Os Lusíadas
Os Lusíadas são uma obra do séc. XVI. Este século, caracterizado por uma grande viragem no pensamento humano, é marcado por três grandes movimentos culturais: o Humanismo, o Renascimento e o Classicismo.
No Humanismo, o Homem encontra-se no centro das atenções, dando lugar ao antropocentrismo (antropos significa Homem) que se opôe ao teocentrismo (Deus no centro). Trata-se de um movimento intelectual europeu que procurou vigorosamente descobrir e reabilitar a literatura e o pensamento da Antiguidade Clássica e que tem como interesse central o Homem, no pleno desenvolvimento das suas virtualidades e empenhado na acção, havendo aqui uma nítida oposição à concepção hierárquica e feudalista do Homem medieval.
O Renascimento desenvolveu-se em países da Europa Central e Ocidental, como a Itália (passando sucessivamente de Florença a Siena e depois a Roma, e alastrando posteriormente a toda a Península Italiana), nos séculos XIV a XVI e veio a irradiar e a ter fundas repercussões na cultura de praticamente todos os países do continente europeu. As figuras de proa do movimento gostavam de se apresentar como críticos do "obscurantismo" medieval, numa atitude de contestação à tradicional influência da religião na cultura, no pensamento e na vida quotidiana ocidental. O movimento renascentista começa por ser uma contestação da ideologia dominante durante o milénio medieval: à civilização cristã contrapõe-se uma ideologia antropocêntrica, revelando um desiderato de fazer renascer a Antiguidade greco-latina, que, na interpretação então prevalecente, se caracterizara precisamente por colocar o Homem no centro do Universo e representava um ideal de civilização natural.
O Classicismo consiste num sentimento de admiração pela Antiguidade Clássica e no desejo de imitação da cultura greco-romana e de retoma dos seus valores, reflectindo-se em todas as artes como a pintura, a escultura e a literatura. Com base nos modelos clássicos greco-romanos, este movimento tem como principais valores a harmonia, a simplicidade, o equilíbrio, a precisão e o sentido das proporções. Refira-se, como exemplo na pintura, Leonardo da Vinci e Rafael. Os estudos das poéticas de Horácio e de Aristóteles disciplinam a desordem artística medieval.O enriquecimento filosófico e estético que oferece o estudo de Platão, Homero, Sófocles, Ésquilo, Ovídio, Virgílio e Fídias, dá aos valores ocidentais maior dignidade artística e intelectual. A Itália, detentora dos valores clássicos, latinos e gregos, é considerada o berço deste movimento, com Dante, Francesco Petrarca e Giovanni Boccaccio.
Foi durante o século XVI que viveu Camões. A vida de Luís Vaz de Camões já se tornou uma lenda pois, concretamente, com base documental, sabe-se muito pouco da sua história.
Pensa-se que terá nascido por volta de 1524. A sua formação académica foi realizada em Coimbra. A sua vida foi especialmente marcada por duas actividades: as armas, nos combates em que participou no Norte de África e onde perdeu um dos seus olhos, e as letras. Terá sido na Índia que o poeta iniciou a escrita do primeiro Canto d’Os Lusíadas. Mais tarde, em Macau, terá composto mais seis Cantos. Conta-se que durante uma viagem para Goa, o barco em que Camões seguia naufragou e o poeta salvou o seu poema épico, nadando apenas com um braço e erguendo o outro fora da água. Pensa-se que foi em Moçambique que terminou a epopeia, que veio a ser publicada pela primeira vez em 1572 com o apoio do rei D. Sebastião. Esta obra é, hoje, mundialmente conhecida e Camões tornou-se o escritor português mais célebre. Apesar da sua grandiosidade, Camões viveu sempre com muitas dificuldades e desilusões. A sociedade corrompida e decadente em que se inseria nunca o reconheceu. As pessoas do seu tempo não souberam valorizar nem a obra nem o poeta. Após vários anos amargurados pela doença e pela miséria, o poeta morreu em 1580, no dia 10 de Junho.
Camões escreveu Os Lusíadas sob a forma de narrativa épica ou epopeia, forma muito utilizada na Antiguidade Clássica e que Camões conhecia bem.
Definição de epopeia Uma epopeia, forma literária da Antiguidade Clássica, define-se como uma narrativa, estruturada em verso, que narra, através de uma linguagem cuidada, os feitos grandiosos, de um herói, com interesse para toda a Humanidade.
Estrutura da Obra
Os Lusíadas podem ser considerados uma síntese da cultura renascentista, quer nos aspectos literários e filosóficos de cariz classicista e humanista, quer nos aspectos científicos, revelando um grande interesse documental para a compreensão da mentalidade da época.
Assim, o poeta seguiu fielmente os ensinamentos da Antiguidade greco-latina no que se refere à estrutura de uma epopeia:
ESTRUTURA CLÁSSICA DA OBRA
Divisão em partes:
1. Proposição
2. Invocação
3. Dedicatória
4. Narração
A narração inclui:
Intervenções do maravilhoso
Episódios (narrativas menores)
Narrações retrospectivas, retrocesso no tempo em relação à acção central, isto é, 1498, ano em que se efectuou a primeira viagem de Vasco da Gama para a Índia:
1. De Vasco da Gama ao rei de Melinde, contando a história de Portugal desde a sua fundação lendária - cantos III e IV
2. De Vasco da Gama ao rei de Melinde, contando a viagem de Lisboa a Moçambique, já que no canto I a narração começa in medias res - canto V
3. Profecias, avanços no tempo em relação à acção central:
Profecia de Júpiter a Vénus - canto II;
Profecia dos rios Indo e Ganges a D. Manuel - canto IV;
Profecias do Gigante Adamastor a Vasco da Gama - canto V;
Profecias de Tétis a Vasco da Gama durante o banquete - canto X;
Profecias de Tétis no monte, frente à bola de cristal - canto X,
Matéria Épica
O Poeta soube adaptar sabiamente a matéria épica à realidade portuguesa, respeitando o cânone do género: grandeza do assunto e da personagem principal (herói da epopeia), unidade de acção, concentrada no tempo e no espaço.
Forma
Em termos formais, o Poema está escrito em estilo "sublime", elevado, adequado à temática abordada e seguindo estritamente as regras clássicas para a elaboração de uma epopeia. O Poema está dividido em 10 cantos, totalizando 1102 estâncias, sendo cada uma constituída por oito versos.
Planos narrativos
1. Plano da viagem
2. Plano dos Deuses
3. Plano da História de Portugal
4. Plano do Poeta
5.
A descoberta de caminho marítimo para a Índia6.
