O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
Comentários:
"O mito é o nada que é tudo"- esta frase exprime a ideia que Fernando Pessoa tinha dos mitos como potenciais motores sociológicos. Mesmo se falso (isto é, mesmo que não seja nada) um mito tem o potencial de provocar comportamentos sociais e, portanto, facilitar a evolução de uma nação segundo determinados vectores.
"O mesmo sol que abre os céus...etc"- provável referência aos deuses solares (ou mitos afins) que todos os dias eram supostos renascer à alvorada, depois de terem "morrido" no poente anterior.
"Este que aqui aportou"- referência a Ulisses, herói lendário da Odisseia e fundador mítico de Lisboa, onde teria aportado numa das suas navegações ("Lisboa" deriva de Olisippo e Ulixbona- em cuja raiz alguns creem ver o nome de Ulisses ou Odisseus).
"Foi por não ser existindo"- porque não era, foi existindo; foi-se insinuando na nossa realidade.
"a fecundá-la decorre"- a lenda tem uma interacção positiva com a realidade; "A vida, metade de nada, morre"- a vida por si só nada vale porque logo desaparece (mas o mito persiste!).
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