domingo, 1 de fevereiro de 2009

NUN'ÁLVARES PEREIRA


Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando,
faz que o ar alto perca
seu azul negro e brando.

Mas que espada é que, erguida,
faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
que o Rei Artur te deu.

'Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
ergue a luz da tua espada
para a estrada se ver!


Comentários:
Segundo lendas pagãs de origem irlandesa a espada Excalibur foi dada ao Rei Artur pela Dama do Lago. Era mágica e tornava-o quase invencível. De acordo com uma tradição guerreira muito antiga, era costume ser dado nome a uma arma notável pela sua beleza ou qualidade. Excalibur não podia ser quebrada e o seu nome tem origem céltica e quer dizer "relâmpago duro".
"S.Portugal em ser"- personificação do que há de místico em Portugal (ou do melhor e mais puro em Portugal).
"Ergue a luz da tua espada para a estrada se ver!"- inspira-nos para que encontremos o caminho (da grandeza de Portugal).

D.SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL


Louco, sim, louco, porque quiz grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nella ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver addiado que procria?


Comentários:
"areal"- o campo de Alcácer Quibir.
"ficou meu ser que houve, não o que há"- ficou o meu corpo, não a minha alma que vive eterna.
"sem a loucura que é o homem mais do que a besta sadia"- sem o sonho (impossível, neste caso) o homem é apenas um animal vivente.
"cadáver adiado que procria"- vivo e a reproduzir-se (sem outra finalidade do que, como nos animais, a propagação da espécie) mas inexorávelmente destinado à morte.

D.FERNANDO INFANTE DE PORTUGAL


Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça
A sua sancta guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.

Poz-me as mãos sobre os hombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer-grandeza são Seu nome
Dentro em mim a vibrar.

E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.



Comentários:
Este poema, sem dúvida um dos mais belos de Mensagem, foi o primeiro a ser escrito (em 1913) e destinava-se a servir de mote a um livro que Fernando Pessoa pensou chamar "Portugal". O conteúdo incluiria, pelo menos, o equivalente às duas primeiras Partes de Mensagem, mas a índole talvez não tivesse sido integralmente afim. Este poema, inicialmente chamado "Gládio", foi rebaptizado mas não está totalmente sintonizado com o seu novo nome. É provável que tenha sido originalmente escrito com D.Sebastião em mente.
O D.Fernando referido no poema é o Infante Santo, que morreu refém em Marrocos.
O gládio era uma espada curta como as utilizadas pelos gregos e pelos romanos. A sonoridade da palavra era muito apreciada pelos autores italianos, espanhóis e portugueses que a usavam amiúde designando uma espada de qualquer tipo ou, simplesmente, o seu equivalente simbólico.

D.Duarte

Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
em dia e letra escrupuloso e fundo.

Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.



D.Pedro, o Regente

Claro em pensar, e claro no sentir,
é claro no querer;
indifferente ao que há em conseguir
que seja só obter;
duplice dono, sem me dividir,
de dever e de ser-

não me podia a Sorte dar guarida
por não ser eu dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
calmo sob mudos céus,
fiel à palavra dada e à ideia tida.
Tudo o mais é com Deus!

D.João, Infante de Portugal

Não fui alguém. Minha alma estava estreita
entre tam grandes almas minhas pares,
inutilmente eleita,
virgemmente parada;

porque é do portuguez, pae de amplos mares,
querer, poder só isto:
o inteiro mar, ou a orla vã desfeita-
o todo, ou o seu nada.

Comentários:
D.Duarte Rei de Portugal: "A regra de ser Rei almou meu ser"- A disciplina de ser rei encheu a minha vida (isto é, como D.Duarte viveu o fim do seu curto reinado no remorso das consequências da falhada expedição a Tânger e da prisão do irmão Fernando não tinha prazer na vida, dedicando-se inteiramente ao dever da governação). Esse remorso é a razão da frase do poema: "firme em minha tristeza".
D.Pedro Regente de Portugal: "indiferente ao que há em conseguir que seja só obter"- não fui movido pelo desejo de posse; não fui ambicioso de bens materiais.
"Dúplice dono, sem me dividir, de dever e de ser"- eu e o meu dever fomos um só.
D.João Infante de Portugal- "Minha alma estava estreita entre tão grandes almas...etc"- os meus irmãos (o Infante D.Henrique, o Rei D.Duarte, o Infante D.Pedro, e o Infante D.Fernando) tiveram tal grandeza que me ofuscaram completamente.
"virginalmente parada"- sem actividade; virgem de acção (esta afirmação é inexacta em relação ao Infante D.João que foi um homem de mérito e de préstimo para o País. Aliás, qualquer comparação com um homem de estatura mundial como o Infante D.Henrique só pode resultar injusta para o comparado!).
"é do português querer só isto: o inteiro mar ou a orla vã desfeita"- para um português não há meios termos: ou tudo ou nada (por isso, como não fui tudo, então eu não fui nada!).
"a orla vã desfeita"- a cercadura do mar; a espuma das ondas que se desfazem futilmente na costa.
NOTA: Para os que queiram saber mais sobre D.Duarte sugiro ESTA página.
Sobre D.Pedro sugiro ESTA página excepcional que mostra como o infante, apesar da sua morte trágica e inútil na batalha de Alfarrobeira (que inspirou a ilustração a esta página) teve uma vida verdadeiramente extraordinária e um papel importante no início das Descobertas.
Sobre o Infante D.João Sugiro ESTA página, notando apenas uma correcção: o ano da sua morte foi 1442 e não 1422 como refere a página aconselhada na versão que existia à data em que preparei esta página.

D.João I (Mensagem) e D. Filipa de Lencastre


O homem e a hora são um só
Quando Deus faz e a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita.

Mestre, sem o saber, do Templo
Que Portugal foi feito ser,
Que houveste a glória e deste o exemplo
De o defender.

Teu nome, eleito em sua fama,
É, na ara da nossa alma interna,
A que repelle, eterna chama,
A sombra eterna.


Comentários:
D.João o Primeiro: "O homem e a hora são um só, quando Deus faz e a História é feita"- Fernando Pessoa exprime de novo a ideia de que o destino é traçado por Deus e rege inexoravelmente a História. Quando uma nação atinge uma encruzilhada (como Portugal em 1383) é a hora e os escolhidos executam os actos determinados. O homem é o papel que desempenhou, este é o requerido pela ocasião (pela hora), a ocasião é determinada pelo Destino, o Destino foi traçado por Deus... (simples, não?). Conhecemos D.João I porque teve a sua hora; sem ela teria sido um obscuro mestre de uma ordem militar obscura. Sem a hora não teria havido o homem...
"na ara da nossa alma interna"- no altar do nosso espírito nacional.
"repele a sombra eterna"- repele o olvido, que seria o destino de Portugal se perdesse a sua identidade como nação.
D.Filipa de Lencastre: "Que enigma havia em teu seio que só génios concebia"- referência à chamada "ínclita geração" dos filhos de D.Filipa e D.João I.
"Volve a nós teu rosto sério"- vira o teu rosto (sisudo...) e olha para nós; lembra-te de Portugal; reza por nós!
"Princesa do Santo Gral"- referência ao Graal procurado pelos cavaleiros medievais das lendas da Távola Redonda. Existem várias versões sobre o que seria, mas a mais comum refere-o como a taça de onde Cristo bebera na Última Ceia e/ou que teria recolhido o seu sangue na Cruz. A referência deve ser interpretada como "Princesa mística" porque fadada por Deus para ser mãe dos principes da ínclita geração e muito particularmente do Infante D.Henrique; ou "Princesa da grandeza (futura) de Portugal" (o Graal era suposto trazer felicidade à Terra).