A viagem de Vasco da GamaA descoberta de caminho marítimo para a Índia
O alargamento territorial por via marítima não era novidade em Portugal, visto que já no reinado de D. Afonso IV (1325-1357) se tinha realizado uma expedição às Canárias. A navegação de longa distância fazia-se há muito, e recebera particular impulso com D. Dinis (1279-1325); mas os navios seguiam rotas ao longo da costa, condição fundamental para garantir o abastecimento e diminuir os riscos.
Para que a viagem de Bartolomeu Dias fosse possível, os portugueses tiveram de construir a caravela, um navio revolucionário para a época: rápido, leve, ágil, capaz de navegar tanto em alto mar como junto à costa, foi o verdadeiro instrumento das viagens de descoberta.
A caravela estava equipada com velas triangulares (velas latinas), importantes para que fosse possível bolinar, isto é, navegar mesmo quando os ventos eram contrários. Foram também utilizados, pela primeira vez, meios práticos e seguros de fazer cálculos astronómicos e determinar a posição e a rota dos navios, com instrumentos como o astrolábio, o quadrante e a balestilha.
O feito de Bartolomeu Dias teve longos antecedentes de tentativas, estudos e esforços científicos. O próprio Infante D. Henrique se rodeou, na sua casa de Lagos, de um conjunto de cosmógrafos e cartógrafos de origem catalã, maiorquina e genovesa, com o objectovo de preparar devidamente os comandantes das suas expedições. Foi esta a verdadeira "escola náutica". Os resultados deste esforço foram notáveis: pela primeira vez fazia-se navegação astronómica, rigorosa e científica.
Em 1488, o pequeno grupo de navios conduzidos por Bartolomeu Dias, que seguia ao longo da Costa Ocidental de África, ignorando que estava muito perto do seu extremo, desviou-se cerca de 30º para sul, e encontrou-se em pleno Atlântico, sem conseguir avistar terra.
Para retomar o contacto com a costa, as caravelas tiveram de seguir para nordeste, e acabaram por dobrar o temível cabo das Tormentas, identificado n' Os Lusíadas com a figura do gigante Adamastor, que parecia marcar o fim do mundo. A frota estava a leste do Cabo, pela primeira vez na história dos Descobrimentos portugueses. A zona passou a ter o nome de Cabo da Boa Esperança.
A dobragem do cabo da Boa Esperança foi simultaneamente o descobrimento da passagem para o oceano Índico, e o apontar do caminho para o Oriente tão desejado, terra rica e promissora, quase mítica no imaginário europeu.
A viagem de Vasco da Gama
O Oriente era conhecido pelos Europeus, que muito apreciavam os produtos exóticos de lá trazidos pelo comerciantes árabes, através das rotas do Levante.
Mas o contacto directo com as zonas produtoras da Índia, da Pérsia e da China, ricas em especiarias, sedas, tapetes, porcelanas, madeiras preciosas e outros objectos de luxo, tinha as suas rotas tradicionais bem estabelecidas.
O comércio a partir do mar Vermelho e do golfo Pérsico era monopolizado pelos mercadores muçulmanos, a quem as cidades italianas, que dominavam o Mediterrâneo (sobretudo Génova e Veneza), compravam a mercadoria, que depois se encarregavam de vender à Europa a peso de ouro.
Era um negócio de lucros imensos, que D. João II (1482-1495) desejava para si; evitar a concorrência dos Italianos e a resistência dos Árabes só era possível contornando a África pelo Sul, para alcançar a Índia por um caminho alternativo ao tradicional.
O sonho de D. João II foi retomado por D. Manuel I (1495-1521). D. Estêvão da Gama, capitão-mor da vila de Sines, fora o primeiro escolhido para a continuação dos descobrimentos da costa oriental africana, e para o empreendimento da Índia. Mas a sua morte fez com que o seu quarto filho, Vasco da Gama, se visse à frente do projecto com apenas 29 anos de idade.
A frota comandada por Vasco da Gama, simultaneamente almirante e embaixador do reino, encarregado de estabelecer relações diplomáticas e comerciais com o samorim de Calecute, partiu do Restelo a 8 de Julho de 1497. Era constituída por três naus: a S. Gabriel, comandada pelo chefe da expedição, a S. Rafael, comandada pelo seu irmão Paulo da Gama, e a Bérrio, dirigida pelo navegador Nicolau Coelho, além de uma pequena caravela com mantimentos.
A frota seguiu pelo alto mar, quase se aproximando do Brasil, fazendo aquilo que os marinheiros chamavavam "a volta", para evitar os ventos contrários da Costa Ocidental Africana, visto que levavam naus e não as ágeis e manobráveis caravelas.
O cabo da Boa Esperança, onde Camões imagina o encontro de Vasco da Gama com o gigante Adamastor, foi atingido em Novembro e, a partir daí, a navegação fez-se pelo Índico. Muitos dos marinheiros estavam então atacados de escorbuto, doença terrível motivada pela carência de alimentos frescos, que minou a tripulação.
Durante a viagem ao longo da costa oriental de África, os marinheiros portugueses tiveram alguns encontros com nativos locais, que inspiraram o episódio de Fernão Veloso em Os Lusíadas.
Em Março de 1498, no porto da ilha de Moçambique, Vasco da Gama viu barcos árabes a carregar mercadorias, e quis beneficiar de vantagens semelhantes, o que acabou por desencadear manifestações de hostilidade do chefe local.
Mais tarde, em Mombaça, os portugueses tiveram um acolhimento semelhante, sofrendo a traição de um piloto negro, pelo que foram obrigados a usar a artilharia de bordo para escapar.
Finalmente, o sultão de Melinde recebeu muito bem o almirante português, visitou as naus, e colocou à sua disposição um excelente piloto árabe, que ajudou a conduzir a frota à costa do Malabar.
A cidade de Calecute foi alcançada em 20 de Maio de 1498, concluindo-se assim a primeira ligação marítima, por via atlântica, entre a Europa e o Oriente. A primeira recepção do samorim de Calecute foi favorável ao estabelecimento de relações comerciais entre a região e a Coroa portuguesa.
Todavia, a missão de Vasco da Gama, ficaria também marcada pela hostilidade dos mercadores árabes estabelecidos na zona, que temendo a concorrência, fizeram tudo o que estava ao seu alcance para sabotar as negociações do representante de Portugal.
Mas, Vasco da Gama, revelando-se excelente diplomata, acabou por conseguir um carregamento de especiarias que cobriu os gastos da expedição, quando regressou ao reino, recebeu excelentes recompensas régias.
