memorial para resgatar o papel dos oprimidos que o construíram. Rei e rainha são representantes do poder, da ordem e da repressão absolutista.

Baltasar e Blimunda: são o casal que, simbolicamente, guardará os segredos dos infelizes, dos humilhados, dos condenados, enfim, dos oprimidos. Conhecem-se durante um auto-de-fé, levado a cabo pela Inquisição, o de 26 de Julho de 1711 e não mais deixam de se amar. Vivem um amor sem regras, natural e instintivo, entregando-se a jogos eróticos. A plenitude do amor é sentida no momento em que se amam e a procriação não é sonho que os atormente como sucede com os reis.

Blimunda: com poderes que a tornavam conhecedora dos outros nos seus bens e nos seus males, recusando-se, no entanto, a olhar Baltasar por dentro. Vai ser ela quem, com Baltasar, guardará a passarola quando o padre Bartolomeu vai para Espanha onde, afinal, acabará por morrer. Ela e Baltasar sentir-se-ão obrigados a guardá-la como sua, quando, após uma aventura voadora, conseguira aterrar na serra do Barregudo, não longe de Monte Junto, perdido o rasto do padre que desaparecera como fumo. Quando voltaram a Mafra, dois dias depois, todos achavam que tinha voado sobre as obras da basílica o Espírito Santo e fizeram uma procissão de agradecimento. Começaram a voltar ao local onde a passarola dormia para cuidar dela, remendá-la, compô-la e limpá-la.

Um dia Baltasar foi verificar os efeitos do tempo na passarola mas Blimunda não o acompanhou e ele não voltou. Procurou-o durante 9 anos, infeliz de saudade, na sua sétima passagem por Lisboa encontrou-o entre os supliciados da Inquisição, a arder numa das fogueiras, disse-lhe "Vem" e a vontade dele não subiu para as estrelas pois pertencia à terra e a Blimunda.

Povo: todos os anónimos que construíram a História são representados através daqueles a quem o autor dá nome: Alcino, Brás, Nicanor, etc.

Padre Bartolomeu de Gusmão: tem por alcunha O Voador, gosto pelas viagens, estrangeirado, a ciência era, para ele, a preocupação verdadeiramente nobre. O rei mostra-se muito empenhado no progresso do seu invento. A populaça troça dele, Baltasar e Blimunda serão ouvintes atentos das suas histórias e sermões. A amizade destes dois seres, simples, enigmáticos, mas verdadeiros protagonistas do Memorial, é tão valiosa para o padre como necessária à representatividade da obra como símbolo de solidariedade e beleza em dicotomia com egoísmo e poder.

Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu Lourenço formam um trio que vai pôr em prática o sonho de voar. Assim, o trabalho físico e artesanal, de Baltasar, liga-se à capacidade mágica de Blimunda e aos conhecimentos científicos do padre. Todos partilham do entusiasmo na construção da passarola, aos quais se junta um quarto elemento, o músico Domenico Scarlatti, que passa a tocar enquanto os outros trabalham. O saber artístico junta-se aos outros saberes e todos corporizam o sonho de voar.

Scarlatti: veio como professor do irmão de D. João V, o infante D. António, passando depois a ser professor da infanta D. Maria Bárbara. Exerceu as funções de mestre-de-capela e professor da casa real de 1720 a 1729, tendo escrito inúmeras peças musicais durante esse tempo. No contexto do romance, para além do seu contributo na construção da passarola é determinante na cura da doença de Blimunda; durante uma semana tocou cravo para ela, até ela ter forças para se levantar.

Crítica da guerra: absurda, sacrifica homens em nome de um interesse que lhes é completamente estranho e abandona-os à sua sorte quando doentes ou estropiados.

José Saramago: Memorial do Convento

Resumo
Capítulo I
Já há dois anos que D. João V está casado com D. Maria e até agora ela ainda não engravidou. A rainha reza novenas e, duas vezes por semana, recebe o rei nos seus aposentos. Quando ambos se casaram, o rei dormia com a rainha todos os dias, mas devido ao cobertor de penas que ela trouxe da Áustria e porque com o passar do tempo, os odores de ambos faziam com que o cobertor ficasse com um cheiro insuportável, o rei deixou de dormir com a rainha.

El-rei está a montar em puzzle a Basílica de S. Pedro de Roma para se distrair e porque gosta. Mas a rainha está á espera do rei para que ele cumpra o seu dever conjugal. E para os aposentos da rainha o rei se dirige, mas entretanto chegou ao castelo D. Nuno da Cunha, bispo inquisidor, e traz consigo um franciscano velho. Afirma o bispo que o frei António de S. José assegurou que se o rei se dignasse a construir um convento em Mafra, teria descendência. Enquanto isso, a rainha conversa com a marquesa de Unhão, rezam jaculatórias e proferem nomes de santos.

Após a saída do bispo e do frei, o rei anuncia-se e, consumado o acto, D. Maria tem que "guardar o choco", a conselho dos médicos e murmura orações, pedindo ao menos um filho que seja. D. Maria sonha com o infante D. Francisco, seu cunhado e dorme em paz, adormecida, invisível sob a montanha de penas, enquanto os percevejos começam a sair das fendas, dos refegos, e se deixam cair do alto dossel, assim tornando mais rápida a viagem. D João também sonhará esta noite, nos seus aposentos. Sonhará com o filho que poderá advir da promessa da construção do convento de Mafra.

Capítulo II
Se a concepção da rainha ocorresse, seria vista como mais um entre os vários milagres tradicionalmente relacionados à ordem de São Francisco. Diz-se, por exemplo, que um tal frei Miguel da Anunciação, mesmo depois de morto, conservara o seu corpo intacto durante dias, atraindo, desde então, uma grande quantidade de devotos para a sua igreja. Noutra ocasião, a imagem de Santo António, que vigiava uma igreja franciscana, locomovera-se até à janela, onde ladrões tentavam entrar, pregando-lhes assim um grande susto. Este caíra ao chão, tendo sido socorrido por fiéis, onde acabou por se recuperar. Outro caso, é o do furto de três lâmpadas de prata do convento de S. Francisco de Xabregas no qual entraram gatunos pela clarabóia e, passando junto à capela de Santo António, nada ali roubaram. Entrando na igreja, os frades deram com ele às escuras, e verificaram que não era o azeite que faltava, mas as lâmpadas que haviam sido levadas; os religiosos ainda puderam ver as correntes de onde pendiam as lâmpadas se balançando e saíram em patrulhas pelas estradas, atrás dos ladrões. E então, desconfiados de que os ladrões pudessem estar ainda escondidos na igreja, deram a volta, percorreram-na e só então, viram que no altar de Santo António, rico em prata, nada havia sido mexido. O frade, inflamado pelo zelo, culpou Santo António por ter deixado ali passar alguém, sem que nada lhe tirasse, e ir roubar ao altar-mor: O frade deixou que o Menino "como fiador", até que o santo se dignasse a devolver as lâmpadas. Dormiram os frades, alguns temerosos que o santo se desforrasse do insulto... Na manhã seguinte, apareceu na portaria do convento um estudante que, querendo falar ao prelado (bispo), revelou estarem as lâmpadas no Mosteiro da Cotovia, dos padres da Companhia de Jesus. Desta forma, faz-nos desconfiar que o tal estudante, apesar de querer ser padre, fora o autor do furto e que, arrependido, deixara lá as lâmpadas, por não ter coragem de as devolver pessoalmente. Voltaram as lâmpadas a S. Francisco de Xabregas, e o responsável não foi descoberto.

De referir, que o narrador volta ao caso do frei António de S. José, e faz-nos de novo desconfiar de que o frei, através do confessor de D. Maria Ana, tinha sabido da gravidez da rainha muito antes do rei.

Capítulo III
Passado o "Entrudo", como de costume, durante a Quaresma as ruas encheram-se de gente que fazia cada uma as suas penitências. Segundo a tradição, a Quaresma era a única época em que as mulheres podiam percorrer as igrejas sozinhas e assim gozar de uma rara liberdade que lhes permitia até mesmo encontrarem-se com os seus amantes secretos. Porém, D. Maria Ana não podia gozar dessas liberdades pois, além de ser rainha, agora estava grávida. Assim, tendo ido para a cama cedo, consolou-se em sonhar outra vez com D. Francisco, seu cunhado. Passada a Quaresma, todas as mulheres retornaram para a reclusão das suas casas.

Capítulo IV
Baltasar regressa a Lisboa, vindo da guerra, onde perdeu a mão esquerda numa batalha contra Espanha, para decidir a quem pertencia o trono espanhol. Ao voltar a Lisboa traz consigo os ferros que mandara fazer para substituir a mão que perdera na guerra. A caminho de Lisboa Baltasar mata um homem de dois que o tentaram assaltar. Não sabia se ficaria em Lisboa ou se seguiria para Mafra onde estavam os seus pais, enquanto não se decide vagueia pelas ruas da capital, onde conhece João Elvas, que também fora soldado, com quem passa a noite junto de outros mendigos num telheiro abandonado. Antes de dormirem todos contaram histórias de assassinatos e mortes que ocorreram na cidade, as quais compararam com mortes que alguns presenciaram na guerra.