D. Filipa de Lencastre

Que enigma havia em teu seio
Que só génios concebia?
Que archanjo teus sonhos veio
Vellar, maternos, um dia?

Volve a nós teu rosto sério,
Princeza do Santo Gral,
Humano ventre do Império,
Madrinha de Portugal!

D.Filipa de Lencastre: "Que enigma havia em teu seio que só génios concebia"- referência à chamada "ínclita geração" dos filhos de D.Filipa e D.João I.
"Volve a nós teu rosto sério"- vira o teu rosto (sisudo...) e olha para nós; lembra-te de Portugal; reza por nós!
"Princesa do Santo Gral"- referência ao Graal procurado pelos cavaleiros medievais das lendas da Távola Redonda. Existem várias versões sobre o que seria, mas a mais comum refere-o como a taça de onde Cristo bebera na Última Ceia e/ou que teria recolhido o seu sangue na Cruz. A referência deve ser interpretada como "Princesa mística" porque fadada por Deus para ser mãe dos principes da ínclita geração e muito particularmente do Infante D.Henrique; ou "Princesa da grandeza (futura) de Portugal" (o Graal era suposto trazer felicidade à Terra).

D.Dinis


Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
o plantador de naus a haver,
e ouve um silêncio múrmuro comsigo:
é o rumor dos pinhaes que, como um trigo
de Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
busca o oceano por achar;
e a falla dos pinhaes, marulho obscuro,
é o som presente desse mar futuro,
é a voz da terra anciando pelo mar.


No século XIII a Europa estava deflorestada após séculos de exploração selvagem das florestas primevas. D.Dinis levou a cabo um vasto plano de reflorestação através do plantio de matas reais de pinheiros bravos. A madeira foi depois utilizada na construção das caravelas das Descobertas, o que é o tema deste belo oitavo poema da Mensagem.
"Cantar de Amigo"- poema medieval, cantado pelos trovadores. D.Dinis escreveu vários destes cantares.
"silêncio murmuro"- silêncio murmurante.
"arroio"- riacho; "marulho"- som do mar.

D.Afonso Henriques


Pae, foste cavalleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A bênção como espada,
A espada como benção!


"Pai" (da nacionalidade).
"hora errada"- épocas em que a caminhada de Portugal para o seu destino- que Pessoa confiava ir ser esplendoroso- sofra retrocessos.
"novos infiéis"- pessoas que, na opinião de Fernando Pessoa, criavam obstáculos (ou viriam a criá-los...) ao destino glorioso que ele sonhava para Portugal.

D.Henrique e D.Teresa



Conde D.Henrique


Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O heroe a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
"Que farei eu com esta espada?"

Ergueste-a, e fez-se





D.Henrique: "Todo o começo é involuntário. Deus é o agente"- exprime a ideia de Fernando Pessoa segundo a qual o Destino rege inexoravelmente a História e foi traçado por Deus desde a origem dos tempos. Assim, aqueles que, na Terra, determinam a História não são mais do que agentes da vontade primeva de Deus e assistem aos seus próprios actos confusos ("vários") e inconscientes de estar a cumprir um plano.
"À espada em tuas mãos achada... etc"- A ideia anterior é particularizada para o pai de D.Afonso Henriques, que talhou à espada os alicerces da futura independência de Portugal. Confuso, pegou em armas e inconscientemente cumpriu a sua missão na Terra... O trabalho que lhe estava destinado "fez-se" (isto é, cumpriu-se, não por sua vontade, mas pela de Deus).



D.TAREJA . . . (ouvir aqui o poema)


As naçôes todas são mystérios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de impérios,
Vella por nós!

Teu seio augusto amamentou
Com bruta e natural certeza
O que, imprevisto, Deus fadou.
Por elle reza!

Dê tua prece outro destino
A quem fadou o instincto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu.

Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não há o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!


D.Tareja (versão arcaica do nome de D.Teresa, mãe de Afonso Henriques): "cada nação é todo o mundo a sós"- cada nação constitui um todo que, enquanto tal, é diferente de todas as outras;
"mãe de reis e avó de impérios"- refere-se à linhagem real portuguesa que dela originou e ao futuro Império.
"...com bruta e natural certeza"- "bruta" significa aqui "de acordo com a natureza" e portanto "bruta e natural" constitui um pleonasmo (isto é, uma repetição).
"o que, imprevisto, Deus fadou."- Aquele que Deus determinou (que fundasse Portugal- isto é, Afonso Henriques). "imprevisto" porque improvável- o primeiro rei de Portugal enfrentou guerras contra o poderoso reino de Castela e Leão, e contra os potentados islâmicos. As probabilidades de sucesso pareciam, à partida, muito remotas, de onde a improbabilidade.
"dê tua prece outro destino"- faz com que Afonso Henriques seja visto pela História a uma luz mais favorável (ver a NOTA final).
"Mas todo vivo é eterno infante/ Onde estás e não há o dia"- no reino dos mortos Afonso Henriques é sempre menino para a sua mãe (?).
"No antigo seio vigilante de novo o cria"- dá-nos outro lider do mesmo calibre (?)



Viriato

Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instincto teu.

Nação porque reincarnaste,
Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste-
Assim se Portugal formou.

Teu ser é como aquella fria
Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.

Comentários:
"Se a alma... etc"- a nação portuguesa representa, segundo Pessoa, a memória colectiva do instinto de identidade e independência personificado por Viriato.
"povo porque ressuscitou (...) o de que eras a haste"- somos um povo porque renasceu (após a presença romana, nórdica e islâmica) o espírito nacional de que Viriato foi a origem.
Fernando Pessoa tem uma predilecção pelo uso, literal ou simbólico, do termo "antemanhã", isto é, o periodo antes do alvorecer quando começa a despontar uma luz muito ténue. Aqui o poeta compara Viriato à antemanhã da nacionalidade portuguesa.

Ulisses

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.


Comentários:
"O mito é o nada que é tudo"- esta frase exprime a ideia que Fernando Pessoa tinha dos mitos como potenciais motores sociológicos. Mesmo se falso (isto é, mesmo que não seja nada) um mito tem o potencial de provocar comportamentos sociais e, portanto, facilitar a evolução de uma nação segundo determinados vectores.
"O mesmo sol que abre os céus...etc"- provável referência aos deuses solares (ou mitos afins) que todos os dias eram supostos renascer à alvorada, depois de terem "morrido" no poente anterior.
"Este que aqui aportou"- referência a Ulisses, herói lendário da Odisseia e fundador mítico de Lisboa, onde teria aportado numa das suas navegações ("Lisboa" deriva de Olisippo e Ulixbona- em cuja raiz alguns creem ver o nome de Ulisses ou Odisseus).
"Foi por não ser existindo"- porque não era, foi existindo; foi-se insinuando na nossa realidade.
"a fecundá-la decorre"- a lenda tem uma interacção positiva com a realidade; "A vida, metade de nada, morre"- a vida por si só nada vale porque logo desaparece (mas o mito persiste!).