O Malabar parecia então aberto ao comércio com Portugal, e permitiu a criação do Estado Português da Índia, mantido até finais do séc. XVI, sob a direcção de vários Governadores e Vice-reis, representantes da Coroa portuguesa, entre os quais esteve o próprio Vasco da Gama.
O tráfico com o Oriente seria, durante quase todo o século XVI, um monopólio real.
Esquematização dos cantos
Legenda:
© = Amor
& = História
% = Aviso de perigo
h = Viagem
O = Perigo
V = Religião
? = Opinião do Poeta
J = Cómico
Canto I
· 1-3 Proposição: o Poeta expõe o tema do seu poema.
· 4-5 Invocação: O Poeta pede inspiração às ninfas do Tejo, Tágides, para escrever a sua obra.
· 6-18 O Poeta dedica o seu poema ao rei: D. Sebastião.
· 19 h Início da narração: a armada de Vasco da Gama está no Oceano Índico.
· 20-42 % Consílio dos deuses para decidir o futuro dos Portugueses.
· 43-104 h A viagem prossegue com alguns problemas e intervenções dos deuses e finalmente chegam a Mombaça.
· 105-106 ? O Poeta reflecte sobre a fragilidade do homem.
Canto II
· 1-10 A armada está em Mombaça.
· 11-63 Intervenções de Baco, Vénus, Júpiter e Mercúrio.
· 64-108 h Chegada a Melinde: o rei pede a Vasco da Gama que lhe conte onde fica Portugal, como foi a viagem e a História de Portugal.
Canto III
· 1-2 O Poeta invoca a musa Calíope para, através de Vasco da Gama, iniciar a narração da história de Portugal.
· 3-143 Discurso de Vasco da Gama que responde às perguntas do rei de Melinde. Assim, começa por dar a localização de Portugal; em seguida fala da dinastia de Borgonha: de D. Afonso Henriques a D. Fernando. Neste discurso são referidos vários episódios:
· 42-54 V Batalha de Ourique.
· 101-106 © Formosíssima Maria.
· 107-117 & Batalha do Salado.
· 118-135 © Inês de Castro.
Canto IV
· 1-75 Continua o discurso de Vasco da Gama ao rei de Melinde: história da dinastia de Avis (de D. João I a D. Manuel), inclui dois episódios:
· 28-44 & Batalha de Aljubarrota.
· 67-75 % Sonho de D. Manuel
· 76-104 Os preparativos para a viagem e as despedidas em Belém, inclui um episódio:
· 94-104 % Velho do Restelo
Canto V
· 1-89 h Vasco da Gama conta ao Rei de Melinde como foi a viagem de Lisboa até ali, que inclui os seguintes episódios:
· 18 O Fogo de Santelmo
· 19-23 O Tromba Marítima
· 30-36 J Fernão Veloso
· 37-60 O Gigante Adamastor
· 81-83 O Escorbuto
· 90-100 ? O poeta lamenta-se do desprezo pelas artes e letras.
Canto VI
· 1-91 h A armada sai de Melinde, inicia-se aqui a última etapa da viagem rumo à Índia, no decorrer da qual são inseridos os seguintes episódios:
· 16-37 % Consílio dos deuses marinhos.
· 43-69 O Os doze de Inglaterra.
· 70-91 O Tempestade
· 92-94 h Chegada à Índia.
Canto VII
· 1-77 Na Índia: contactos; Vasco da Gama visita o Samorim e o Catual visita as naus.
· 78-87 ? O Poeta invoca as ninfas do Tejo e do Mondego e comenta quem (não) merece ser incluído no seu poema.
Canto VIII
· 1-46 Na Índia: Paulo da Gama recebe o Catual a bordo da sua nau e, através da descrição das bandeiras, refere alguns ilustres portugueses. Em seguida o Catual regressa a terra
· 47-95 Intervenção de Baco e alguns incidentes, mas finalmente Vasco da Gama consegue regressar à nau.
· 96-99 ? Reflexões do Poeta sobre o poder do ouro.
Canto IX
· 1-17 h Inicia-se aqui a viagem de regresso a Portugal.
· 18-91 h A armada avista uma ilha e resolve aportar; trata-se afinal da ilha que Vénus preparou para homenagear os Portugueses: um paraíso povoado de ninfas; inclui episódio:
· 52-91 © Ilha dos Amores
· 92-95 ? Considerações do Poeta: como atingir a glória.
Canto X
· 1-142 Na Ilha de Vénus ou dos Amores: decorre um banquete. Tétis explica a máquina do mundo e faz profecias sobre o futuro dos Portugueses na Ásia, África e América. O próprio naufrágio de Camões é referido. Inclui os seguintes episódios:
· 1-7 © Ilha dos Amores (continuação)
· 10-42 © Ilha dos Amores (continuação)
· 108-118 V Episódio de S. Tomé.
· 143-144 h Embarque e regresso a Portugal.
· 145-156 ? Considerações do Poeta: lamenta a decadência do seu país; apela ao rei, D. Sebastião, para que governe bem.
Figuras de estilo
As figuras de estilo são recursos que tornam a linguagem mais expressiva, permitindo condensar múltiplas ideias em poucas palavras. Deste modo, o escritor /o poeta, sugere ao leitor várias interpretações para os seus textos / poemas e leva-o, por vezes, a associá-los a outros textos ou temas do conhecimento geral.
Alegoria
Metáfora desenvolvida de modo a sugerir, por alusão, uma ideia diferente; geralmente, o autor pretende apresentar uma verdade moral ou espiritual subjacente à acção.
N’Os Lusíadas
A alegoria da ilha dos Amores
(Ilha = recompensa, paraíso)
C. IX, 52-91
C. X, 1-7; 10-142
Aliteração
Repetição de um som ou sílaba no início, no meio ou no fim das palavras; utilizada para criar um efeito auditivo de harmonia ou de onomatopeia.
N’Os Lusíadas
Que um fraco rei faz fraca a forte gente
C. III, 138.8
Alusão
Referência breve a uma pessoa ou circunstância supostamente conhecida do leitor, de modo a alargar o saber para além do próprio texto.
N’Os Lusíadas
D’água do esquecimento
C.I, 32.7
= Rio Letes que, segundo a lenda, se situava no Inferno pagão, cujas águas tiravam a memória aos que dela bebessem.
Anáfora
Repetição de uma ou mais palavras no início de dois ou mais versos.
N’Os Lusíadas
Dai-me agora um som alto e sublimado,
................................................................
Dai-me ua fúria grande e sonorosa,
................................................................
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
C.I, 4.5, 5.1, 5
Anástrofe Processo que consiste na inversão da ordem habitual das palavras, de forma a pôr em relevo elementos da frase. Neste caso, a inversão é menos violenta do que no
Hipérbato.