Capítulo V
D. Maria Ana está de luto pela morte do seu irmão José, imperador da Áustria. Apesar de o rei ter declarado luto, a cidade está alegre, pois vai haver um auto-de-fé. É domingo e os moradores gostam de ver as torturas impostas aos condenados. O rei não irá participar na festa mas jantará na inquisição juntamente com os irmãos, infantes e a rainha. Mesa recheada de comida, o rei não bebe, dando o exemplo.

Nas ruas o povo furioso grita impropérios aos condenados e as mulheres nas varandas guincham dizendo que a procissão é uma serpente enorme. Entre este mar de gente encontra-se Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda, procurando sua filha. Sebastiana imaginava que Blimunda estaria também condenada a degredo. Acaba por ver a filha entre as pessoas que acompanham o auto, mas sabe que ela não poderá falar-lhe, sob pena de condenação. Blimunda acompanha o padre Bartolomeu Lourenço. Perto dela está um homem, Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, a quem ela se dirige e cujo nome procura saber. Voltando a sua casa, Blimunda leva consigo o padre e deixa a porta aberta para que o recém conhecido também possa entrar. Jantaram... Antes de sair o padre deitou a bênção em tudo o que cercava o casal. Blimunda convida Baltasar para que fique morando na sua casa, pelo menos até que ele tivesse que voltar a Mafra. Deitaram-se, Blimunda era virgem e entrega-se a ele. Com o sangue escorrido ela desenhou uma cruz no peito de Baltasar. No dia seguinte, ao acordar, Blimunda, sem abrir os olhos, come um pedaço de pão e promete a Baltasar que nunca o olharia "por dentro".

Capítulo VI
Este capítulo começa com Baltasar Sete-Sóis a realçar a importância do pão para os portugueses e o facto dos estrangeiros que vivem em Portugal estarem fartos de comer pão. Assim eles produziram e trouxeram dos seus países os seus alimentos e vendiam-nos muito mais caros sendo difícil aos portugueses comprarem-nos. Depois Baltasar conta a história caricata de uma frota francesa; quando ela chegou a Portugal, os portugueses pensavam que vinha invadir o nosso país, afinal tratava-se de um carregamento de bacalhau.

No decorrer do capítulo Baltasar fala com o padre Bartolomeu Lourenço, Bartolomeu diz sonhar que um dia conseguirá voar e disse a Baltasar que o Homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre e um dia voará. Baltasar dá a sua opinião argumentando que para o homem voar terá que nascer com asas. O padre Bartolomeu alerta Baltasar para o facto de ser um pecado ele dormir com Blimunda sem serem casados. Depois Baltasar e Bartolomeu vão para S. Sebastião da Pedreira para verem a máquina que Bartolomeu inventou para um dia poder voar e à qual chamou passarola. Quando chegaram, Bartolomeu mostrou o desenho da passarola a Baltasar explicando-lhe como é que tencionava fazê-Ia voar. Após a explicação, Bartolomeu pede-lhe para o ajudar na construção da passarola. Inicialmente Baltasar mostra-se receoso em aceitar a proposta, mas depois de Bartolomeu dizer que o facto de Baltasar ser maneta não tem importância, então este aceita o desafio.

Capítulo VII
No início deste capítulo a falta de dinheiro é o grande obstáculo que Baltasar tem de ultrapassar para começar a construção da passarola. Então Baltasar começa a trabalhar para ganhar o dinheiro necessário para poderem realizar o seu sonho, fazer a passarola voar.

No decorrer deste capítulo o narrador relata os assaltos que os portugueses sofreram durante as suas viagens marítimas. Fala também sobre a gravidez de D. Maria Ana que teve uma menina, embora D. João quisesse um rapaz; mas o mais importante é que a menina nasceu saudável. Na altura do nascimento a seca que durava há oito meses acabou, vindo assim muita chuva. Mais à frente o narrador narra o baptizado da princesa, a quem chamaram Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara e no fim deste capítulo anuncia a morte de Frei António de S. José.

Capítulo VIII
Baltasar e Blimunda estão a dormir na sua cama. Entretanto Blimunda acorda, e estende a mão para o saquitel onde costuma guardar o pão, mas apenas acha o lugar; então procura por baixo do travesseiro e no chão, no entanto Baltasar diz-lhe para não procurar mais, porque não irá encontrar o pão. Blimunda com os olhos fechados, tapando-os com as mãos, implora a Baltasar para que lhe de o pão, mas este só lhe dará o pão depois de Blimunda lhe contar que segredos esconde. Esta tenta sair da cama mas Baltasar não deixa, e acaba por haver um conflito entre eles e ele acaba por lhe dar o pão. Passados uns breves momentos após Blimunda ter comido o pão virou-se para Baltasar e diz-lhe: "Eu posso ver as pessoas por dentro, mas só o faço quando estou em jejum e promete nunca ver Baltasar por dentro. Ele não acredita. Então ela diz a Baltasar que lhe irá provar, que no dia seguinte quando acordassem iriam os dois à rua e ele iria atrás para que Blimunda não o pudesse ver, e Blimunda iria à frente de olhos fechados e que lhe diria o que veria por dentro das pessoas, o que estaria no interior da terra, por baixo da pele e até por baixo das roupas, mas tudo isto acabaria quando o quarto da lua mudasse. E assim foi... Entretanto nasceu o infante D. Pedro, segundo filho dos reis D. João e D. Maria Ana Josefa.

Capítulo IX
Baltasar e Blimunda mudam-se para a quinta do Duque de Aveiro, em S. Sebastião da Pedreira, para trabalhar na construção da máquina de voar do Padre Bartolomeu Lourenço. Apesar de não ter a mão esquerda, Baltasar tem a ajuda de Blimunda, uma mulher vidente.

El-rei que ainda gosta de brinquedos protege o padre da Inquisição. Este decide partir para a Holanda, terra de muitos sábios sobre alquimia e éter, elemento que faz com que os corpos se libertem do peso da terra.

Nesta altura as freiras de Santa Mónica manifestam-se contra a ordem de D. João V de que elas só podem falar com familiares.

O padre abençoou o soldado e a vidente, despediu-se e partiu, deixando a quinta e a máquina de voar ao cuidado deles. Antes de partir para Mafra, o par decide não ir ao auto-de-fé e vão assistir às touradas, que é um bom divertimento. As touradas é como assar o touro em vida, tortura-se o touro enquanto o público aplaude a mísera morte. Cheira a carne queimada mas o povo nem nota pois está habituado ao churrasco do auto-de-fé.

Na madrugada seguinte Baltasar e Blimunda partem para Mafra com uma trouxa e alguma comida.

Capítulo X
Baltasar e Blimunda chegam a Mafra a casa dos pais de Baltasar, mas só encontram sua mãe em casa; o pai foi trabalhar. Sua mãe fica chocada por ver seu filho e ver que tinha perdido a mão. Blimunda fica entre portas a espera que seu marido chame para conhecer a sua nova família. Ela entra e fica a falar um pouco com sua sogra.

No fim do dia chega o seu pai João Francisco e conversam sobre o que tinha acontecido na guerra. Blimunda fala um pouco sobre a sua família e a uma dada altura diz que sua mãe foi degredada porque a tinham denunciado ao Santo Oficio. O pai de Baltasar fica preocupado, porque pensa que ela é judia ou cristã nova, mas Baltasar diz ao seu pai que sua sogra tinha sido degredada por ter visões e ouvir vozes, diz ainda que pretendem ficar em Mafra e que estão a pensar em comprar casa. Seu pai conta-lhe que vendeu as terras que tinha na vela, ao rei, porque queria construir um convento de frades.

João e Sete-Sois foram à salgadeira e tiraram um bocado de toucinho, que dividiram em quatro tiras e colocaram uma em cada fatia de pão e distribuíram por todos. Ficam a olhar Blimunda para verem se ela come a sua fatia, seu pai já podia tirar sua dúvida se ela era ou não judia, mas ela come-a e assim o sogro fica mais descansado. Baltasar diz a seu pai que precisa de arranjar um emprego para si e para sua mulher, todos ficaram com dúvidas se ele conseguiria arranjar trabalho devido à mão.

No outro dia, conheceram a nova parente, Inês e seu marido que falaram sobre a morte do filho do el-rei e do seu filho que está doente. Baltasar caminha sobre as terras da vela e relembra os momentos que ali passou, encontra o seu cunhado e conversa sobre o convento que ali se construirá, e sobre os frades que irão vir viver para ali. Ao chegar a casa encontra sua mãe a falar com sua mulher sobre a rainha que agora visita muitas igrejas e muitos conventos onde reza pelo seu marido que está muito doente. D. Maria fica em Lisboa a rezar enquanto seu marido se acaba de curar naqueles campos de Azeitão, onde os franciscanos da Arrábida estão a assistir. O infante D. Francisco sozinho em Lisboa tenta fazer a corte a sua cunhada deitando contas à morte do rei. D. Maria diz-lhe que seu marido ainda não morreu e que não pensa em se casar de novo.