Ulisses

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Ulisses

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Segundo- O DAS QUINAS (Mensagem)

Os Deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

Baste a quem baste o que Ihe basta
O bastante de Ihe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Christo definiu:
Assim o oppoz à Natureza
E Filho o ungiu.

Comentários:
"Os Deuses vendem quando dão" é uma frase que remonta pelo menos à Grécia Clássica e que corresponde a uma visão mesquinha da divindade: os favores dos deuses pagam-se!
"Ai dos felizes porque são só o que passa"- a felicidade é transitória e os que se contentam em ser apenas felizes não têm consequência na História; "Baste a quem baste...etc"- a mesma noção referida: a quem basta o que tem, por esses limites se fica! "ter é tardar"- a posse do bastante adia os cometimentos.
"Foi com desgraça e...etc"- mas Deus tem outro ideal: concebeu o Cristo para ser infeliz e baixo (e, contra a natureza humana, para não desejar felicidade material ou posses) e, tendo-o assim determinado, sagrou-o como Filho, mostrando o Seu caminho (não material, mas espiritual). O campo das quinas simboliza, em geral, a espiritualidade em Portugal, o sonho. Em particular é um elogio ao sacrifício da felicidade material a altos ideais (que o poeta cria ser o seu próprio caso).

O dos Castelos - Mensagem

A Europa jaz, posta nos cotovellos:
De Oriente a Occidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabellos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovello esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquelle diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se appoia o rosto.

Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Occidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.



O poema é uma descrição do mapa da Europa que Pessoa assemelha a uma mulher reclinada. Compare-se com um trecho d' Os Lusiadas de que a parte referente a Portugal pode ser lida (com comentários meus) seguindo este "link", ou a totalidade (a partir da Estância 6) este outro. O campo dos castelos representa a materialidade (ver "O das Quinas").
"olhos gregos, lembrando"- lembrando a herança cultural da Europa que Pessoa remontava à Grécia Antiga.
"olhar esfíngico e fatal"- olhar enigmático (imperscutável) e (mas) pré-destinado. Note-se que, por fidelidade, foi mantida a ortografia original o que permite, também, conservar a métrica que seria alterada pela grafia "esfíngico" em vez de "sphyngico". Ao que parece, Fernando Pessoa favorecia a ortografia clássica por razões de estilo mas também de elitismo.
"o Ocidente, futuro do passado"- o Mar, onde a Europa se lançou, através de Portugal, na grande Idade das Descobertas com a qual traçou o seu próprio futuro (o actual e, pensa Pessoa, também o futuro a haver).
NOTA: sobre este poema leia-se o comentário de Soares Feitosa que se segue e que pode ser lido na sua integralidade no Jornal da Poesia:
" O leitor já tem todo o direito de ir dizendo: "Também, com Pessoa, é moleza...". Nada disso. Só neste poema, de tudo o que li de Pessoa, há o abismo-absoluto-e-inesperado — hifenizei: abismo-absoluto-e-inesperado. A mesma angústia da falta de tempo do Anjo sobre as águas... Em análise: Trata-se de um poema “geográfico”, mero comparatório do mapa físico da Europa com a efígie de uma pessoa. A Europa jaz, posta nos cotovellos: De Oriente a Occidente jaz, fitando, E toldam-lhe romanticos cabellos Olhos gregos, lembrando. Nada de extraordinário até aqui. Os fiordes escandinavos realmente parecem uma cabeleira vasta. O cotovello esquerdo é recuado; O direito é em angulo disposto. Aquelle diz Italia onde é pousado; Este diz Inglaterra onde, afastado, A mão sustenta, em que se appoia o rosto. Ainda sem maior interesse. Dir-se-ia — e aí precisamente mora o perigo — um poema bobo. Confira no mapa da Europa — é assim mesmo: os acidentes Itália e Inglaterra seriam os cotovelos de uma jovem. Fita, com olhar sphyngico e fatal, Occidente, futuro do passado. Aqui a coisa já começa a “complicar”. Anunciam-se borrascas e temporais: Fita, com olhar sphyngico e fatal,/ O Occidente, futuro do passado. Mas, finalmente, mas: O rosto com que fita é Portugal. Feche o livro, caro leitor, respire fundo e contemple o Infante preparando as navegações daquela nesga minúscula, simplório enclave geográfico no mapa d’Espanha... — quanta glória!!! Ah, meu Deus, quanta glória em 7 (sete, misticamente sete — dizem que Mensagem é uma mensagem misticamente cifrada, parece que é!), sete palavras apenas para tamanha grandiosidade. Os lusos, Os Lusíadas, a própria Ode Marítima, esta do mesmo Pessoa, contidos nesta frase perfeita: O rosto com que fita é Portugal.! Disse Pessoa a frase perfeita. Veja o caro leitor se tenho razão em chamá-la perfeita. O rosto — de quem, o rosto? — do mapa anteriormente descrito, o rosto da Europa, símbolo então de toda a civilização ocidental, o rosto da Humanidade, o rosto de Deus? Quem, afinal, fita o mundo?! Agora percebemos que a estrofe anterior — o olhar sphyngico — era terreno preparatório (Batista, às margens do Jordão, batizando o Cristo) para o grande final, o rosto que fita, onde fitar não é simplesmente sinônimo de olhar. Portugal, no extremo (ou no início!) do mapa e no extremo do verso, FUNDA o mundo e o domina! E na ponta da lança dos seus guerreiros, o missal dos frades enlouquecidos, a esmagar os deuses das novas terras, em nome do Cristo! Quem olha, afinal? A Cruz-de-Malta?! Já não há mais tempo: eis o abismo, caia nele, de ponta!".

Mensagem por Fernando Pessoa (Introdução e Brasão)


ilustrada por Carlos Alberto Santos , anotada por João Manuel Mimoso

Mensagem é um Poema constituído por 44 poemas independentes que foram inseridos numa espécie de esqueleto que deu coerência ao conjunto. Este esqueleto está dividido em três partes (Brasão, Mar Português e O Encoberto que tratei individualmente em textos introdutórios) e a coerência é dada, não pelos poemas propriamente ditos, mas antes pelos seus nomes e pelos títulos e subtítulos das partes em que se inserem. Esta é uma solução deveras inovadora!! Para evitar confusões, quando falar do Poema (com maiúscula) estarei a referir Mensagem; se falar de poema (com minúscula) referir-me-ei a qualquer dos 44 poemas que constituem o Poema.

.Mensagem foi publicada em livro no dia 1 de Dezembro de 1934, em vida de Fernando Pessoa, mas em condições muito particulares que influenciaram a sua composição: destinava-se a participar num concurso com regras rígidas em relação ao prazo e número de páginas. Das três partes do Poema a segunda "Mar Português" já existia como um conjunto e é evidente a sua homogeneidade e a constância da qualidade da generalidade dos poemas; as duas restantes foram fabricadas a partir de poemas soltos. Destes, pelo menos quatro dos dezanove poemas da primeira parte (Brasão) foram escritos no próprio ano da publicação (as datas dos poemas, quando conhecidas, estão indicadas no índice) enquanto que pelo menos sete dos treze da terceira parte (O Encoberto) foram escritos em 1933 ou 1934. Talvez por ter sido mais apressadamente preparada, esta é a "menos boa" (todas são boas!!) do conjunto. Segundo as regras do concurso o livro teria que ter pelo menos cem páginas que foram conseguidas com muita dificuldade à custa dos 44 poemas e das páginas interpostas entre eles (artifício que, aliás, o júri não aceitou). Daqui resultaram enxertos de poemas soltos, anteriores, num conjunto para o qual não teriam sido pensados (pelo menos na posição que vieram a ocupar), duplicações e acrescentos. Quer isto dizer que Fernando Pessoa teve que construir de forma relativamente rápida um Poema que, provavelmente, teria sido diferente se as circunstâncias o não tivessem pressionado.