Que sejam, determino, agasalhados (Os Lusíadas, I, 29, v. 5
Antítese
Expressão de ideias opostas numa só frase; tese significa afirmação, anti- contra.
N’Os Lusíadas
A pequena grandura de um batel
C. VI, 74.6
Antonomásia
Identificação de alguém através de um epíteto ou de qualquer outro termo que não seja o seu nome próprio.
N’Os Lusíadas
Cessem do sábio Grego e do Troiano
C. I, 3.1
(Sábio Grego: Ulisses; Troiano: Eneias)
Apóstrofe
Interpelação de uma pessoa, entidade ou coisa personificada, no meio de uma narração, por exemplo, a invocação às Musas na poesia. Pode ser utilizado para chamar a atenção do leitor, mudando de assunto.
N’Os Lusíadas
"Tu só, tu, puro Amor, com força crua,
III, 119.1
Assíndeto
Sequência de palavras ou frases às quais se omitiu a conjunção e, substituída por vírgula, condensando várias ideias numa só frase, possibilitando, por vezes, diversas interpretações.
N’Os Lusíadas
Fere, mata, derriba, denodado;
C.III, 67.3
Assonância
Repetição dos mesmos sons vocálicos em palavras muito próximas.
N’Os Lusíadas
As armas e os barões assinalados
C.I, 1.1
Comparação
Método de aproximação de duas pessoas, ideias ou circunstâncias de modo a evidenciar as suas semelhanças ou diferenças. Distingue-se da metáfora pela utilização de alguns nexos inter-frásicos: como, tal como, assim como.
N’Os Lusíadas
Assi como a bonina, que cortada
C.III, 134
Qual o reflexo lume do polido
Espelho de aço ou de cristal fermoso
C.VIII, 87.1-2
Elipse
Supressão de palavras que facilmente se adivinham, tendo em consideração o contexto.
N’Os Lusíadas
Agora, pelos povos seus vizinhos,
Agora, pelos húmidos caminhos.
C. II, 108.7-8
(Agora, pergunta pelos povos seus vizinhos)
Eufemismo
Suavização de uma ideia desagradável ou cruel através de palavras ou expressões seleccionadas. Pode confundir--se com a perífrase.
N’Os Lusíadas
Tirar Inês ao Mundo determina
C. III, 123.1
(=matar Inês)
Hipérbato (cf.
Anástrofe)
Inversão violenta dos elementos da frase, alterando a ordem sintáctica normal. Utiliza-se para enfatizar o discurso ou para imitar a estrutura sintáctica do latim. Os versos de Os Lusíadas são formados por uma série de hipérbatos.
N’Os Lusíadas
A Deus pedi que removesse os duros
Casos, que Adamastor contou futuros.
C. V.60.7-8
Hipérbole
Expressões que exageram intencionalmente o pensamento. Utiliza-se para enfatizar o discurso. É um dos recursos estilísticos mais utilizados n’Os Lusíadas.
N’Os Lusíadas
Agora sobre as nuvens os subiam
As ondas de Neptuno furibundo;
Agora a ver parece que desciam
As íntimas entranhas do Profundo.
C.VI, 76.1-4
Imagem
Impressão mental ou representação de um animal, pessoa ou coisa que permite criar imagens nítidas, através de uma linguagem metafórica.
N’Os Lusíadas
O mar se via em fogos acendido
C.II, 91.6
Ironia
Recurso, que segundo Aristóteles é um disfarce que conduz à essência da verdade, pois as palavras adquirem um significado diferente daquele em que são empregues.
N’Os Lusíadas
Vede, Ninfas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos,
Que assim sabem prezar, com tais favores,
A quem os faz, cantando, gloriosos!
C.VII, 82.1-4
(Camões ironiza a incompreensão dos seus compatriotas)
Metáfora
Comparação abreviada, implícita, sem a partícula comparativa como, que permite identificar uma coisa com outra através de um processo imaginativo.
Tomai as rédeas Vós do Reino vosso
(Tomai as rédeas = governai)
C. I, 15.3
Metonímia
Substituição do nome dum objecto ou duma ideia por outro relacionado com ele. Assim, dizer a coroa ou o ceptro em vez de o soberano; a cruz e a espada em vez de a religião e o exército; os copos em vez de as bebidas alcoólicas são exemplos de metonímia.
N’Os Lusíadas
De Portugal, armar madeiro leve
(madeiro = nau, feita de madeira)
C. VI, 52.3
Onomatopeia
Palavras cujo som evoca um determinado objecto ou ideia, muitas vezes, são sons da natureza. Trata-se, portanto, da utilização de palavras imitativas para alcançar um efeito estilístico. Pode coincidir com a aliteração.
N’Os Lusíadas
Bramindo, o negro mar de longe brada
C. V, 38.3
Perífrase
Consiste em dizer em muitas palavras, o que poderia ser dito apenas numa.
N’Os Lusíadas
Mas assim como os raios espalhados
Do Sol foram no mundo, e num momento
Apareceu no rúbido Horizonte
Na moça de Titão a roxa fronte,
C. II, 13.5-8
(= Aurora, deusa; aurora, nascer do dia)
Personificação / Prosopopeia
Atribuição de características humanas a abstracções, animais, ideias ou objectos inanimados.
N’Os Lusíadas
A figura do Gigante Adamastor, personificação de um cabo, que aparece a falar.
... e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso
C. IV, 28.3-4
Pleonasmo
Repetição desnecessária da mesma ideia utilizando muitas palavras.
N’Os Lusíadas
Vi, claramente visto, o lume vivo
C. V, 18.1
Sinédoque
Consiste em se tomar a parte pelo todo ou o todo pela parte.
É uma espécie de metáfora, por exemplo, dizer velas por navios ou cabeças por animais; na expressão o pão nosso de cada dia, pão significa não apenas alimento, mas todo o sustento duma maneira geral. Esta figura de estilo tem ainda algumas semelhanças com a perífrase e a metonímia.
N’Os Lusíadas
Vós, ó novo temor da Maura lança,
(canto I,6.5),
(= poderio militar dos mouros)
Sinestesia
Associação de sensações recebidas por vários sentidos, por exemplo, uma nota azul (ouvido, vista) ou um verde frio (vista, tacto). são expressões sinestésicas.
N’Os Lusíadas
As areias ali de prata fina;
C. VI, 9.2
(vista: prateado; tacto: textura fina)
Para mais informações consulta:
http://lusiadas.gertrudes.com/poesia1.htmlNoção de epopeia
Uma epopeia é a narrativa dos feitos grandiosos de um indivíduo ou de um povo. Nesta definição encontramos os elementos essenciais de qualquer texto épico.