Capítulo XI
O padre Bartolomeu regressou da Holanda, não sabemos se trouxe ou não os segredos que buscava. Foi à Quinta de S. Sebastião da Pedreira; três anos inteiros haviam se passado e tudo estava abandonado, o material que trabalhara disperso pelo chão, "ninguém adivinharia o que ali andar perpetrando." O padre vê rastos de Baltasar, mas não vê os de Blimunda e julga que ela morrera.

Depois, parte para Coimbra, não sem antes passar por Mafra, onde vai ver os homens que iniciam o trabalho do Convento. Procurou por Baltasar e Blimunda, junto do pároco que informa que os casara em Lisboa. Blimunda veio abrir a porta e reconheceu-o pelo vulto, quando desmontava. Beijou-lhe a mão. Marta Maria estranhou que a sua nora fosse abrir a porta a quem não batesse ainda.

Mais tarde, chegam Baltasar e o pai e aquele, por convivência com Blimunda, ao ver a mula adivinha tratar-se do padre. Marta Maria, que já desconfiava ter uma "nascida" (tumor) no ventre, lamenta nada ter a oferecer ao padre, nem comida, nem abrigo para passar a noite. O padre Bartolomeu dorme na casa do pároco e, pela madrugada, chegam Blimunda e Baltasar. Ela sem comer. Bartolomeu ama-os, eles sabem; Baltasar pergunta se o éter é a alma e o padre diz que não, que é da vontade dos vivos que ele se compõe. Blimunda espantou-se e o padre pediu que ela o olhasse por dentro. Ela viu uma nuvem escura, à altura do estômago. Era da vontade, diferente da alma, o que faria voar a passarola. Bartolomeu montou na mula, disse que ia a Coimbra e que, quando voltasse a Lisboa, mandaria avisar os dois para que lá estivessem. Baltasar ofereceu o pão a Blimunda, mas ela pediu, primeiro, para ver a vontade dos homens que trabalhavam no convento.

Capítulo XII
O filho mais velho de Inês Antónia e Álvaro Diogo morreu há três meses de bexigas; Álvaro tem a promessa de conseguir emprego na construção do convento; Marta Maria sofre de dores terríveis no ventre. João Francisco está infeliz porque o filho partirá novamente para Lisboa, e o convento dará trabalho a muitos homens. Blimunda foi à missa em jejum e viu que dentro da hóstia também havia a tal nuvem fechada, vontade dos homens...

O padre Bartolomeu de Gusmão escreve de Coimbra e diz ter chegado bem, mas agora viera uma nova carta para que seguissem para Lisboa "tão cedo pudessem". Partiram em dois meses, porque o rei vinha a Mafra inaugurar a obra do convento. Sete-Sóis e Blimunda conseguiram lugar na igreja. No dia seguinte formou-se a procissão, o rei apareceu. A pedra principal foi benzida; foi tanta a pompa que gastaram-se nisso duzentos miI cruzados. Partiram Baltasar e Blimunda para Lisboa. A mãe Marta Maria despede-se do filho dizendo que não o tornará a ver. Blimunda e Sete-Sóis dormem na estrada: Por fim chegaram à quinta onde esperariam o padre voador. Mal chegaram, choveu.

Capítulo XIII
Os arames e os ferros enferrujaram-se e os panos da passarola cobrem-se de mofo; o vime, ressequido, destrança-se. Baltasar experimenta os ferros, tudo perdido, é melhor começar outra vez. Enquanto o padre não chega, constrói-se a forja, vão a um ferreiro e vêem como se faz o fole.

Quando Bartolomeu de Gusmão chegou e viu o fole pronto, peça por peça desenhada e feita por Sete-Sóis, ficou contente e disse; "Um dia voarão os filhos do homem." Encomendou a Blimunda duas mil vontades dos homens e mulheres que morreriam a fim de que, junto com âmbar e imãs, pudessem fazer subir a nau que construíam. O padre distribui tarefas, indica a Sete-Sóis onde comprar ferro, vime e peles para os foles, pede segredo absoluto de tudo o que estão a fazer. Trabalham na passarola quase um ano inteiro, procissões passam em delírio pelas ruas, povo misturado ao clero, clero misturado aos nobres.

Capítulo XIV
O padre Bartolomeu Lourenço voltou a Coimbra já doutor em cânones, e agora pode ser visto na casa de uma viúva.

D. João manda vir da Itália o maestro barroco Domenico Scarlatti, a fim de dar lições de música à sua filha, a infanta D. Maria Bárbara. Scarlatti e Bartolomeu tornam-se amigos, partilhando as mesmas ideias e sonhos. Confiante em Scarlatti, o padre leva-o a S. Sebastião da Pedreira e apresenta os amigos e a passarola a Scarlatti. Blimunda chega da horta trazendo "brincos de cereja", a fim de brincar com Baltasar. Quando os viu, o músico pensou: Vénus e Vulcano... O padre diz a Scarlatti que ele e Baltasar têm ambos 35 anos e que não poderiam ser pai e filho. Mas poderiam ser irmãos, portanto, desde o começo da história, o tempo que se passou pode ser contado, nove anos. Mostrada a passarola por dentro, retira-se Scarlatti, mas promete voltar e trazer o cravo, que tocará enquanto Blimunda e Baltasar trabalham. O padre lá permaneceu, onde treinou o seu sermão para que os dois ouvissem. Discutem sobre Deus uno, trino. Blimunda adormeceu com a cabeça apoiada no ombro de Baltasar. Um pouco mais tarde ele levou-a para dormir. O padre saiu para o pátio, e toda a noite ali permaneceu, tomado por tentações.

Capítulo XV
Scarlatti voltou muitas vezes à quinta e pedia que não parassem o trabalho; ali, em meio aos ruídos e grandes barulhos, confusão, tocava o cravo.

Há um surto de varíola em Lisboa, oriundo de uma nau vinda do Brasil. O padre pede à Blimunda que vá à cidade e recolha as vontades das pessoas. É assim que ela, em jejum, durante um dia inteiro se põe a recolher tais vontades. Um mês depois, são mais de mil vontades presas ao frasco em que Blimunda as recolhia. E quando a epidemia terminou, ela tinha aprisionado duas mil vontades. Foi então que caiu doente. Nada a curava da extrema magreza; mas um dia, Scarlatti pôs-se a tocar e ela abriu os olhos e chorou. O maestro veio, então, todos os dias, quer fizesse chuva ou sol; e a saúde de Blimunda voltou depressa.

Um dia, Baltasar e Blimunda vão a Lisboa e encontram Bartolomeu doente, magro e pálido. Parecia ter medo de algo.

Capítulo XVI
Neste capítulo, comenta-se fortemente a governação do reino, criticando a maneira de se fazer justiça, onde o poder e a riqueza se sobrepõem sempre àqueles que nada têm nem podem... Até mesmo o destino, se calhar, foi injusto ao deixar morrer afogado o Infante D. Miguel, poupando a vida ao seu irmão o Infante D. Francisco.

Entretanto, criada pelo Padre Bartolomeu Lourenço, a passarola, a máquina de voar, está pronta. Em S. Sebastião da Pedreira, Baltasar e Blimunda, têm de deixar a quinta que foi perdida por El-rei para o Duque de Aveiro. O Padre Bartolomeu Lourenço, aguarda a vinda de El-rei para provar a máquina e quer dividir a glória e a fama do seu invento com Blimunda e Baltasar. Porém o Padre anda agitado e receoso de que o acusem de feiticeiro e judeu, embora conte com o apoio de El-rei.

O tempo passa, El-rei não chega; já é Outono e a máquina necessita de sol para se erguer do chão! Certo dia, eis que o Padre Bartolomeu Lourenço chega pálido e assustado dizendo que tinha de fugir, pois o Santo Ofício já andava à sua procura para o prender! Apontou a passarola e disse que iriam fugir nela! Depois de preparada pedem ajuda ao Anjo Custódio para aquela "viagem"... e partiram pelos ares sacudidos pelos ventos até onde o destino os quis levar. Passam por momentos de medo, euforia, deslumbramento e felicidade, considerando-se loucos. Lá do alto avistam Lisboa, o Terreiro do Paço, as ruas, etc... Nesta altura procuram o padre para o prender e percebem que este fugiu. A noite chega, sem sol a máquina começa a perder altitude... Estão assustados. O Padre Bartolomeu Lourenço, resignado, espera o fim mas Blimunda como que inspirada, consegue controlar a máquina com a ajuda de Baltasar e evitam o pior. Uma vez em terra firme, deixam-se escorregar para fora e consideram um milagre terem-se salvo sem qualquer ferimento.