.
Os Lusíadas foi escrito ainda no apogeu da expansão portuguesa (na sua fase final, que hoje sabemos ser já irremediavelmente decadente mas que, na época, não seria necessariamente apercebido como tal) glorificando o esforço da Raça e apontando para uma ainda maior predominância futura. Quando a si próprio se pôs como desafio produzir um Poema de grandeza semelhante (se possível superior), Pessoa vivia num Portugal descolorido e atrasado, sem nada que o recomendasse excepto a criatividade dos seus literatos. Há duas caracteristicas de Fernando Pessoa que importa notar: por um lado amava apaixonadamente a Pátria, de uma maneira que hoje, na Europa onde as nacionalidades se diluem, nos é difícil compreender; por outro era um lógico obsessivo cujas tentativas "científicas" de racionalizar o irracionalizável impressionam e, às vezes, divertem pela candura que demonstram.
Posto perante a inelutável equação do seu tempo, parece ter racionalizado a situação da seguinte maneira: o Universo teve uma causa que o contém, um Criador a que podemos convenientemente chamar "Deus"; se Deus contém em si o Universo então também contém toda a História, que deve ter determinado desde o início (a esta determinação chama-se "Destino"); alguns homens conseguem por vezes entrever o futuro porque ele já está estabelecido; um destes homens foi o Bandarra que profetizou nas suas "Trovas" (pensava o Padre António Vieira e com ele Fernando Pessoa, embora reconhecendo-lhes uma autoria múltipla) a hegemonia portuguesa numa época futura; o único trunfo de que Portugal dispunha era a cultura duma elite e, particularmente, um génio poético desproporcionado à sua população; logo a hegemonia terá uma base cultural e será alcançada através de uma poesia tão superior que inspire os homens à fruição da beleza em paz e concórdia...
Este será o Quinto Império, uma época de união e paz universais sem limite final no tempo. Se Portugal está predestinado, então terá que produzir um grande poeta (a que Pessoa chamava super-Camões referindo-se, presumivelmente, a si próprio) e um grande lider que inspirem e conduzam todo o Mundo à união cultural que marcará o advento do Quinto Império. Esse lider é convenientemente chamado de "O Desejado", "O Encoberto" ou "D.Sebastião", uma designação que Pessoa valorizava por pensar ser mais fácil passar a ideia de um mito já estabelecido do que criar um inteiramente novo. Na prática é uma esperança semelhante à do Grand Roi da mitologia francesa, que seria o Carlos Magno do futuro.
A insistência de Fernando Pessoa na figura de D.Sebastião não significa realmente que esperasse ver o espírito do rei morto reencarnar para conduzir o País à glória. Até porque a história nos ensina (e Pessoa sabê-lo-ia melhor do que eu) que D.Sebastião tinha muito pouco que o recomendasse. Só me ocorre uma coisa: soube morrer bem! Quando o nome do rei morto em Alcácer Quibir ocorre nos poemas, ou se trata de uma passagem histórica e, portanto, literal, ou então deve subentender-se que Pessoa se refere Àquele que há-de guiar Portugal e o Mundo ao Quinto Império.

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Introdução a BRASÃO

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A primeira parte de Mensagem é curiosíssima na ideia que a estruturou: considera uma versão do brasão real português utilizado no século XV e a cada uma das suas partes relevantes associa um poema relativo a Portugal. O Brasão tem dois campos: o escudo central que é o campo dos cinco escudetes azuis com besantes brancos a que chamamos "quinas", e a bordadura periférica que é o campo dos castelos (ver a figura abaixo). Cada um destes campos inspirou um poema adequado: "O dos Castelos" refere-se à terra (ou mais genericamente à materialidade) e consiste numa descrição geográfica da Europa e da posição de Portugal nela; "O das Quinas" ( segundo a lenda as quinas representariam as cinco chagas de Cristo) refere-se à divindade, ao Deus Cristão cuja religião se entrelaça indissociavelmente com a história de Portugal e ao sacrifício da felicidade à obrigação para com a História (genericamente representa, assim, os valores espirituais). Nenhum dos campos é explicitamente dedicado ao povo português: Mensagem é um poema sobre elites (e, creio, também para elites).
Aos poemas relativos aos Campos, segue-se um conjunto de poemas chamado "Os Castelos". A cada um dos sete castelos do brasão associa-se um herói (incluindo o mítico Ulisses) ou um monarca que pela sua acção tenha moldado a História de Portugal de uma maneira materialmente relevante.
Segue-se, em "As Quinas", um conjunto de cinco poemas dedicados a figuras portuguesas que, por uma razão ou por outra, foram vítimas da engrenagem implacável da História, e dela sofreram as consequências (tais como o Infante Santo ou D.Sebastião). Num caso realça-se o triunfo da espiritualidade ("D.Fernando Infante de Portugal"), mas o tema comum é a infelicidade terrena.

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Uma parte individual, chamada "A Coroa", distingue com um belo poema o cavaleiro que combinou em si as qualidades de comando do Rei Artur, a bravura de Sir Lancelote e a piedade pura de Sir Galahad: Nuno Álvares Pereira.
Finalmente "O Timbre" (que no sécXV era uma espécie de dragão conhecido na Mitologia como grifo) justifica três poemas referidos aos três alicerces da política de expansão portuguesa: o Infante D.Henrique que a iniciou, D.João II que apontou a meta das Índias e traçou o futuro de Portugal, e Afonso de Albuquerque que foi o arquitecto e o braço do Império Português do Oriente.

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Cada uma das partes do Poema inclui uma divisa ou epígrafe em latim e que em "Brasão" é: BELLUM SINE BELLO (literalmente "Guerra sem a guerra") que eu, não sendo latinista, traduziria por "Guerra sem combate". Este parece ser, pois, o mote que Fernando Pessoa associaria a Portugal através da lição da sua história e, como tal, merece-me um curto comentário, sobretudo porque, de certa maneira, me recordou o Fado Tropical do Chico Buarque (e do Ruy Guerra) em que ele diz pela boca de um português-brasileiro da época dos holandeses: "Meu coração tem um sereno jeito e as minhas mãos o golpe duro e presto, de tal maneira que depois de feito, desencontrado eu mesmo me contesto. Se trago as mãos distantes do meu peito é que há distância entre a intenção e o gesto...". BELLUM SINE BELLO é um ideal português de paz a que hoje se convencionou chamar "brandos costumes". "Guerra sem combate" é o poder associado à recusa consciente da violência, recusa essa que enobrece o poder. A divisa poderia igualmente ser "A Paz dos fortes" embora, claro, lhe faltasse então a subtileza da epígrafe escolhida por Fernando Pessoa!
Uma outra explicação da epígrafe (que imaginei não porque me pareça provável mas apenas para exemplificar as dúvidas que se deparam a quem tenta interpretar alegorias alheias) poder-se-ia basear na tradução alternativa "Guerra sem armas". Neste caso a divisa representaria um ideal de conquista espiritual e humana (pela difusão da cultura portuguesa e não apenas da religião) que foi no passado um importante vector da expansão portuguesa e seria no futuro, presumivelmente, a via para o Quinto Império. A cultura é, afinal, o único remanescente da colonização que não é efémero...