Enquadra-se no género narrativo - é sempre um relato de acontecimentos: o sujeito da enunciação assume-se como narrador e dispõe-se a fazer o relato de um acontecimento ou conjunto de acontecimentos a um determinado público; a dimensão e a natureza do público depende do assunto objecto do relato, presumindo-se que será sempre constituído pelas pessoas nele interessadas; se o assunto disser respeito a uma determinada comunidade o público será mais restrito; se o assunto tiver um interesse mais vasto, o público será mais alargado, podendo abranger potencialmente toda a humanidade.
O assunto deverá ter um carácter excepcional. Nem todas as acções são susceptíveis de serem tratadas de forma épica; é necessário que, no entendimento do narrador (e do seu público), essas acções se distanciem dos acontecimentos vulgares, assumam um carácter de excepcionalidade. Nas epopeias primitivas os feitos narrados são de carácter lendário, embora essas ficções tenham sempre um fundo histórico. Em algumas epopeias de imitação, no entanto, o assunto é histórico.
Os eventos exigem um agente e, tratando-se de eventos excepcionais, o agente deverá ser igualmente um ser de excepção, um ser que, pela sua origem, pelas suas características, se distancie, se imponha aos seus semelhantes (herói), pouco importando que se trate de um indivíduo ou de uma colectividade (herói individual ou herói colectivo). Na Ilíada e na Odisseia, escritas no século VI a.C., o herói é individual: num caso, Aquiles; no outro, Ulisses. N' Os Lusíadas o herói é, como o título indica, colectivo - o povo português. Já na Eneida de Virgílio há uma certa ambiguidade: o herói parece ser individual, Eneias, mas na realidade o objectivo do poema é exaltar o povo romano.
Característica de todas as epopeias é a utilização de um estilo elevado, correspondente à grandiosidade do assunto, e que se traduz na selecção vocabular, na construção frásica extremamente elaborada e na abundante utilização de recursos estilísticos.
Estrutura externa
Os Lusíadas estão divididos em dez cantos, cada um deles com um número variável de estrofes, que, no total, somam 1102. Essas estrofes são todas oitavas de decassílabos heróicos, obedecendo ao esquema rimático "abababcc" (rimas cruzadas, nos seis primeiros versos, e emparelhada, nos dois últimos).
Estrutura interna
Camões respeitou com bastante fidelidade a estrutura clássica da epopeia. N' Os Lusíadas são claramente identificáveis quatro partes:
Proposição - O poeta começa por declarar aquilo que se propõe fazer, indicando de forma sucinta o assunto da sua narrativa; propõe-se, afinal, tornar conhecidos os navegadores que tornaram possível o império português no oriente, os reis que promoveram a expansão da fé e do império, bem como todos aqueles que se tornam dignos de admiração pelos seus feitos.
Invocação - O poeta dirige-se às Tágides (ninfas do Tejo), para lhes pedir o estilo e eloquência necessários à execução da sua obra; um assunto tão grandioso exigia um estilo elevado, uma eloquência superior; daí a necessidade de solicitar o auxílio das entidades protectoras dos artistas.
Dedicatória - É a parte em que o poeta oferece a sua obra ao rei D. Sebastião. A dedicatória não fazia parte da estrutura das epopeias primitivas; trata-se de uma inovação posterior, que reflecte o estatuto do artista, intelectualmente superior, mas social e economicamente dependente de um mecenas, um protector.
Narração - Constitui o núcleo fundamental da epopeia. Aqui, o poeta procura concretizar aquilo que se propôs fazer na "proposição".
Estrutura da narração
A narração d' Os Lusíadas tem uma estrutura muito complexa, o que decorre dos objectivos que o poeta se propôs. Desenvolve-se em quatro planos diferentes, mas estreitamente articulados entre si.
Plano da viagem - A acção central do poema é a viagem de Vasco da Gama. Escrevendo mais de meio século depois, Luís de Camões tinha já o distanciamento suficiente para perceber a importância histórica desse acontecimento, devido às alterações que provocou, tanto em Portugal, como na Europa. Por essa razão considerou a primeira viagem marítima à Índia como o episódio mais significativo da história de Portugal.
No entanto, tratava-se de um acontecimento relativamente recente e historicamente documentado. Para manter a verosimilhança, o poeta estava obrigado a fazer um relato relativamente objectivo e potencialmente monótono, o que constituía um perigo fatal para o seu projecto épico. Daí que Camões tenha sentido a necessidade de introduzir um segundo nível narrativo.
Plano mitológico (conflito entre os deuses pagãos) - Camões imaginou um conflito entre os deuses pagãos: Baco opõe-se à chegada dos portugueses à Índia, pois receia que o seu prestígio seja colocado em segundo plano pela glória dos portugueses, enquanto Vénus, apoiada por Marte, os protege.
Pode parecer estranho que Camões incluísse num poema destinado a exaltar um povo cristão os deuses pagãos, mas algumas razões permitem compreender essa atitude:
1) Como vimos, a simples narrativa da viagem seria algo monótona, tanto mais que Vasco da Gama e os seus marinheiros têm um carácter rígido, quase inumano: são determinados e inflexíveis, imunes às hesitações, à dúvida, às angústias. Não há ao nível da viagem qualquer conflito. Para introduzir o necessário dramatismo na narrativa, Camões teve que imaginar um conflito externo, o conflito entre Vénus e Baco.
2) Os poemas épicos renascentistas são epopeias de imitação e como tal sujeitas a regras estritas. Uma dessas regras impunha ao poeta a introdução de episódios maravilhosos, envolvendo quase sempre deuses da mitologia greco-latina, à semelhança do que acontecia nos poemas homéricos ou na Eneida .
3) Finalmente, o recurso aos deuses pagãos é mais uma forma de o poeta engrandecer os feitos dos portugueses. Nas suas intervenções, os deuses frequentemente referem-se-lhe de forma elogiosa. Além disso, o simples facto de a disputa entre os deuses ter como objecto os portugueses é já uma forma indirecta de os exaltar.
Plano da História de Portugal - O objectivo de Camões era enaltecer o povo português e não apenas um ou alguns dos seus representantes mais ilustres. Não podia por isso limitar a matéria épica à viagem de Vasco da Gama. Tinha que introduzir na narrativa todas aquelas figuras e acontecimentos que, no seu conjunto, afirmavam o valor dos portugueses ao longo dos tempos. E fê-lo, recorrendo a duas narrativas secundárias, inseridas na narrativa da viagem, cujo narrador é o poeta.
1) Narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde - Ao chegar a este porto indiano, o rei recebe-o e procura saber quem é ele e donde vem. Para lhe responder, Vasco da Gama localiza o reino de Portugal na Europa e conta-lhe a História de Portugal até ao reinado de D. Manuel. Ao chegar a este ponto, conta inclusivamente a sua própria viagem desde a saída de Lisboa até chegarem ao Oceano Índico, visto que a narrativa principal iniciara-se "in media res" , isto é quando a armada já se encontrava em frente às costas de Moçambique.
2) Narrativa de Paulo da Gama ao Catual - Mais tarde surge outra narrativa secundária. Em Calecut, uma personalidade hindu (Catual) visita o navio de Paulo da Gama, que se encontra enfeitado com bandeiras alusivas a figuras históricas portuguesas. O visitante pergunta-lhe o significado daquelas bandeiras, o que dá a Paulo da Gama o pretexto para narrar vários episódios da História de Portugal.
3) Profecias - Os acontecimentos posteriores à viagem de Vasco da Gama não podiam ser introduzidos na narrativa como factos históricos. Para isso, Camões recorreu a profecias colocadas na boca de Júpiter, Adamastor e Thétis, principalmente.
Plano das considerações do poeta - Por vezes, normalmente em final de canto, a narração é interrompida para o poeta apresentar reflexões de carácter pessoal sobre assuntos diversos, a propósito dos factos narrados.
Análise da Proposição
As armas e os barões assinalados
Que, da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino , que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando;
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte .
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre lusitano ,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Os Lusíadas (I, 1-3)
Como vimos, a finalidade da proposição, em qualquer epopeia, é a enunciação do assunto que o poeta se propõe tratar. Assim é, também, n' Os Lusíadas : Camões está decidido a tornar conhecido em todo o mundo o valor do povo português (" o peito ilustre lusitano "). E para isso estrutura a sua proposição em duas partes: nas duas estâncias iniciais, enuncia os heróis que vai cantar; na segunda parte, constituída pela terceira estrofe, estabelece um confronto entre os portugueses e os grandes heróis da Antiguidade, afirmando a superioridade dos primeiros sobre os segundos. Que o herói desta epopeia é colectivo, é um facto incontestável. Quanto a isso, o próprio título é inequívoco: os "lusíadas" são, afinal, os portugueses - todos, não apenas os passados, mas até os presentes e futuros, na medida em que assumam as virtudes que caracterizam, no entendimento do poeta, o povo português e que ele sintetiza, na dedicatória a D. Sebastião, desta forma:
amor da pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quase eterno
O facto de o seu herói ser colectivo e a sua acção se estender por um intervalo de tempo muito vasto permite-lhe desdobrá-lo em subgrupos, conforme verificaremos a seguir. O plural utilizado para designar cada um deles confirma o carácter colectivo do herói: "barões assinalados", "Reis", "aqueles".
A inversão da ordem sintáctica nessa primeira frase, que engloba as duas estâncias iniciais, pode tornar difícil, à primeira leitura, a compreensão do texto. A ordem normal seria esta: Cantando, espalharei por toda a parte as armas e os barões...
Pode esquematizar-se o conteúdo dessas duas estrofes da seguinte maneira:
Através da poesia,
se tiver talento para isso,
tornarei conhecidos em todo o mundo
os homens ilustres
que fundaram o império português do Oriente
os reis, de D. João I a D. Manuel,
que expandiram a fé cristã e o império português
todos os portugueses
dignos de admiração pelos seus feitos.
Pelo esquema, vemos que Camões apresenta três grupos de agentes ("agentes" e não heróis, porque herói é " o peito ilustre lusitano ").
O primeiro é constituído pelos " barões assinalados ", responsáveis pela criação do império português na Ásia. É evidente que o poeta destaca principalmente a actividade marítima, a gesta dos descobrimentos (" Por mares nunca dantes navegados,/ Passaram ainda além da Taprobana ").
O segundo grupo inclui os reis que contribuíram directamente para a expansão do cristianismo e do império português (" foram dilatando / A Fé o Império "). Aqui é sobretudo o esforço militar que se evidencia ("andaram devastando").
No terceiro grupo incluem-se todos os demais, todos os que se tornem dignos de admiração pelos seus feitos, quaisquer que eles sejam.
A enumeração é apresentada em gradação descendente: em primeiro lugar, os envolvidos na expansão marítima; depois, os reis envolvidos na expansão militar; finalmente, todos os outros. Essa valorização relativa é confirmada pelo espaço textual: oito versos, para o primeiro grupo; quatro, para o segundo; dois apenas, para o terceiro.
No entanto, este terceiro aparece como um grupo aberto: nele se incluem não apenas heróis passados, mas todos aqueles que se venham a evidenciar no futuro. Note-se que, para os dois primeiros grupos, o poeta utiliza o pretérito perfeito, enquanto aqui recorre ao presente perifrástico - "vão libertando" .
Ao contrário das epopeias primitivas, aqui o herói é colectivo, o que o próprio título logo indica - Os Lusíadas . Por outro lado, na proposição, como vimos, a indicação dos heróis, além de ser desdobrada em grupos diferenciados, em cada um deles é utilizado o plural.
A proposição não é uma simples indicação dos seus heróis, mas obedece já a uma estratégia de engrandecimento dos portugueses. A expressão "por mares nunca dantes navegados" evidencia o carácter inédito das navegações portuguesas; observe-se o destaque dado à palavra "nunca". A exaltação continua com a referência ao esforço desenvolvido, considerado sobre-humano (" esforçados / Mais do que prometia a força humana ").
Na segunda parte, esse esforço de engrandecimento continua, desta vez através de um paralelo com os grandes heróis da Antiguidade. O confronto é estabelecido com marinheiros famosos (Ulisses e Eneias), eles próprios heróis de duas epopeias clássicas, e conquistadores ilustres (os imperadores Alexandre Magno e Trajano). A escolha de navegadores e guerreiros não é inocente, visto que é exactamente nessas duas áreas que os portugueses se destacam. E quase a concluir, uma nota final, na mesma linha: " ... eu canto o peito ilustre lusitano, / A quem Neptuno e Marte obedeceram ". A submissão do deus do mar e do deus da guerra aos portugueses (" o peito ilustre lusitano ") é uma forma concisa e muito expressiva de exaltar o valor do seu herói.
Análise da Invocação
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre, em verso humilde, celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene .
Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda ,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda.
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no Universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.