Não sabem onde estão. O Padre acha que vão encontrá-los e que morrerão. Blimunda e Baltasar, confiantes, acreditam que se se salvaram daquele perigo, salvar-se-ão dos próximos, e estão prontos para fazer a máquina voar no dia seguinte. Cansados e depois de comerem algo, adormecem, Blimunda e Baltasar. O Padre está doente, tenta pegar lume na passarola mas os dois não o permitem. Afasta-se para umas moitas e nunca mais é visto. Baltasar vai procurá-lo, mas em vão. Cobriram a máquina de ramos e folhas para impedi-la de voar. Na manhã seguinte, desceram pelo mesmo sítio onde o Padre desaparecera sem deixar rasto, mas nem sombra dele. E lá partiram os dois. Ao fim de dois dias chegam a Mafra, onde havia uma Procissão na rua que dava graças a Deus por haver mandado voar sobre as obras da Basílica o seu Espírito Santo!...

Capítulo XVII
Numa altura em que se passam tantos prodígios, Blimunda e Sete-Sóis têm que guardar segredo porque se assim não fosse algo lhes aconteceria. Na casa dos pais de Baltasar, o par estava infeliz pela perda da mãe, mas Inês Antónia contou-lhes maravilhada os benefícios do Espírito Santo. No dia seguinte Baltasar saiu de casa com o cunhado à procura de emprego na obra de construção do convento.

A Mafra chegaram notícias que tinha ocorrido um pequeno terramoto em Lisboa derrubando beirais e chaminés. Passados mais de dois meses, Baltasar e Blimunda foram viver para Mafra. Baltasar fez uma jornada e foi ver que a máquina de voar estava no mesmo sítio, na mesma posição, descaída para um lado e apoiada na asa debaixo de uma cobertura de ramagens já secas. Dois meses mais tarde, Blimunda vem esperá-lo ao caminho e conta-lhe que Scarlatti está na casa do Visconde. Scarlatti tinha feito um pedido ao rei para poder visitar as obras do convento e o Visconde hospedara-o, apesar de não gostar de música.

Scarlatti disse a Baltasar que o padre Bartolomeu teria morrido em Toledo para onde tinha fugido e como não falavam de Baltasar nem Blimunda resolveu vir a Mafra verificar se estavam vivos. Nessa noite soube-se que quando a máquina caiu o padre havia fugido e nunca mais voltara. No dia seguinte Scarlatti partiu para Lisboa.

Capítulo XVIII
D. João V estava sentado numa cadeira escrevendo os seus bens e riquezas no rol. El-rei meditou acerca do que iria fazer às tão grandes somas de dinheiro, chegando à conclusão que a alma seria a primeira atenção, mandando construir o convento de Mafra, pagando com o ouro das suas minas e fazendas. Todos os materiais utilizados no convento eram de qualidade. De Portugal a pedra, o tijolo e a lenha para queimar, o arquitecto alemão, italianos mestres dos carpinteiros e da Holanda os sinos e os carrilhões. O convento levou 8 anos a ser construído.

Blimunda, Inês Antónia, Álvaro Diogo e o filho esperavam Baltasar, para jantarem com o velho João Francisco que mal mexe as suas pernas. Acabado o jantar Álvaro Diogo dorme a sesta. Baltasar bebe desde que soube da morte do padre Bartolomeu Lourenço e da sua passarola, foi um choque muito grande. Baltasar e seus amigos conversam acerca das suas vidas e falam de como eram as suas vidas antes de trabalharem em Mafra. Baltasar tem 40 anos, sua mãe já morreu e seu pai mal pode andar. Esteve na guerra e aí perdeu a sua mão, voltando a Mafra mais tarde. Sete Sois comenta que nem sabe se perdeu a sua mão na guerra ou se foi o Sol que a queimou, porque afirma que subiu uma serra tão alta que quando estendeu a mão tocou no Sol e queimou-o. Seus colegas comentaram que era impossível visto que só tocaria no Sol 'Se voasse como os pássaros, ou então seria bruxo. Baltasar nega dizendo que não é bruxo e também diz que ninguém o ouviu dizer que voou.

Capítulo IXX
Durante muito tempo Baltasar puxou e empurrou carros de mão e um dia, com a ajuda de João Pequeno, puxou uma junta de bois, fazendo companhia ao seu amigo corcunda.

Houve notícia que era preciso ir a Pêro Pinheiro buscar uma pedra muito grande que lá estava. Construíram lá um carro para carregar a pedra, como se fosse uma nau da Índia com calhas. Foram para lá 400 bois e mais de vinte carros. Ao amanhecer os homens partiram para cumprir 3 léguas até onde estava a pedra. Diziam que nunca tinham visto uma coisa como aquelas. Escavaram junto à pedra de forma a levá-la inteira para Mafra. A pedra vinha puxada a braços e Baltasar viu, num átimo de segundo, sangue e viu que um dos homens se ferira. No primeiro dia não andaram mais de 500 passos. No segundo dia foi pior porque o caminho era a descer e foi preciso meter calços nos carros. Um homem chamado Francisco Marques morreu atropelado por um carro, a roda passou-lhe sobre o ventre, quando chegou ao fundo do vale, o carro que transportava a pedra desandou atingindo 2 animais, a seguir tiveram que os matar. Gastaram 8 dias entre Pêro Pinheiro e Mafra, quando chegaram parecia que tinham vindo da guerra, vinham sujos e esfarrapados. Todos se admiraram com o tamanho da pedra.

Capítulo XX
Era a sexta ou sétima vez que Baltasar se deslocava a Monte Junto para consertar a máquina que se ia destruindo com o tempo. Mesmo protegida por mato e silvado, as lâminas da máquina voadora ficavam enferrujadas. Baltasar aproveitava a viagem para colher vimes, que serviam para consertar os rasgões que encontrava no entrançado da máquina.

Chegou o dia em que Blimunda decidiu acompanhar Baltasar na viagem. Justificando-se que gostaria de conhecer o percurso para o caso de necessitar deslocar-se até ao local sozinha poder fazê-lo sem problemas. Puseram-se a caminho depois das despedidas, com o burro que Baltasar arranjara para os ajudar na longa viagem que tinham pela frente. Foram passando pelas vilas que Blimunda ia decorando, até chegarem ao destino.

Durante o dia tentaram consertar a máquina até ao pôr-do-sol. Passaram a noite na passarola e voltaram no dia seguinte a Mafra.

Mesmo depois da longa viagem ainda não tinham passado pelo pior, pois foi à hora do jantar, quando todos se juntaram, que morreu o pai de Baltasar, João Francisco.

Capítulo XXI
D. João V queria construir uma basílica de S. Pedro em Lisboa, mas o arquitecto de Mafra, que foi chamado pelo rei, João Frederico Ludwig, aconselhou-o a não construir a basílica, porque demorava muito tempo a construir e D. João V poderia já não estar vivo quando acontecesse a inauguração desta. Então o rei decidiu aumentar o convento de Mafra de oitenta para trezentos frades, e assim foi, foram chamados o tesoureiro, o mestre dos carpinteiros, o mestre dos alvenéus, o abegão-mor e o engenheiro das minas. Então começaram as obras, mas depois o rei decidiu que a inauguração do novo convento seria no dia dos seus anos, que calhava num domingo, daí a dois anos; após essa data, o seu próximo dia de anos, que calhasse num domingo só seria daí dez anos e poderia ser muito tarde. Como dois anos seria pouco tempo para a construção do novo convento, D. João V mandou os seus homens irem buscar outros homens a todas as partes do país; estes eram recrutados contra a sua vontade, como escravos, indo assim trabalhar para as obras do convento, para este estar pronto a tempo. Alguns destes homens chegaram até a morrer com fome e perdidos a tentar voltar para casa.

Capítulo XXII
Este capítulo versa essencialmente sobre as famílias reais portuguesa e espanhola. Desde muito cedo foram organizados casamentos entre as duas como os que agora se vão realizar, o de Maria Vitória, espanhola, que casou com o português José e o de Maria Bárbara, portuguesa, com o espanhol Fernando.

Maria Bárbara tem 17 anos, não é formosa nem bonita mas é boa rapariga. No decorrer do capítulo apercebemo-nos que iremos assistir ao percurso de Maria Bárbara e da família real até Espanha, onde ela e vai casar. Durante a viagem, a comitiva real passa por várias cidades portuguesas e depara-se com alguns problemas, principalmente os meteorológicos, visto a chuva tornar os caminhos muito complicados para passar.

Também podemos referir a construção de várias propriedades reais para que se pudessem acolher durante a viagem.

É de salientar que Maria Bárbara vai para Espanha sem nunca ter visitado o convento de Mafra que estava a ser construído em sua honra (por causa do seu nascimento).