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Brasão inclui 19 poemas, muitos dos quais verdadeiramente extraordinários. Todos valem a pena ler! Eis alguns dos meus favoritos, com links directos para as respectivas páginas, bem como uma selecção de grandes versos e frases escolhidas que ofereço à vossa atenção:
"O dos Castelos" é um dos melhores poemas do conjunto. É nele que o poeta diz que A Europa fita com olhar esfíngico e fatal o Ocidente- o rosto com que fita é Portugal!
De "O das Quinas" (lembre-se que o nome refere O Campo das Quinas no brasão português) pode não se gostar à primeira, mas aconselho a leitura até se mudar de opinião. É nele que Pessoa escreve: Os Deuses vendem quando dão: compra-se a glória com desgraça. e também o verso maravilhoso: Foi com desgraça e com vileza que Deus ao Cristo definiu: assim o opôs à natureza, e Filho o ungiu.
Em "Ulisses" escreve Pessoa uma frase famosa: O mito é o nada que é tudo.
"D.Tareja" tem uma singular beleza. É neste poema que se encontra o verso: As nações todas são mistérios, cada uma é todo o mundo a sós. Ó mãe de reis e avó de impérios, vela por nós!
"D.Dinis" é uma sucessão de grandes versos (tantos que para os citar necessitaria uma transcrição integral do poema!) sugerindo imagens dos pinhais plantados pelo rei-lavrador e da sua contrapartida futura nas caravelas da Descoberta.
Em "D.João, O Primeiro" diz Pessoa: O homem e a Hora são um só quando Deus faz e a História é feita.
"D.Fernando, Infante de Portugal" (também conhecido como "Gládio") é, para mim, o melhor poema de Brasão e um dos melhores de Mensagem. IMPERDÍVEL!!
Finalmente em "O Infante D.Henrique" Pessoa precisa apenas de cinco versos para demonstrar, quase com desdém, a sua extraordinária craveira.

Pode-se ver na visão de Mensagem uma estranha beleza, bem como uma inegável grandiosidade. Mas não pode ser ocultado que essa visão é também decadente já que, ao dizer que o futuro nos está traçado em grandeza, desincentiva o esforço que poderia levar a essa meta. Não se trata do tradicional efeito de uma "self-fulfilling prophecy" (que pode realmente ter ocorrido no caso das Trovas do Bandarra em relação à Restauração) mas de um convite à inacção porque nos bastaria esperar pelos Tempos e ter fé no Destino! Mas este meu ensaio é sobre beleza e não sobre decadência, por isso passemos a examinar as grandes linhas do Poema.

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As duas primeiras partes de Mensagem percorrem a história de Portugal através de personalidades (quer heróis, quer pessoas-chave que, mesmo sem saber, tiveram consequência no futuro do País, quer ainda e até alguns anti-heróis), mitos e sinopses históricas. A Primeira Parte, chamada Brasão, propõe um extraordinário tour-de-force ao percorrer os campos, peças e figuras de um brasão real do tipo do utilizado por D.Joao II associando, a cada, um traço marcante ou uma personalidade relevante da nossa história. A Segunda, chamada Mar Português, aborda a Idade das Descobertas que foi a época individualizante da história portuguesa. No penúltimo poema do ciclo (A Última Nau) a época de ouro é encerrada com o desaparecimento de D.Sebastião e o poeta como que desperta de um sonho transportando subitamente o leitor à sua actualidade e confiando-lhe os seus pensamentos. Mas esses pensamentos são uma janela para um futuro em que O Desejado regressa para retomar o caminho interrompido para o Império Universal. No último poema (Prece) Pessoa invoca a intercessão de Deus para reacender a Alma Lusitana para que de novo "conquiste a Distância".
A Terceira Parte de Mensagem, O Encoberto, é quase inesperada e totalmente extraordinária: Fernando Pessoa retoma o tema só indiciado em "A Última Nau" e precisa o que entende pela "Distância" que haveremos de conquistar. Trata-se do advento do Quinto Império do Mundo, um império de cultura, paz e harmonia entre os povos que será liderado por um português- O Encoberto, O Desejado, o Rei ou D.Sebastião, como é indistintamente chamado. Nesta Parte vai intercruzar profecias, mitos antigos, símbolos de vária origem, e factos históricos sempre orientado por três vectores básicos: Portugal que dorme e que tem que despertar; o Quinto Império que há-de seguramente ser estabelecido mas que depende desse despertar; e O Desejado que realizará a visão do poeta.
Apesar de publicado numa época em que uma revisão ortográfica tinha já imposto um padrão muito semelhante ao que ainda hoje utilizamos, Fernando Pessoa optou por utilizar em Mensagem uma ortografia arcaica. Por isso, essa ortografia é parte do Poema ( e, de facto, está-lhe de tal maneira associada que choca ler "Mar Português" em vez do clássico "Mar Portuguez") e nos textos que transcrevi optei pela fidelidade à intenção do poeta, utilizando a ortografia em que ele quis que Mensagem fosse lido.
Antes de passar à apresentação detalhada de cada parte de Mensagem, deixo-vos com um pensamento: sugere a lógica e comprova a história recente que uma agregação pacífica de estados baseada no entendimento terá necessariamente que advir dentro de alguns séculos, quando a tecnologia tal como a conhecemos já for irrelevante, a menos que a Humanidade sofra um retrocesso. Os grandes passos em frente são em geral fruto da influência de alguém extraordinário, com uma visão revolucionária e a capacidade de a levar à prática. Dentro de alguns séculos, quem sabe, talvez o encoberto se descubra e seja mesmo português (ou portuguesa). Afinal, como diz Pessoa, "Deus guarda o corpo e a forma do futuro"!

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terça-feira, 11 de novembro de 2008

As rosas, poema de Ricardo Reis

As Rosas amo dos jardins de Adónis, (hipérbato)
Essas volucres amo, Lídia, rosas, (hipérbato)
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.

A luz para elas é eterna, porque (transporte)
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.

2ª parte – Mais apelativo - sugere a Lídia que faça qualquer coisa

Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente (hipérbato)
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

Vocabulário útil:
Volucres – efémeras, que morrem cedo
Inscientes – que desconhecem, não sabem
Jardim de Adónis – diz a mitologia que as rosas do jardim de Adónis não duravam mais que um dia e como nasciam e cresciam com o dia, o dia era a única realidade que conheciam.