Os Lusíadas (I, 4-5)
Invocar significa "chamar em seu socorro ou auxílio, particularmente o poder divino ou sobrenatural" . Na proposição, o poeta apresentou o assunto que vai tratar e, dado o carácter excepcional, a grandiosidade desse assunto, sente necessidade de pedir às entidades protectoras auxílio para a execução de tarefa tão grandiosa.
Naturalmente, Camões , sendo um poeta cristão, não acreditava nas entidades míticas de que lançou mão. Utilizou-as sempre como um simples recurso poético. Isto é, a Invocação, para Camões, é mais um processo de engrandecimento do seu herói. De facto, é a grandiosidade do assunto que se propôs tratar que exige um estilo e uma eloquência superiores. Agora, precisa, não o " verso humilde ", por ele tantas vezes utilizado, mas um " um som alto e sublimado ". O carácter sublime do assunto justifica, portanto, a Invocação e é afirmado ao longo do texto, em mais do que uma expressão: "famosa gente vossa", digna de apreço pelos seus méritos guerreiros (" que a Marte tanto ajuda ") é como o poeta se refere ao seu herói. E termina, insinuando que esses feitos são tão espantosos que, possivelmente, nem com o auxílio das Tágides poderão ser transpostos, com a devida dignidade, para a poesia (" Que se espalhe e se cante no Universo, / Se tão sublime preço cabe em verso .").
Desde já, registe-se que o nosso poeta não se limitou a invocar as ninfas ou musas conhecidas dos antigos gregos e romanos. Embora as "Tágides" não sejam criação sua, adoptou-as como forma de sublinhar o carácter nacional do seu poema. Independentemente do interesse universal que possam ter, todos os feitos cantados, todos os agentes, são portugueses. Isso tinha já ficado claro na Proposição, mas reforça-se essa ideia na Invocação. E, pela fórmula utilizada ("Tágides minhas"), identifica-se pessoalmente com esse nacionalismo, estabelecendo, através do possessivo, uma espécie de relação afectiva com as ninfas do Tejo. A força expressiva do possessivo é reforçada pela inversão e sua colocação em posição forte (coincidindo com a 6ª sílaba).
Tratando-se de um pedido, a Invocação assume a forma de discurso persuasivo, onde predomina a função apelativa da linguagem e as marcas características desse tipo de discurso - o vocativo e os verbos no modo imperativo - determinam a estrutura do texto:
E vós, Tágides minhas, (...)
Dai-me (...)
Dai-me (...)
Dai-me (...)
E este esquema revela imediatamente um dos recursos estilísticos utilizados pelo poeta: a repetição anafórica, que identifica claramente o pedido e evidencia o seu carácter reiterativo.
Por outro lado, este tipo de discurso é sempre acompanhado de argumentos, implícitos ou explícitos, de forma a mais facilmente persuadir o receptor. O primeiro deles antecede o próprio pedido ("pois criado / Tendes em mi um novo engenho ardente") e a sua força é evidente: já que as ninfas lhe concederam essa nova inspiração, o desejo de cantar os feitos dos portugueses, então devem igualmente dar-lhe o estilo, a eloquência necessários. Este primeiro argumento tem como fundamento a obrigação moral: quem cria a necessidade, deve fornecer os meios.
E logo após a primeira formulação do pedido, surge o segundo argumento: "Por que de vossas águas Febo ordene / Que não tenham enveja às de Hipocrene." Agora, o fundamento psicológico é outro: o poeta procura despertar o sentimento de emulação nas Tágides, sugerindo que, ao atender o seu pedido, as águas do Tejo poderão igualar ou até suplantar a fama da fonte de Hipocrene, como inspiradoras de grandes poetas.
O terceiro argumento encerra o pedido: "Que se espalhe e se cante no Universo". Para que os feitos dos portugueses possam ser admirados no mundo inteiro, é necessário que as ninfas atendam o seu pedido. Neste caso, recorre a uma argumentação finalística: pressupõe-se que esses feitos são dignos de serem apreciados, mas para o serem é necessário um estilo extremamente elevado. Aliás, o último verso sugere a ideia de que os feitos dos portugueses são tão grandiosos que dificilmente poderão ser traduzidos em verso de forma adequada. Como se vê, a estratégia de engrandecimento do povo português, iniciada na Proposição, é retomada aqui, quase nos mesmos termos. Comparem-se estes dois últimos versos com aqueles com que encerra a primeira parte da Proposição:
Cantando, espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Que se espalhe e se cante no Universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.
Vimos já que o poeta pede às Tágides o estilo elevado que a epopeia e a grandiosidade do assunto requerem; o " som alto e sublimado ", exigido pelo " novo engenho ardente " que as ninfas colocaram nele. Como poeta experiente que é, sabe que a tarefa a que agora se propôs exige um estilo e uma linguagem de grau superior, por isso estabelece ao longo destas duas estâncias um confronto entre a poesia lírica, há muito por ele cultivada, e a poesia épica, a que agora se abalança.
POESIA LÍRICA
verso humilde
agreste avena
frauta ruda
POESIA ÉPICA
novo engenho ardente
som alto e sublimado
estilo grandíloco e corrente
fúria grande e sonorosa
tuba canora e belicosa
Esse confronto serve-lhe para marcar a superioridade relativa da poesia épica sobre a lírica, o que uma análise medianamente atenta comprova facilmente.
Nota-se, desde logo, a maior quantidade de expressões dedicadas à poesia épica. Igualmente significativa é a abundância da adjectivação e, mais ainda, o recurso à dupla adjectivação. Por outro lado, o valor semântico desses adjectivos merece também alguma atenção: alguns afirmam o carácter elevado dessa poesia e do estilo correspondente (alto, sublimado, grandíloco, grande); outros, a musicalidade e sonoridade que os deve distinguir (corrente, sonorosa, canora); alguns, ainda, sugerem a exaltação típica dos feitos épicos (ardente, belicosa).
O efeito dessas expressões é, de certo modo, ampliado pelo recurso ao paralelismo sintáctico ( substantivo + adjectivo + adjectivo ), que conduz à imediata associação dessas expressões.
Até os instrumentos musicais associados a cada um dos tipos de poesia são significativos: à simplicidade da flauta, que associa à lírica, contrapõe a sonoridade guerreira da tuba, própria da epopeia.
E ao referir-se à " tuba canora e belicosa ", acrescenta: " que o peito acende e a cor ao gesto muda ". Com esse verso pretende transmitir a ideia de que o estilo épico exerce sobre o leitor um intenso efeito emotivo, semelhante à exaltação sentida pelos próprios heróis que vai cantar. Note-se o recurso à metáfora "o peito acende", que sugere uma espécie de fogo interior avassalador, reforçada pela inversão (colocação do complemento directo antes do verbo).