Capítulo XXIII
De Portugal todo chegam homens e são escolhidos um por um. A infanta Maria Bárbara casa-se com Fernando de Espanha. Esta é a marca do tempo narrativo de Saramago, ou seja os factos históricos. O noivo é dois anos mais novo que a noiva, e ele nunca poderá vir a ser rei, porque este é o sexto na linha sucessória. Domenico Scarlatti toca no seu cravo para a multidão de ignorantes, por ocasião do casamento da Infanta Dona Maria Bárbara, na fronteira com a Espanha.

Aqui, neste capítulo, o narrador menciona a procissão que levará os santos para serem colocados nos altares do convento de Mafra: S. Francisco, Santa Teresa, Santa Clara, S. Vicente, S. Sebastião e Santa Isabel. Seguem também para Mafra frei Manuel da Cruz e os seus noviços; trinta, e ali, quando chegam cansados, são recebidos em triunfo.

Baltasar vai para casa, o narrador anuncia-nos que ele está muito debilitado. Depois já ceia, quando todos dormem, Baltasar pega em Blimunda e leva-a a ver as estátuas, juntos, vêem a lua nascer enorme e vermelha. Ele anuncia-lhe que vai ao Monte Junto na manhã seguinte, ver como está a passarola. Ela pede-lhe para ter cuidado e ele responde que ela fique sossegada, que o seu dia ainda não chegou. Olham os santos inertes, o que seria aquilo? Morte, santidade ou condenação? Quando amanheceu, Blimunda levantou-se e juntou comida para o farnel do marido que ia ao Monte e acompanhou-o até fora da vila: "Adeus Blimunda, Adeus Baltasar", e separaram-se. Ao chegar ao lugar onde estava a passarola, Baltasar come as sardinhas que Blimunda lhe tinha colocado no alforge: havia tanto trabalho a fazer...

Capítulo XXIV
Baltazar não voltou para casa, o que fez Blimunda não dormir aquela noite. Esperara que ele voltasse ao cair do dia, haveria os festejos da sagração da basílica, mas ele não voltara. Em jejum, olhando as pessoas que passavam para a festa, estava sentada numa vala e ali ficou, vendo o que os que passavam carregavam por dentro; recebendo insultos, dizendo outros. Voltou para casa, ceou com os cunhados e o sobrinho. Não conseguiu dormir.

Não verá o rei quando ele vier a Mafra, vai esperar Baltazar pelos caminhos, desesperadamente tentando encontrá-lo, chegou até ao Monte Junto e encontra o alforge mas nem sinal de Baltasar nem da passarola, chora sem saber se ele morreu ou vive. Encontra um frade que tenta violá-la e mata-o com o espigão de Baltazar. Parte em busca do seu amado. Voltou a Mafra pensando que se tinham desencontrado, mas ele não estava lá.

À tardinha, chegaram Inês António e Álvaro Diogo e encontraram-na a dormir. De manhã, ela esquece-se de comer o pão e vê-os por dentro.

D. João V faz quarenta e um anos e é 22 de Outubro de 1730. Inaugura-se o convento.

Capítulo XXV
Durante nove anos, Blimunda andou pelos caminhos sempre à procura de Baltazar que sabia estar. Perguntou por ele em todo o lado.

Julgavam-na doida, mas ouvindo-lhe as demais sensatas palavras e acções, ficavam indecisos se aquilo que dizia era ou não falta de juízo completo. Passou a ser chamada de A Voadora, e sentava-se, então, às portas, ouvindo as queixas das mulheres que lamentavam, depois, que os seus homens não tivessem também desaparecido, para que elas pudessem, ao menos, devotar-lhes um amor tão grande como o de Blimunda a Baltazar. E os homens, quando ela partia, ficavam tristes inexplicavelmente tristes.

Voltava aos lugares por onde passara, sempre perguntando. Seis vezes passara por Lisboa, esta, a que vinha agora, era a sétima. Sem comer, o tempo era chegado para ela. No Rossio, finalmente encontrou Baltazar. Havia lá um auto-de-fé. Eram onze os condenados à fogueira; entre eles, estava António José da Silva, o Judeu, comediógrafo autor das Guerras de Alecrim e Manjerona e Baltasar, ela olhou-o, recolheu a sua vontade, porque ele lhe pertencia.

estrutura de A Mensagem de Fernando Pessoa

Mensagem, a epopeia lírica

A Mensagem, cujas poesias componentes foram escritas entre 1913 e 1934 – data da sua publicação, é sem dúvida a obra-prima onde pessoa lapidarmente imprimiu o seu ideal patriótico, sebastianista e regenerador. É um poema nacional, uma versão moderna, espiritualista e profética de Os Lusíadas.
A Mensagem poderá ser vista com uma epopeia. Porque parte dum núcleo histórico, mas a sua formulação sendo simbólica e mítica, do relato histórico, não possuirá a continuidade. Aqui, a acção dos heróis, só adquire pleno significado dentro duma referência mitológica. Aqui serão só eleitos, terão só direito à imortalidade, aqueles homens e feitos que manifestam em si esses mitos significativos. Assim, sua estrutura será dada pelo que, noutra ideias/forças desse povo: regresso do paraíso, realização do impossível, espera do messias… raízes do desenvolvimento dessa entidade colectiva.
Os antepassados, os fundadores, que pela sua acção criaram a pátria, e ergueram a personalidade, separada, ou plasmaram na sua altura própria; mas Mães, as que estão na origem das suas dinastias, cantadas como “Antigo seio vigilante”, ou “humano ventre do império”; os heróis navegantes, aqueles que percorreram o mar em busco do caminho da imortalidade, cumprindo um dever individual e pátrio (realização terrestre duma missão transcendente); e, finalmente, depois dessa missão cumprida, dessa realização. Na era crepuscular de fim de vida, os profetas, as vozes que anunciam já aquele que viria regenerar essa pátria moribunda, abrindo-lhe novo ciclo de vida, uma nova era – o Encoberto.

A estrutura da obra
Assim, a estrutura da Mensagem, sendo a dum mito numa teoria cíclica, a das Idades, transfigura e repete a história duma pátria como o mito dum nascimento, vida e morte dum mundo; morte que será seguida dum renascimento. Desenvolvendo-a como uma ideia completa, de sentido cósmico, e dando-lhe a forma simbólica tripartida – Brasão, Mar Português, O Encoberto. Que se poderá traduzir como: os fundadores, ou o nascimento; a realização, ou a vida; o fim das energias latentes, ou a morte; essa conterá já em si, como gérmen, a próxima ressurreição, o novo ciclo que se anuncia – o Quinto Império. Assim, a terceira parte, é toda ela cheia de avisos, preenche de pressentimentos, de forças latentes prestes a virem á luz: depois da Noite e Tormenta, vem a Calma e a Antemanhã: estes são os Tempos. E aí sempre perpassarão, com um repetido fulgor, sempre a mesma mas em modelações diversas, a nota da esperança: D. Sebastião, O Desejado, O Encoberto…
É dessa forma, o mítico caos, a noite, o abismo, donde surgirá o novo mundo, “Que jaz no abismo sob o mar que se segue”.

Mensagem de Fernando Pessoa

Carácter épico-lírico
• A Mensagem é uma obra épico-lírica, pois, como uma epopeia, parte de um núcleo histórico (heróis e acontecimentos da História de Portugal), mas apresenta uma dimensão subjectiva introspectiva, de contemplação interior, característica própria do lirismo.
O mito• As figuras e os acontecimentos históricos são convertidos em símbolos, em mitos, que o poeta exprime liricamente. “O mito é o nada que é tudo”, verso do poema “Ulisses”, é o paradoxo que melhor define essa definição simbólica da matéria histórica da Mensagem.
Sebastianismo
• A Mensagem apresenta um carácter profético, visionário, pois antevê um império futuro, não terreno, e ansiar por ele é perseguir o sonho, a quimera, a febre de além, a sede de Absoluto, a ânsia do impossível, a loucura. D. Sebastião é o mais importante símbolo da obra que, no conjunto dos seus poemas, se alicerça, pois, num sebastianismo messiânico e profético.
Quinto Império: império espiritual• É esta a mensagem de Pessoa: a Portugal, nação construtora do Império no passado, cabe construir o Império do futuro, o Quinto Império. E enquanto o Império Português, edificado pelos heróis da Fundação da nacionalidade e dos Descobrimentos é termo, territorial, material, o Quinto Império, anunciado na Mensagem, é um espiritual. “E a nossa grande raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas daquilo que os sonhos são feitos… “A Mensagem contém, pois, um apelo futuro”.


A estrutura• A Mensagem está dividida em três partes. Esta tripartição corresponde a três momentos do Império Português: nascimento, realização e morte. Mas essa morte não é definitiva, pois pressupõe um renascimento que será o novo império, futuro e espiritual.

