O tema central da sua poesia é a figuração do Homem, não apenas do eu individual, integrado num colectivo, com o qual se harmoniza (terra, campo, natureza - lugar de encontro) ou luta (cidade - lugar de opressão, de conflito, de morte, contra os quais se levanta a escrita combativa). A figuração do tempo é, assim, igualmente essencial na poesia de Eugénio de Andrade, em que os dois ciclos, o do tempo e o do Homem, são inseparáveis, como o comprova, por exemplo, o paralelismo entre as idades do homem e as estações do ano. A evocação da infância, em que é notória a presença da figura materna e a ligação com os elementos naturais, surge ligada a uma visão eufórica do tempo, sentido sempre, no entanto, retrospectivamente. A essa euforia contrapõe-se o sentimento doloroso provocado pelo envelhecimento, pela consciência da aproximação da morte (assumido sobretudo a partir de Limiar dos Pássaros), contra o qual só o refúgio na reconstituição do passado feliz ou a assunção do envelhecimento, ou seja, a escrita, surge como superação possível. Ligada à adolescência e à idade madura, a sua poesia caracteriza-se pela presença dos temas do erotismo e da natureza, assumindo-se o autor como o «poeta do corpo». Os seus poemas, geralmente curtos, mas de grande densidade, e aparentemente simples, privilegiam a evocação da energia física, material, a plenitude da vida e dos sentidos.
As mãos
Que tristeza tão inútil essas mãos
que nem sequer são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono
As amoras
O meu país sabe a amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.
Alguns dos temas que atravessam a poesia de Eugénio de Andrade estão também na sua prosa, nomeadamente a memória do mundo da infância e a presença modeladora da pintura e da música. Mesmo ao nível do vocabulário essencial, o poeta e o prosador encontram-se muitas vezes; as diferenças residem sobretudo na articulação discursiva e no pressuposto teórico segundo o qual «a poesia é a ficção da verdade», como diz no poema «São Coisas Assim», do livro O Sal da Língua:
Quem dividiu comigo a alegria
merecia ao menos
que o trouxesse à orvalhada
e limpa terra do pema. Mas também
o poeta escreve direito por linhas
tortas: a poesia é a ficção
da verdade.(…)
Sendo «ficção da verdade», a poesia é um trabalho de construção que não elidindo os dados da experiência do sujeito, os transforma e amplifica, num processo de imaginação de que as palavras são, ao mesmo tempo, factor e resultado. Ora, o que parece desagradar a Eugénio de Andrade nos seus textos em prosa é precisamente o facto de a sua presença ser aí demasiado nítida, excessivamente visível; falta aquele trabalho de amplificação de sentidos que está bem explicado no poema «Ocorre-me tropeçar», inserto em O Sal da Língua:
Ocorre-me tropeçar em ti num linha
que escrevi noutra idade – tão discreta
é a tua presença que ninguém
a não ser eu te poderá descobrir.
(…)
“É o seu peito, a sua boca” digo então,
e na penumbra do quarto por instantes
brilha de novo o corpo do desejo.
Há um tipo de texto em que confluem harmoniosamente a vontade de contar e a necessidade de elaboração semântica e estilística: o poema em prosa. Eugénio de Andrade também tem escrito poemas deste género, com alguma regularidade. Assim, é um poema em prosa a longa dedicatória do livro Os Amantes sem Dinheiro (1950); em As Palavras Interditas (1951) é também em prosa o poema inaugural que, a partir do título – «Primeiramente» – institui o amor como tema central do livro; há em Limiar dos Pássaros (1976) um conjunto de textos subordinados ao título interno «Verão sobre o corpo», que constitui uma sequência de poemas em prosa, em estreita ligação, mesmo sintáctica, com o poema inicial7; e há, sobretudo, dois livros maiores do autor, totalmente compostos por poemas em prosa: Memória doutro Rio (1978) e Vertentes do Olhar (1987).
Numa entrevista, Eugénio de Andrade fala da «afasia» provocada por Limiar dos Pássaros, e alude a um novo livro composto por «poesia em prosa» – trata-se de Memória doutro Rio. Esta referência é relevante, porque o poeta reflecte sobre os motivos que o levaram a enveredar por um tipo de escrita que, aparentemente, se afasta dos preceitos mais exigentes da sua poética. O poema em prosa surge como um meio eficaz de contornar a «afasia», funcionando a dois níveis de libertação complementares: o escritor retoma o controlo da sua “voz” e a poesia ensaia novos caminhos, adquirindo, através da prosa, uma respiração diferente: «A mim, a mudança de clave, como diz uma amiga minha, permitiu-me uma respiração mais ampla, um ritmo mais próximo do falar materno(…)» Considerando que o poema em prosa «não tem entre nós tradição nem prestígio », Eugénio de Andrade acaba por concluir que «a fronteira entre poesia e prosa, quando a invenção verbal não tem outra finalidade que não seja ela própria, é puramente formal; em literaturas adultas, não é raro ambas juntarem as suas águas e o resultado podem ser coisas esplendorosas, quando assinadas por esses homens “que dão corpo à alma da sua língua”»
Numa entrevista, Eugénio de Andrade fala da «afasia» provocada por Limiar dos Pássaros, e alude a um novo livro composto por «poesia em prosa» – trata-se de Memória doutro Rio. Esta referência é relevante, porque o poeta reflecte sobre os motivos que o levaram a enveredar por um tipo de escrita que, aparentemente, se afasta dos preceitos mais exigentes da sua poética. O poema em prosa surge como um meio eficaz de contornar a «afasia», funcionando a dois níveis de libertação complementares: o escritor retoma o controlo da sua “voz” e a poesia ensaia novos caminhos, adquirindo, através da prosa, uma respiração diferente: «A mim, a mudança de clave, como diz uma amiga minha, permitiu-me uma respiração mais ampla, um ritmo mais próximo do falar materno(…)» Considerando que o poema em prosa «não tem entre nós tradição nem prestígio », Eugénio de Andrade acaba por concluir que «a fronteira entre poesia e prosa, quando a invenção verbal não tem outra finalidade que não seja ela própria, é puramente formal; em literaturas adultas, não é raro ambas juntarem as suas águas e o resultado podem ser coisas esplendorosas, quando assinadas por esses homens “que dão corpo à alma da sua língua”»
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