Tema: o poeta incita Lídia a viverem juntos como as rosas de Adónis, porque a vida é breve tal como a das rosas. O “pouco que duramos” revela de novo a brevidade da vida, e assim sendo é preferível ter tudo num só dia, viver intensamente um só dia, mas vivê-lo como se ignorássemos que a vida dura um pouco mais.
Nesta ode há inversão na ordem natural das palavras. Colocando alguma ordem no pensamento teríamos:

Lídia, eu amo as rosas volucres dos jardins de Adónis, que no mesmo dia em que nascem também morrem. (1ª estrofe)
A luz para elas é eterna porque quando nascem já o sol nasceu e quando morrem o sol ainda não morreu (2º estrofe)
Façamos o mesmo da nossa vida, Lídia, inscientes como as rosas que duram só um dia, porque a vida é breve (3ª estrofe)

Importante o binómio vida/morte e dia/noite
A vida para as rosas é o dia, a morte a noite
Para o ser humano a vida é o conhecimento (dia) e o não conhecimento (noite)

Prefiro Rosas.... Ricardo Reis

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre

Se cada ano com a primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam

E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

"Prefiro rosas, meu amor, à pátria, / E antes magnólias amo / Que a glória e a virtude." - Reis demite-se da vida, e prefere as flores à realidade. Não é em vão que Reis clama pelas rosas ao iniciar este poema. As rosas, para os Gregos representam um ideal estético por excelência e opõe-se eficazmente à realidade crua e dolorosa da vida imposta. Estas flores, sobretudo as rosas, são um símbolo da contraposição entre o ideal estético nobre do poeta face à obrigação de viver. Efémeras e belas, as flores não prolongam a dor. Reis prefere as rosas (símbolo do amor), mas ama as magnólias (símbolo da nobreza).
"Logo que a vida me não canse, deixo / Que a vida por mim passe / Logo que eu fique o mesmo." - Marcada indiferença pela vida, um leit motif de Reis ao longo de todas as suas odes. A vida ao passar, deixa-o na margem do rio, do mesmo rio onde ele se senta com Lídia, apenas a observar. Ser alheio, ser estrangeiro é a forma de Reis se proteger da dor, mesmo que assim tenha de se proteger da vida. De notar também aqui os traços clássicos ("Logo que a vida" e "Que a vida").
"Que importa àquele a quem já nada importa / Que um perca e outro vença, /
Se a aurora raia sempre," - o ritmo morto do poema sugere isto mesmo, que Reis está indiferente à vida, às tribulações e movimento, em favor de um "quietismo" assustador, mas ao mesmo tempo mágico e infinito. Para além do homem e das suas preocupações, afinal está o destino e a natureza. Tudo se move e acontece mesmo sem as nossas acções e o egoísmo (de quem vence ou perde) dilui-se no momento.
"Se cada ano com a primavera / As folhas aparecem / E com o Outono cessam?" - eis o reforço do que dizíamos antes. Os ritmos incessantes da natureza. Da primavera (símbolo da renovação) e do Outono (símbolo da negatividade e do fluir do tempo).
"E o resto, as outras coisas que os humanos / Acrescentam à vida, /
Que me aumentam na alma?" - o que os homens acrescentam à vida opõe-se ao que é natural, às flores de gosto clássico. O passar pela vida sem a modificar opõe-se também à mudança, ao que os homens acrescentam à vida.
A interrogação retórica de Reis fica no ar e leva-nos de novo à pátria (em minúsculas, diminuída), à glória e à virtude - "as outras coisas".
"Nada, salvo o desejo de indiferença / E a confiança mole / Na hora fugitiva." - Responde Reis à sua própria interrogação. As coisas da vida trazem-lhe apenas indiferença. Reis espera apenas pela "hora fugitiva", pelo passar do tempo, e fica sereno, sempre igual.
Veja-se agora como é curioso todo o poema. Reis dirige-se a alguém (ao seu amor), mas fala como a um confidente, de maneira calma e solitária. Como se quem o ouvisse não existisse, senão na sua concepção ideal. Até a maneira como o vocativo está intercalado no verso 1 é clássica, fria, formal. Reis fala, mas é como se falasse consigo mesmo, não conseguindo quebrar a barreira que o impede de se encarar o exterior. Esta contemplação, sinal do seu epicurismo, não permite comunicação sincera, nem laços emocionais.
Estilisticamente o poema é constituído por 6 estrofes isomórficas, com um verso decassilábico e dois hexassílabos cada. Os versos são brancos, sem rima, uma marca também de Reis, que lhe advém da influência Horaciana."

"O poema "Prefiro rosas..." de Ricardo Reis, como outros deste heterónimo de Fernando Pessoa, é marcado por temas fortes e constantes da sua obra. Nomeadamente observamos, quase de imediato, a atitude expectante perante a vida, a resignação e a nobreza de espectador perante a realidade que se desenrola perante os seus olhos.
Heterónimo clássico por definição, Reis tem de Pessoa toda a sua disciplina mental, incorporando quase em ícone um classicismo perfeito, quer na forma quer no conteúdo dos seus poemas. Terá surgido a Pessoa como contraposição ao futurismo, representando em teoria uma perfeita imagem do passado no presente - um verdadeiro poeta neoclássico.
Por ser clássico Reis traz uma atitude contemplativa da vida, mas que já não é ingénua como a de Caeiro. Reis é um homem perturbado e a sua aceitação, a sua ataraxia é uma aceitação muito menos pacífica. Por isso podemos dizer que Reis vê na sua atitude perante a vida uma decisão nobre e não apenas uma inevitabilidade, embora esta última perspectiva seja também essencial para o compreender.
Reis sabe que é diferente da Natureza e está revoltado com isso, em vez de, como Caeiro, procurar a proximidade com as coisas. Afasta-se para dentro e encontra nesse afastamento a razão de viver. Austero e contido, ele é - usando palavras de Jacinto do Prado Coelho - civilizado, na beleza do artifício e na prática constante e perfeccionista da Ode.
Esta indiferença, aceitação da vida, recusa do esforço ou do compromisso - tudo isto se encontra nesta Ode.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Dimensão simbólica das personagens em O Memorial do Convento

A Dimensão Simbólica das Personagens






Em Memorial do Convento há dois grupos antagónicos de personagens: a classe opressora, representada pela aristocracia e alto clero, e os oprimidos, o povo. No primeiro grupo destaca-se a actuação do Rei, enquanto que no segundo, além de Baltasar e Blimunda, se integram o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, perseguido pela Inquisição, pela modernidade do seu espírito científico, e Domenico Scarlatti que, pela liberdade de espírito e pelo poder subversivo da sua música, é uma figura incómoda para o Poder. É ainda importante referir que, em Memorial do Convento, as personagens históricas convivem com as fictícias, conduzindo à fusão entre realidade e ficção.

D. João V

Rei de Portugal de 1706 a 1750, desempenha o papel de monarca de setecentos que quer deixar como marca do seu reinado uma obra grandiosa e magnificente - o Convento de Mafra. Este é construído sob o pretexto de que cumpre uma promessa feita ao clero, classe que "santifica" e justifica o seu poder.
É símbolo do monarca absoluto, vaidoso, megalómano, egocêntrico, e mantém com a rainha apenas uma relação de "cumprimento do dever" e, em alguns momentos, pretende ser um déspota esclarecido, à semelhança dos monarcas europeus da sua época (favorece, durante algum tempo, o projecto do padre Bartolomeu de Gusmão e contrata Domenico Scarlatti para ensinar música a sua filha, a infanta Maria Bárbara). Dado aos prazeres da carne e a destemperos vários (teve muitos bastardos e a sua amante favorita era a Madre Pauta do Convento de Odivelas). Sacrificou todos os homens válidos e a riqueza do país na construção do convento.

Maria Ana Josefa
De origem austríaca, a rainha, surge como uma pobre mulher cuja única missão é dar herdeiros ao rei para glória do reino e alegria de todos. É símbolo do papel da mulher da época: submissa, simples procriadora, objecto da vontade masculina.