Mensagem (Resumido)
1. Nascimento – 1ª Parte “Brasão”
Fundação da nacionalidade, desfile de heróis lendários ou históricos, desde Ulisses a D. Afonso Henriques, D. Dinis ou D. Sebastiao.
2. Realização – 2ª Parte “Mar Português”
Poemas inspirados na ânsia do Desconhecido e no esforço heróico da luta com o mar. Apogeu da acção portuguesa dos Descobrimentos, em poemas como “O Infante”, “O mostrengo”, “Mar Português”.
3. Morte – 3ª Parte “O Encoberto”
Morte das energias de Portugal simbolizada no “nevoeiro”; afirmação do sebastianismo representado na figura do “Encoberto”; apelo e ânsia messiânica da construção do Quinto Império.

sobre Os Lusíadas

Estrutura interna

1. As partes constituintes

Os Lusíadas constroem-se pela sucessão de quatro fontes:
Proposição – parte introdutória, na qual o poeta anuncia o que vai cantar (Canto I, estrofes 1-3)
Invocação – pedido de ajuda as divindades inspiradores (A principal invocação é feita as Tágides, no canto I, estrofes 4 e 5, ás Ninfas do Tejo e do Mondego, no canto VII 78-82 e, finalmente, a Calíope, no Canto X, estrofe 8)
Dedicatória – oferecimento do poema a uma personalidade importante. (Esta parte, facultaria, pode ter origem nas Geórgicas de Virgílio ou nos Fastos de Ovídio; não existe em nenhuma das epopeias da Antiguidade)
Narração – parte que constitui o corpo da epopeia; a narrativa das acções levadas a cabo pelo protagonista. (Começando no Canto I, estrofe 19, só termina no Canto X, estrofe 144, apresentando apenas pequenas interrupções pontuais).
2. Os planos narrativos
Obra narrativa complexa, Os Lusíadas constroem-se através da articulação de três planos narrativos, não deixando, ainda assim, de apresentar uma exemplar unidade de acção.
Como plano narrativo fulcral apresenta-nos a viagem de Vasco da Gama à Índia. Continuamente articulado a este e paralelo a ela, surge um segundo plano que diz respeito à intervenção dos deuses do Olimpo na Viagem. Encaixado no primeiro plano, tem lugar um terceiro, que é constituído pela História de Portugal, contada por Vasco da Gama ao rei de Melide, para Paulo da Gama e por entidades dividas que vaticinam futuros feitos dos Portugueses.


Análise Canto I

O poeta indica o assunto global da obra, pede inspiração as Ninfas do Tejo e dedica o poema ao rei D. Sebastião. Na estrofe 19 inicia a narração da viagem de Vasco da gama, referindo brevemente que a armada já se encontra no Oceano Índico, no momento em que os deuses do Olimpo se reúnem, em Consílio convocado por Júpiter, para decidirem se os Portugueses deverão chegar á Índia. Apesar da oposição de Baco e graças á intervenção de Vénus e Marte, a decisão é favorável aos Portugueses que entretanto cheguem á Ilha de Moçambique. Aí, Baco prepara-lhes várias ciladas que culminam no fornecimento de um piloto por ele industriado a conduzi-los ao perigoso porto. Vénus intervém, afastando a armada do perigo e fazendo-a retomar o caminho certo ate Mombaça. No final do Canto, o Poeta reflecte acerca dos perigos que em toda a parte espreitam o homem.

Proposição

As armas e os barões assinalados
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando;
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

Reflexão:
A proposição permite ao poeta enunciar o propósito de cantar aos feitos alcançados pelos heróis portugueses, apresentando-os com heróis colectivos mistificados que se superiorizar em relação aos heróis da antiguidade clássica.

Invocação

E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mim um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Porque de vossas águas, Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipocrene.

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.


Reflexão:

O poeta pede inspiração ás Tágides, entidades míticas nacionais, jogando a variedade das ninfas e também com o seu espírito de gratidão ao recordar-lhes que sempre as celebram na sua poesia. É significativa a valorização do estilo épico, por comparação com o estilo lírico, pois, é mais adequado á grandeza dos feitos dos heróis que vai contar.

Dedicatória
Camões dedica a sua obra ao Rei D. Sebastião a quem louva por aquilo que ele representa para a independência de Portugal e para a dilatação do mundo cristão; louva-o ainda pela sua ilustre e cristianíssima ascendência e ainda pelo grande império de que é Rei (estrofes 6 , 7 e 8).
Segue-se uma segunda parte que constitui o apelo dirigido ao Rei: “referindo-se com modéstia á sua obra, pede ao rei que a leia; na breve exposição que faz do assunto, o poeta evidencia que a sua obra não versava heróis e factos lendários ou fantasiosos, mas sim matéria história real (estrofes 9 a 14)
Termina o seu discurso incitando o Rei a dar continuidade aos feitos gloriosos dos portugueses, combatendo os mouros e invocando depois o pedido de que leia os seus versos (estrofes 15 a 18).

Consílio dos Deus no Olimpo
A narração começa com o plano central (estrofe 19), logo interrompido pela inclusão do plano mitológico (estrofe 20).
Neste consílio, presidido por Júpiter, o pai dos deuses pretende dar conhecimento á assembleia da sua determinação em ajudar os portugueses a chegar á India, conforme estava predestinado pelo “fado”. Júpiter justifica a sua decisão elogiando as proezas historias do povo português e a coragem com que agora procuram dominar os mares desconhecidos. Há vários aspectos que contribuem para o engrandecimento do herói nacional, neste episódio:
• A admiração do “grande valor” e da “forre gente de Luso” manifestada por Júpiter;
• Temor de Baco de que o perder dos portugueses destrua o seu poder no oriente, fazendo esquecer “seus feitos”;
• O carinho e a afeição de verbos pela “gente Lusitana”, de “fortes corações” e “grande estrela”;
• O respeito pela “gente forte” revelado por Marte.

Reflexão do Poeta

O recado que trazem é de amigos,
Mas debaixo o veneno vem coberto;
Que os pensamentos eram de inimigos,
Segundo foi o engano descoberto.
Ó grandes e gravíssimos perigos!
Ó caminho de vida nunca certo:
Que aonde a gente põe sua esperança,
Tenha a vida tão pouca segurança!

No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

Reflexão:

Este poema mostra-nos a reflexão do poeta sobre a insegurança da vida humana.

Análise Canto II

Já neste tempo o lúcido Planeta,
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo,
E da casa marítima secreta
Lhe estava o Deus Nocturno a porta abrindo,
Quando as ínfimas gentes se chegaram
As naus, que pouco havia que ancoraram.

Dentre eles um, que traz encomendado
O mortífero engano, assim dizia:
"Capitão valeroso, que cortado
Tens de Neptuno o reino e salsa via,
O Rei que manda esta ilha, alvoroçado
Da vinda tua, tem tanta alegria,
Que não deseja mais que agasalhar-te,
Ver-te, e do necessário reformar-te.

"E porque está em extremo desejoso
De te ver, como cousa nomeada,
Te roga que, de nada receoso,
Entres a barra, tu com toda armada:
E porque do caminho trabalhoso
Trarás a gente débil e cansada,
Diz que na terra podes reformá-la,
Que a natureza obriga a desejá-la.

"E se buscando vás mercadoria
Que produze o aurífero Levante,
Canela, cravo, ardente especiaria,
Ou droga salutífera e prestante;
Ou se queres luzente pedraria,
O rubi fino, o rígido diamante,
Daqui levarás tudo tão sobejo
Com que faças o fim a teu desejo."
(...)

O rei de Mombaça, influenciado por Baco, convida os portugueses a entrar no porto para os destruir. Vasco da Gama, ignorando as intenções, aceita o convite pois os dois condenados que mandava a terra colher informações tinham regressado com a boa notícia de ser aquela uma terra de cristãos. Na verdade, tinham sido enganados por Baco, disfarçado de sacerdote. Vénus, ajudada pelas Nereidas, impede a armada de entrar no porto de Mombaça. Os emissários do rei e o falso piloto julgando terem sido descobertos, põem-se em fuga. Vasco da gama, apercebendo-se do perigo que correra, dirige uma prece a deus. Vénus comove-se e vai pedir a Júpiter que proteja os portugueses, ao que ele acede e, para consolar, profetiza futuras glórias dos Lusitanos. Na sequência do pedido, Mercúrio é enviado a terra e, em sonhos, indica a Vasco da Gama o caminho até Melide onde, entretanto, lhe prepara uma calorosa recepção. A chegada dos Portugueses a Melide é efectivamente saudade com festejos e o Rei desta cidade visita a armada, pedindo a Vasco da Gama que lhe conte a historia do seu país.

Análise Canto III

Após uma invocação do Poeta a Calíope, Vasco da gama inicia a narrativa da História de Portugal. Começa por referir a situação de Portugal na Europa e a lendária história de Luso a Viriato. Segue-se a formação da nacionalidade e depois a enumeração dos feitos guerreiros dos Reis da 1ª Dinastia, de D. Afonso Henriques a D. Fernando. Destacam-se os episódios da Batalha de Ourique, no reinado de D. Afonso Henriques e o da Formosíssima Maria, da batalha do Salado e de Inês de Castro, no reinado de D. Afonso IV.

Batalha de Ourique

Trata-se de um episódio bélico que relata a Batalha travada no baixo Alentejo ate o exército lusitano e os dos mouros que ocupavam a região.
A desproporção das forças em conflito, aparição de Cristo a D. Afonso Henriques, a fé inabalável do rei e a sua capacidade de chefiar e inflamar os ânimos dos combatentes são os aspectos que contribuem para a mistificação deste herói. Não está em causa a força anímica e a capacidade de chefia de D. Afonso Henriques, mas o cumprimento de uma missão que o transcende eu que foi confiada por deus ao povo de que era rei: a dilatação da fé cristã. A determinação com que cumpriu esse objectivo deu ao primeiro rei de Portugal o estatuto de símbolo da luta contra os infiéis.


Análise Canto IV


Vasco da Gama prossegue a narrativa da Historia de Portugal. Conta agora a história da 2ª Dinastia, desde a revolução de 1385-85, até ao momento, do reinado de D. Manuel, em que a armada de Vasco da Gama parte para a Índia. Após a narrativa da revolução que incide na figura de Nuno Alvares Pereira e na Batalha de Aljubarrota, seguem-se os acontecimentos dos reinados de D. João I a D. João II. É assim que surge a narração dos preparativos da viagem á Índia, desejo que D. João II não conseguiu concretizar antes de morrer e que iria ser realizado por D. Manuel, a quem os rios Indo e Ganges apareceram em sonhos, profetizando futuras glorias no Oriente. Este canto termina com a partida da armanda, cujos navegantes são surpreendidos pelas palavras profeticamente pessimistas de um velho que estava na praia, entre a multidão. É o episódio do Velho do Restelo.

Batalha de Aljubarrota

Estrofes 28 e 29 (Introdução) – início da batalha sinalizada pela Trombeta Castelhana e reacção personificada da natureza e das pessoas em geral.
Estrofe 30 – no inicio do combate desde logo de destaca a presença de Nuno Alvares Cabral.
Estrofe 31 – Descrição da movimentação e do ruído próprio do combate.
Estrofe 32 e 33 – Traição dos dois irmãos de Nuno Alvares Pereira que combateram pelo exército de Castelo e referência a outros traidores da história antiga.
Estrofes 34 até 42 – Descrição da Batalha propriamente dita, com especial saliência, para as actuações decisivas de Nuno Alvares Pereira e D. João I.
Estrofes 43 até 45 (conclusão) – o desânimo e a fuga dos Castelhanos perante a vitória dos portugueses.

Despedidas em Belém

Trata-se de um momento lírico da narrativa que faz sobressair os sentimentos dos que ficavam e que, antecipadamente, choravam a perda dos que partiam; sobressaem também os sentimentos dos navegadores que tiveram nos seus amados e a saudade que eles próprios já começavam a sentir.
Alcançar a glória tem um preço, é toda uma nação que é envolvida no drama e será, depois, toda uma nação que alcançará a glória. (confrontar este episodio com o poema “Mar Português” da “Mensagem” de Fernando Pessoa)

O Velho do Restelo

Este episódio introduz uma perspectiva posta á do espírito épico, uma vez que o “Velho” aplica de vaidade aquilo que os outros chamam “Fama e Glória”, “esforço e valentia”. Ele é o porta-voz do bom senso e da prudência ou daqueles que nesse tempo defendiam a expansão para o norte de África. Outros designam-no como voz da condenação da ousadia humana, do impulso do Homem para transcender tudo o que o limita.

Canto V
Vasco da Gama prossegue a sua narrativa ao Rei de Melide, contando agora a viagem de armada, de Lisboa a Melide. É a narrativa da grande aventura marítima, em que os marinheiros observavam maravilhados ou inquietos o Cruzeiro do Sul, o Fogo de Santelmo ou a Tromba Marítima e enfrentaram perigos e obstáculos enormes como a hostilidade dos nativos, no episodio de Fernão Veloso, a fúria de um monstro, no episodio do Gigante Adamastor, a doença e a morte provocadas pelo encoberto.
O canto termina com a censura do poeta aos seus contemporâneos que desprezam a Poesia.

O Gigante Adamastor

Estrofes 37 e 38 (Introdução) – Preparação do clima propício a aparição do Adamastor.
Estrofes 39 e 40 – Caracterização do Gigante Adamastor, quer física, quer psicológica.
Estrofes 41 até 48 – Discurso do Adamastor. Enuncia através de profecias (advinhas) e ameaças, os castigos destinados á “gente ousada” latina.
Estrofes 49 – Vasco da Gama interpela o monstro, o que provocará uma alteração radical do seu discurso, levando-o a confessar os aspectos da sua vida sentimental.
Estrofes 50 até 59 – O Gigante narra a sua vida, o seu passado amoroso e infeliz e revela o castigo que os Deuses lhe destinaram: Para sempre transformado naquele promontório.
Estrofe 60 – Desaparecimento do Gigante e pedido de Vasco da Gama a Deus para que evite a concretização das profecias do Adamastor.

Representatividade do Gigante Adamastor

1. A representação do “terrífico”: logo na descrição do ambiente estão presentes elementos associados ao medo, como a escuridão, o ruído intenso, o tamanho e a postura ameaçadora, a sujidade repelente, a cor cadavérica e o tom de voz;
2. A exaltação do herói: por serem ditas por um ser tão terrível, as palavras do Adamastor sobre a ousadia dos navegadores têm feito um efeito claramente exaltante para desvendar o desconhecido, o que nenhum ser se tinha atrevido a tentar – é uma forma de destacar que o grande feito da viagem foi a conquista do conhecimento;
3. A afirmação do herói: a coragem do herói afirma-se pelo enfrentar do medo, por ousar conhecer e decifrar o desconhecido – a pergunta de Vasco da Gama sobre a identidade do monstro (“quem és tu?”) é um momento simbólico da afirmação da grandeza do Homem Português;
4. O desejo do mito: no final, o Gigante retira-se com um “medonho choro”, depois de ter contado a sua história – tinha sido vencido no amor e na guerra, iludido e aprisionado, ao tornar-se conhecido, desaparece o seu carácter ameaçador;
5. Simbologia do episódio: o Gigante Adamastor representa o maior de todos os obstáculos, na realização de qualquer viagem: o medo do desconhecido. Perante o desconhecido, os navegadores enfrentaram o terror, desvendaram os seus mistérios e o desconhecido deixou de o ser – o episódio simboliza a vitória sobre o medo que os perigos ignorados da natureza e da vida provocaram nos seres humanos (confrontar este episodio com o poema “Mostrengo” da “Mensagem” de Fernando Pessoa)


Reflexão do Poeta
O Poeta neste poema mostra que o canto e o louvor das obras incitam a realização de novos feitos.
A falta de cultura dos heróis nacionais é responsável pela indiferença que mostram na divulgação dos seus feitos (indirectamente, Camões manifesta o seu desalento por não ter apoio daqueles a quem louva).


Canto VI
Finda narrativa de Vasco da Gama, a armada sai de Melide guiada por um piloto que deverá ensinar-lhe o caminho até Calecut. Baco, Vendo que os portugueses estão prestes a chegar à Índia, resolve pedir ajuda a Neptuno, que convoca um Consílio dos Deuses Marinhos cuja decisão é apoiar Baco, ordenando a Éolo que solte os ventos e faça afundar a armanda. É então que, enquanto os marinheiros matam despreocupadamente o tempo ouvindo Fernão Veloso contar o episódio lendário e cavaleiresco de Os Doze de Inglaterra, surge uma violente tempestade. Vasco da Gama, vendo as suas caravelas quase perdidas, dirige uma prece a deus e, mais uma vez é Vénus que ajuda os Portugueses, mandando as Ninfas amorosas seduzir os ventos para os acalmar. Dissipada a tempestade, a armada avista Calecut e Vasco da Gama agradece a Deus.
O Canto termina com considerações do poeta sobre o valor da Fama e da Glória conseguidas através dos grandes feitos.

Reflexão do poeta
Reflexão autobiográfica em que o poeta enumera as várias adversidades que passou para fazer espelhar o modelo de virtudes anunciado na reflexão anterior.

Canto VIII

Na primeira figura se detinha
O Catual que vira estar pintada,
Que por divisa um ramo na mão tinha,
A barba branca, longa e penteada:
"Quem era, e por que causa lhe convinha
A divisa, que tem na mão tomada?"
Paulo responde, cuja voz discreta
O Mauritano sábio lhe interpreta.

"Estas figuras todas que aparecem,
Bravos em vista e feros nos aspectos,
Mais bravos e mais feros se conhecem,
Pela fama, nas obras e nos feitos:
Antigos são, mas ainda resplandecem
Colo nome, entre os engenhos mais perfeito
Este que vês é Luso, donde a fama
O nosso Reino Lusitânia chama.