Baltasar Sete-Sóis
Baltasar Mateus, de alcunha Sete-Sóis, deixa o exército depois de ter ficado maneta em combate contra os espanhóis, conhece Blimunda em Lisboa, e com ela partilha a vida e os sonhos. De ex-soldado passa a açougueiro em Lisboa e, posteriormente, integra a legião de operários das obras do convento. A sua tarefa máxima vai ser a construção da passarola, idealizada pelo padre Bartolomeu de Gusmão, passando a ser o garante da continuidade do projecto, quando o padre Bartolomeu desaparece em Espanha.

Baltasar acaba por se constituir como a personagem principal do romance, sendo quase "divinizado" pela construção da passarola: "maneta é Deus, e fez o universo. (...) Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão-de voar. " (p. 69) - diz o padre Bartolomeu a propósito do seu companheiro de sonhos. Após a morte do padre, Baltasar ocupa-se da passarola e, um dia, num descuido, desaparece com ela nos céus. Só é reencontrado, nove anos depois, em Lisboa, a ser queimado no último auto-de-fé realizado em Portugal.

O simbolismo desta personagem é evidente, a começar pelo seu nome: sete é um número mágico, aponta para uma totalidade (sete dias da criação do mundo, sete dias da semana, sete cores do arco-íris, sete pecados mortais, sete virtudes); o Sol é o símbolo da vida, da força, do poder do conhecimento, daí que a morte de Baltasar no fogo da Inquisição signifique, também, o regresso às trevas, a negação do progresso. Baltasar transcende, então, a imagem do povo oprimido e espezinhado, sendo o seu percurso marcado por uma aura de magia, presente na relação amorosa com Blimunda, na afinidade de "saberes" com o padre Bartolomeu e no trabalho de construção da passarola.

Baltasar é uma das personagens mais bem conseguidas de todo o romance porque descrever a ambição de um rei, as intrigas duns frades e a loucura de um cientista é relativamente fácil, mas escolher uma personagem do povo, maneta e vagabunda, que aparentemente não tem muito para dizer e convertê-la no fio condutor da narrativa e no protagonista duma das mais belas e sentidas histórias de amor, é algo que só conseguem autores como Cervantes, que de um criado como Sancho Pança criou um arquétipo e um digno "antagonista" de Dom Quixote.

Baltasar é um homem simples, elementar, fiel, terno e maneta, que confina a capacidade de surpresa com a resignação típica das pessoas humildes de coração e de condição. Aceita a vida que lhe foi dado viver e a mulher que o destino lhe ofereceu, sem assombro nem protestos; acata as suas circunstâncias e não tem medo nem do trabalho nem da morte. Não é um herói nem um anti-herói, é simplesmente um homem.

Blimunda de Jesus
Blimunda de Jesus é "baptizada" de Sete-Luas pelo padre Bartolomeu de Gusmão ("Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, (...) Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem baptizada estava, que o baptismo foi de padre, não alcunha de qualquer um" - pág. 94).

Conhece Baltasar quando assiste à partida de sua mãe, acusada de feitiçaria, para o degredo. Logo os dois se apaixonam, e este amor puro e verdadeiro foge às convenções, subvertendo a moral tradicional e entrando no domínio do maravilhoso - cf. primeira noite de amor (pp. 56-57).

Blimunda tem um dom: vê o interior das pessoas quando está em jejum, herdou da mãe um "outro saber" e integra-se no projecto da passarola, porque, para o engenho voar, era preciso "prender" vontades, coisa que só Blimunda, com o seu poder mágico, era capaz de fazer. Blimunda é, simultaneamente, uma personagem que releva o domínio do maravilhoso, pelo dom que tem de ver "o interior" das pessoas (poder que nunca exerce sobre Baltasar: "Nunca te olharei por dentro" - p. 57), porque amar alguém é aceitá-lo sem reservas. Blimunda encerra uma dimensão trágica na vivência da morte de Baltasar.

Simbolicamente, o nome da personagem acaba por funcionar como uma espécie de reverso do de Baltasar. Para além da presença do sete, Sol e Lua completam-se: são a luz e a sombra que compõem o dia - Baltasar e Blimunda são, pelo amor que os une, um só. A relação entre os dois é também subversiva, porque não existe casamento oficial e porque os dois têm os mesmos direitos, facto inverosímil em pleno século XVIII.

Como outras personagens femininas de Saramago, também Blimunda tem uma grande firmeza interior, uma forma de oferecer-se em silêncio e de aceitar a vida e os seus desígnios sem orgulho nem submissão, com a naturalidade de quem sabe onde está e para quê.

Glória Hervás Fernandez, in Uma leitura espanhola de Memorial do Convento de José Saramago, in revista Palavras, n.º 21, Primavera de 2002.

Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão
O padre Bartolomeu, personagem real da História, forma com Baltasar e Blimunda o núcleo mágico e trágico do romance. Vive com uma obsessão, construir a máquina de voar, o que o leva a encetar uma investigação científica na Holanda. Como cientista ignora os fanatismos religiosos da época e questiona todos os principias dogmáticos da Igreja. O seu sonho de voar e as suas inabaláveis certezas científicas revelam orgulho, "ambição de elevar-se um dia no ar, onde até agora só subiram Cristo, a Virgem e alguns santos eleitos" e tornam-no persona non grata para a Inquisição que o acusa de bruxaria, obrigando-o a fugir para Espanha e a deixar o seu sonho/projecto nas mãos de Baltasar.

A sua obsessão de voar domina-o de tal forma, que ele não se inibe de integrar no seu projecto um casal não abençoado pela Igreja e de aceitar e usufruir das capacidades heréticas de Blimunda, que farão a passarola voar. A passarola, símbolo da concretização do sonho de um visionário, funciona de uma forma antagónica ao longo da narrativa: é ela que une Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu, mas também é ela que vai acabar por separá-los.


Domenico Scarlatti

Artista estrangeiro contratado por D. João V para iniciar a infanta Maria Bárbara na arte musical. O poder curativo da sua música liberta Blimunda da sua estranha doença, permitindo-lhe cumprir a sua tarefa ("Durante uma semana (...) o músico foi tocar duas, três horas, até que Blimunda teve forças para levantar-se, sentava-se ao pé do Cravo, pálida ainda, rodeada de música como se mergulhasse num profundo mar, (...) Depois, a saúde voltou depressa" - pp. 191-2).

Scarlatti é cúmplice silencioso do projecto da passarola ("Saiu o músico a visitar o convento e viu Blimunda, disfarçou um, o outro disfarçou, que em Mafra não haveria morador que não estranhasse, e (...) fizesse logo seus juízos muito duvidosos" p. 231).

É, ainda, Scarlatti que dá a notícia a Baltasar e Blimunda da morte do padre Bartolomeu. A música do cravo de Scarlatti simboliza o ultrapassar, por parte do homem, de uma materialidade excessiva, e o atingir da plenitude da vida.

Bartolomeu de Gusmão, esse, aliado em diálogo excepcional com o músico Scarlatti, o único que pode de raiz compreender as suas congeminações aladas, representa a possibilidade de articulação entre a cultura e o humano, entre o saber e o sonho, entre o conhecimento e o desejo (...) São os caminhos da ficção os que mais justificadamente conduzem ao encontro da verdade.

Maria Alzira Seixo, in O Essencial sobre José Saramago, INCM.

Relações amorosas em Memorial do Convento

Espaço e Personagens em Memorial do Convento

Espaço
Evocação de dois espaços principais determinantes no desenrolar da acção: Mafra e Lisboa.