"Foi filho e companheiro do Tébano,
Que tão diversas partes conquistou;
Parece vindo ter ao ninho Hispano
Seguindo as armas, que continuo usou;
Do Douro o Guadiana o campo ufano,
Já dito Elísio, tanto o contentou,
Que ali quis dar aos já cansados ossos
Eterna sepultura, e nome aos nossos.

"O ramo que lhe vês para divisa,
O verde tirso foi de Baco usado;
O qual à nossa idade amostra e avisa
Que foi seu companheiro e filho amido.
Vês outro, que do Tejo a terra pisa,
Depois de ter tão longo mar arado,
Onde muros perpétuos edifica,
E templo a Palas, que em memória fica?
(...)

Paulo da Gama explica ao Catual o significado dos símbolos das bandeiras portuguesas, contando-lhe episódios da História de Portugal nelas representados. Baco intervém de novo contra os portugueses, aparecendo em sonhos a um sacerdote brâmane e investigando-o contra os Navegadores através da informação de que vêm com o intuito de pilhagem. O Samorim interroga Vasco da Gama, que acaba por regressar ás naus, mas é retido no caminho pelo Catual subornado, que apenas deixa partir os portugueses depois destes lhe entregarem as fazendas que traziam.
O Poeta teve considerações sobre o vil poder do ouro.

Canto IX

Tiveram longamente na cidade,
Sem vender-se, a fazenda os dois feitores
Que os infiéis, por manha e falsidade,
Fazem que não lha comprem mercadores;
Que todo seu propósito e vontade
Era deter ali os descobridores
Da Índia tanto tempo, que viessem
De Meca as naus, que as suas desfizessem.•


Lá no seio Eritreu, onde fundada
Arsínoe foi do Egípcio Ptolomeu,
Do nome da irmã sua assim chamada,
Que depois em Suez se converteu,
Não longe o porto jaz da nomeada
Cidade Meca, que se engrandeceu
Com a superstição falsa e profana
Da religiosa água Maometana.•

Gidá se chama o porto, aonde o trato
De todo o Roxo mar mais florescia,
De que tinha proveito grande e grato
O Soldão que esse Reino possuía.
Daqui aos Malabares, por contrato
Dos infiéis, formosa companhia
De grandes naus, pelo Índico Oceano,
Especiaria vem buscar cada ano.•

Por estas naus os Mouros esperavam,
Que, como fossem grandes e possantes,
Aquelas, que o comércio lhe tomava,
Com flamas abrasassem crepitantes.
Neste socorro tanto confiavam,
Que já não querem mais dos navegantes,
Senão que tanto tempo ali tardassem,
Que da famosa Meca as naus chegassem.
(...)

Após vencerem algumas dificuldades, os Portugueses saem de Calecut, iniciando a viagem de regresso á Pátria. Vénus decide preparar uma recompensa para os marinheiros, fazendo-os chegar á Ilha dos Amores. Para isso, manda o seu filho Cupido desfechar setas sobre as Ninfas que, feridas de Amor e pela Deusa instruídas, receberão apaixonadas os Portugueses. A armada avista a Ilha dos Amores e, quanto os marinheiros desembarcam para caçar, vêem as Ninfas que se deixam perseguir e depois seduzir. Tétis explica a Vasco da Gama a razão daquele encontro, referindo as futuras glórias que lhe serão dadas a conhecer. Após a explicação da simbologia da Ilha, o Poeta termina, tecendo considerações sobre a fama de alcançar a Fama.
A grandeza dos descobrimentos também se mede pela grandeza do premo e esse dói o da Imortalidade, simbolicamente representada na união entre os Homens e as Deusas.
Na parte final do episodio o poeta reafirma os valores daqueles que podem ser recebidos na Ilha: a justiça, a coragem, o amor á pátria e a lealdade ao Rei.


Canto X
As Ninfas oferecem um banquete aos portugueses. Após uma Invocação do poeta Calíope, uma Ninfa faz profecias sobre as futuras vitórias dos Portugueses no Oriente. Tétis conduz Vasco da Gama ao cume de um monte para lhe mostrar a Máquina do Mundo e indicar nela os lugares onde chegará o império Português. Os portugueses despedem-se e regressam a Portugal. O poeta termina lamentando-se pelo seu destino infeliz de poeta incompreendido por aqueles a quem canta e exortando o Rei D. Sebastião a continuar a glória dos Portugueses.
A Máquina do Mundo revela o que será o Império Português, representando o auge da glorificação – Vasco da Gama vê o que só aos Deuses é dado ver; é a glorificação simbólica do conhecimento, do saber proporcionado pelo sonho da descoberta: “o bicho da terra tão pequena” venceu as suas próprias limitações e foi além do que prometia a “força humana”. É de assinalar que, neste episodio se sobrepõem, a nível da estrutura, os três planos narrativos: o plano da viagem; o plano mitológico e o plano da história de Portugal, mas agora e futuro.

Ilha dos Amores

Terminada a viagem do Gama e antes de regressarem a Portugal, o poeta dirige os nautas para a Ilha dos Amores, onde, por acção de Vénus e Cupido, receberão o prémio do seu esforço.
Trata-se de uma ilha paradisíaca, de uma beleza deslumbrante. A descrição do consórcio entre os portugueses e as ninfas está repassada de sensualidade. Os prazeres que lhes são oferecidos são o justo prémio por terem perseguido o seu objectivo sem hesitações.
Em primeiro lugar, serve para desmitificar o recurso à mitologia pagã, apresentada aqui como simples ficção, útil para "fazer versos deleitosos". Em segundo lugar, representa a glorificação do povo português, a quem é reconhecido um estatuto de excepcionalidade. Pelo seu esforço continuado, pela sua persistência, pela sua fidelidade à tarefa de expansão da fé cristã, os portugueses como que se divinizam. Tornam-se assim dignos de ombrear com os deuses, adquirindo um estatuto de imortalidade que é afinal o prémio máximo a que pode aspirar o ser humano.
De certo modo, podemos dizer que é o amor que conduz os portugueses à imortalidade. Não o amor no sentido vulgar da palavra, mas o amor num sentido mais amplo: o amor desinteressado, o amor da pátria, o amor ao dever, o empenhamento total nas tarefas colectivas, a capacidade de suportar todas as dificuldades, todos os sacrifícios. É esse amor que manifestam Gama e os seus homens; é ele que permite a tantos libertar-se da "lei da morte". É também esse amor que conduz Camões a "espalhar" os feitos dos seus compatriotas por toda a parte e tornar-se, também ele, imortal.

Reflexão do Poeta

Os últimos versos da obra revelam sentimentos contraditórios: o desalento, o orgulho e a esperança.
1. O poeta recusa continuar o seu canto, não por cansaço, mas por desânimo, o que provêm da contratação…metida no gosto da cobiça e na rudeza, imagem que representa o Portugal do seu tempo;
2. Mas exprime o seu orgulho naqueles que continuam dispostos a lutar pela grandeza da pátria;
3. E afirma a esperança de que o rei saiba aproveitar e estimular essas energias para dar continuidade á glorificação do “peito ilustre lusitano”
4. Em suma, a glória do passado deverá ser encarada como um exemplo presente para construir um futuro grandioso.

As Transgressões na obra Memorial do Convento

Transgressão do código religioso

Sumptuosidade do convento (pp.365-6) vs a simplicidade e a humildade (essência dos valores cristãos);
Recrutamento à força;
Construção da passarola vs a proibição de ascender a um plano superior/divino (p. 198) - 4 bases de solidez do projecto: Bartolomeu, Baltasar, Blimunda e Scarlatti;
A castidade vs as relações sexuais nos conventos (pp. 95,97);
As estátuas dos santos (p. 344) vs a santidade humana (p. 342);
Missa, espaço de vivência espiritual (p. 145) vs missa, espaço de namoros e de encontros clandestinos (pp. 43, 162, 236);
A benção de Deus vs a benção dos homens;
Funeral do Infante D. Pedro, espectáculo de pompa e circunstância vs funeral do sobrinho de Baltasar, manifestação isolada de dor.

Transgressão do código sexual

Sexo ritual protocolar para procriação (pp. 11-13, 319-20) vs sexo, entrega permanente e mútua de corpos e almas (p. 77 e outras).

Transgressão linguística

Inversão de expressões bíblicas;
Jogos de palavras "os santos no oratório... não há melhor";
Desconstrução e reconstrução das regras de pontuação;
Aforismos "Não está o homem livre... com a verdade";
Confluência de registos de língua:
Popular "Queres tu dizer na tua que a merda é dinheiro, Não, majestade, é o dinheiro que é merda";
Familiar "correram o reino de ponta a ponta e não os apanharam";
Cuidado "Tirando as expressões enfáticas esta mesma ordem já fora dada antes (...)".

Transgressão ficcional

A Música vence a Doença;
A história vence a História;
O espaço da ficção é o espaço da Utopia, da Liberdade Suprema;
O Sonho é a Transcendência Humana.