Mafra: passa da vila velha e do antigo castelo nas proximidades da Igreja de Santo André para a vila nova em cujas imediações se vai construir o convento. A vila nova cria-se justamente por causa da construção do convento.

Lisboa: descrevem-se vários espaços dos quais se destacam o Terreiro do Paço, o Rossio e S. Sebastião da Pedreira.

Portugal beneficiava da riqueza proveniente do ouro do Brasil. D. João V em decreto de 26 de Novembro de 1711 autorizou que se fundasse, na vila de Mafra, um convento dedicado a Santo António e pertencente à Província dos Capuchos Arrábidos.

Ludwig, arquitecto alemão, estava em Lisboa, em 1700, contratado como decorador-ourives, pelos Jesuítas. Foi a ele que entregaram o projecto do Mosteiro, destinado a albergar 300 frades. A traça do edifício terá sido executada por volta de 1714-1715 ao passo que a igreja, avançada ate ao zimbório, foi sagrada em 1730. Outras dependências foram construídas para além da igreja: portaria, refeitório, enfermaria, cozinha, claustros, biblioteca.

Terreiro do Paço: local onde primeiramente trabalha Baltasar na sua chegada a Lisboa, descrição pormenorizada e sugestiva da procissão do Corpo de Deus, em Junho. É um espaço fulgurante de vida, com grande importância no contexto da sociedade lisboeta da época.

Rossio: surge no início da obra, relacionado com o auto-de-fé que aí se realiza. A reconstituição do auto-de-fé é fidedigna, a cerimónia tinha por base as sentenças proferidas pelo Tribunal do Santo Ofício e nela figuravam não só reconciliados, mas também relaxados, aqueles que eram entregues à justiça secular para a execução da pena de morte. O dia da publicação do auto era festivo, segundo se pode constatar das defesas efectuadas. A procissão propriamente dita saía na manhã de domingo da sede do Santo Ofício e percorria a cidade de Lisboa antes de chegar ao local da leitura das sentenças, numa das praças centrais. À frente seguiam os frades de S. Domingos com o pendão da Inquisição. Atrás destes os penitentes por ordem de gravidade das culpas, cada um ladeado por dois guardas. Depois, os condenados à morte, acompanhados por frades, seguidos das estátuas dos que iam ser queimados em efígie. Finalmente os altos dignitários da Inquisição, precedendo o Inquisidor-Geral. A sorte dos réus vinha estampada nos sambenitos (hábito em forma de saco, de baeta amarela e vermelha que se vestia aos penitentes dos autos-de-fé) para que a compacta multidão que se aglomerava soubesse o destino dos condenados.

S. Sebastião da Pedreira: local mágico ao qual só acedem o padre, Bartolomeu Lourenço, o Voador, Baltasar e Blimunda. É lá que se encontra a máquina voadora que está a ser construída em simultâneo com o Convento de Mafra. A passarola insere-se na narrativa como um mito, do qual o homem depende para viver, mito proibido mas que se evidenciará e se deixará ver pelo voo espectacular que se realizará, mostrando que ao homem nada é impossível e que a vida é uma grande aventura. S. Sebastião da Pedreira era, àquele tempo, um espaço rural, onde não faltavam fontes, terras de olival, burros, noras, e onde se situava a quinta abandonada. Ali irão as personagens, variadíssimas vezes e pelas razões mais diversas.

Personagens
D. João V: proclamado rei a 1 de Janeiro de 1707, casou, no ano seguinte, com a princesa Maria Ana de Aústria e vive um dos mais longos reinados da nossa história. Surge na obra só pela sua promessa de erguer um convento se tivesse um filho varão do seu casamento. O casal real cumpre, no início da obra, com artificialismo, os rituais de acasalamento. O autor escreverá o memorial para resgatar o papel dos oprimidos que o construíram. Rei e rainha são representantes do poder, da ordem e da repressão absolutista.

Baltasar e Blimunda: são o casal que, simbolicamente, guardará os segredos dos infelizes, dos humilhados, dos condenados, enfim, dos oprimidos. Conhecem-se durante um auto-de-fé, levado a cabo pela Inquisição, o de 26 de Julho de 1711 e não mais deixam de se amar. Vivem um amor sem regras, natural e instintivo, entregando-se a jogos eróticos. A plenitude do amor é sentida no momento em que se amam e a procriação não é sonho que os atormente como sucede com os reis.

Blimunda: com poderes que a tornavam conhecedora dos outros nos seus bens e nos seus males, recusando-se, no entanto, a olhar Baltasar por dentro. Vai ser ela quem, com Baltasar, guardará a passarola quando o padre Bartolomeu vai para Espanha onde, afinal, acabará por morrer. Ela e Baltasar sentir-se-ão obrigados a guardá-la como sua, quando, após uma aventura voadora, conseguira aterrar na serra do Barregudo, não longe de Monte Junto, perdido o rasto do padre que desaparecera como fumo. Quando voltaram a Mafra, dois dias depois, todos achavam que tinha voado sobre as obras da basílica o Espírito Santo e fizeram uma procissão de agradecimento. Começaram a voltar ao local onde a passarola dormia para cuidar dela, remendá-la, compô-la e limpá-la.

Um dia Baltasar foi verificar os efeitos do tempo na passarola mas Blimunda não o acompanhou e ele não voltou. Procurou-o durante 9 anos, infeliz de saudade, na sua sétima passagem por Lisboa encontrou-o entre os supliciados da Inquisição, a arder numa das fogueiras, disse-lhe "Vem" e a vontade dele não subiu para as estrelas pois pertencia à terra e a Blimunda.

Povo: todos os anónimos que construíram a História são representados através daqueles a quem o autor dá nome: Alcino, Brás, Nicanor, etc.

Padre Bartolomeu de Gusmão: tem por alcunha O Voador, gosto pelas viagens, estrangeirado, a ciência era, para ele, a preocupação verdadeiramente nobre. O rei mostra-se muito empenhado no progresso do seu invento. A populaça troça dele, Baltasar e Blimunda serão ouvintes atentos das suas histórias e sermões. A amizade destes dois seres, simples, enigmáticos, mas verdadeiros protagonistas do Memorial, é tão valiosa para o padre como necessária à representatividade da obra como símbolo de solidariedade e beleza em dicotomia com egoísmo e poder.

Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu Lourenço formam um trio que vai pôr em prática o sonho de voar. Assim, o trabalho físico e artesanal, de Baltasar, liga-se à capacidade mágica de Blimunda e aos conhecimentos científicos do padre. Todos partilham do entusiasmo na construção da passarola, aos quais se junta um quarto elemento, o músico Domenico Scarlatti, que passa a tocar enquanto os outros trabalham. O saber artístico junta-se aos outros saberes e todos corporizam o sonho de voar.

Scarlatti: veio como professor do irmão de D. João V, o infante D. António, passando depois a ser professor da infanta D. Maria Bárbara. Exerceu as funções de mestre-de-capela e professor da casa real de 1720 a 1729, tendo escrito inúmeras peças musicais durante esse tempo. No contexto do romance, para além do seu contributo na construção da passarola é determinante na cura da doença de Blimunda; durante uma semana tocou cravo para ela, até ela ter forças para se levantar.

Crítica da guerra: absurda, sacrifica homens em nome de um interesse que lhes é completamente estranho e abandona-os à sua sorte quando doentes ou estropiados.