O "Velho do Restelo"
Mas um velho, de aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
"-Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cúa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles exprimentas!
Dura inquietação d' alma e da vida,
Fonte de desemparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios !
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana.
A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente ?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
Mas, ó tu, gèração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado, mais que humano,
Da quieta e da simpres inocência,
Idade de ouro , tanto te privou,
Que na de ferro e de armas te deitou:
Já que nesta gostosa vaïdade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome "esforço e valentia",
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la Quem a dá :
Não tens junto contigo o Ismaelita ,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a Lei maldita ,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riquezas mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia ,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!
Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,
Nas ondas vela pôs em seco lenho !
Dino da eterna pena do Profundo ,
Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!
Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras (grande engano!).
Quanto milhor nos fora, Prometeu,
E quanto pera o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos que a movera!
Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquitector co filho , dando,
Um, nome ao mar , e o outro, fama ao rio .
Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana gèração.
Mísera sorte! Estranha condição!"
Os Lusíadas (IV, 94-104)
Este episódio insere-se na narrativa feita por Vasco da Gama ao rei de Melinde. No momento em que a armada do Gama está prestes a largar de Lisboa para a grande viagem, uma figura destaca-se da multidão e levanta a voz, para condenar a expedição.
O texto é constituído por duas partes: a apresentação da personagem feita pelo narrador (est. 94) e o discurso do Velho do Restelo (est. 95 a 104).
A caracterização destaca a idade ("velho"), o aspecto respeitável (" aspeito venerando "), a atitude de descontentamento (" meneando / Três vezes a cabeça, descontente "), a voz solene e audível (" A voz pesada um pouco alevantando "), e a sabedoria resultante da experiência de vida (" Cum saber só de experiências feito"; "experto peito ").
Não foi certamente por acaso que Camões optou por esta figura e não outra. A figura do Velho do Restelo ressuma uma autoridade, uma respeitabilidade, que lhe permitem falar e ser ouvido sem contestação. As suas palavras têm o peso da idade e da experiência que daí resulta. E a autoridade provém exactamente dessa vivida e longa experiência.
No seu discurso é possível identificar três partes:
Na primeira (est. 95-97), condena o envolvimento do país na aventura dos descobrimentos, a que se refere de forma claramente negativa ("vã cobiça", "vaidade", "fraudulento gosto", "dina de infames vitupérios"). Denuncia de forma inequívoca o carácter ilusório das justificações de carácter heróico que eram apresentadas para esse empreendimento ("Fama", "honra", "Chamam-te ilustre, chamam-te subida", "Chamam-te Fama e Glória soberana"), sendo certo que tudo isso são apenas "nomes com quem se o povo néscio engana". E apresenta um rol extenso de consequências negativas dessa aventura: mortes, perigos tormentas, crueldades, desamparo das famílias, adultérios, empobrecimento material e destruição.
Esta primeira parte é introduzida por uma série de apóstrofes ("Ó glória de mandar", "ó vã cobiça". "Ó fraudulento gosto"), com as quais revela que o que ele condena é de facto a ambição desmedida do ser humano, neste caso materializada na expansão ultramarina. O sentimento de exaltada indignação manifesta-se, sobretudo, pela utilização insistente de exclamações e interrogações retóricas.
A segunda parte abrande as estrofes 98 a 101. É introduzida por uma nova apóstrofe, desta vez dirigida, não a um sentimento, mas aos próprios seres humanos ("ó tu, gèração daquele insano"). Se na primeira parte manifestou a sua oposição às aventuras insensatas que lançam o ser humano na inquietação e no sofrimento, agora propõe uma alternativa menos má, sugerindo que a ambição seja canalizada para um objectivo mais próximo - o Norte de África.
A estância 99 é toda ela preenchida com orações subordinadas concessivas, anaforicamente introduzidas por "já que", antecedendo a sua proposta de forma reiterada e cobrindo todas as variantes dessa ambição: religiosa ("Se tu pola [Lei] de Cristo só pelejas?"), material ("Se terras e riquezas mais desejas?"), militar ("Se queres por vitórias ser louvado?"). E aproveita para apresentar novas consequências maléficas da expansão marítima: fortalecimento do inimigo tradicional ("Deixas criar às portas o inimigo"), despovoamento e enfraquecimento do reino. E mais uma vez recorre às interrogações retóricas como recurso estilístico dominante.
Vem depois a terceira parte (est. 102-104). O poeta recorda figuras míticas do passado, que, de certo modo, representam casos paradigmáticos de ambição, com consequências dramáticas. Começa por condenar o inventor da navegação à vela - "o primeiro que, no mundo, / Nas ondas vela pôs em seco lenho!". Faz depois referência a Prometeu, que, segundo a mitologia grega, teria criado a espécie humana, dando assim origem a todas as desgraças consequentes - "Fogo que o mundo em armas acendeu, / Em mortes, em desonras (grande engano!". Logo a seguir, narra os casos de Faetonte e Ícaro, que, pela sua ambição, foram punidos. E os quatro versos finais da fala do Velho do Restelo sintetizam bem esse desejo desmedido de ultrapassar os limites:
Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana gèração.
Mísera sorte! Estranha condição!
Simbologia do episódio do "Velho do Restelo"
Naturalmente, o "Velho do Restelo" não é uma personagem histórica, mas uma criação de Camões com um profundo significado simbólico.
Por um lado, representa aquela corrente de opinião que via com desagrado o envolvimento de Portugal nos Descobrimentos, considerando que a tentativa de criação de um império colonial no Oriente era demasiado custosa e de resultados duvidosos. Preferiam que a expansão do país se fizesse pela ampliação das conquistas militares no Norte de África.
Essa ideia era, sobretudo, defendida pela nobreza, que assim encontravam possibilidades de mostrarem o seu valor no combate com os mouros e, ao mesmo tempo, encontravam nele justificação para as benesses que a Coroa lhes concedia. A burguesia, por seu lado, inclinava-se mais para a expansão marítima, vendo aí maiores oportunidades de comércio frutuoso.
Por outro lado, se ignorarmos o contexto histórico em que o episódio é situado, podemos ver na figura do Velho o símbolo daqueles que, em nome do bom senso, recusam as aventuras incertas, defendendo que é preferível a tranquilidade duma vida mediana à promessa de riquezas que, geralmente, se traduzem em desgraças. Encontramos aqui um eco de uma ideia cara aos humanistas: a nostalgia da idade de ouro, tempo de paz e tranquilidade, de que o homem se viu afastado e a que pode voltar, reduzindo as suas ambições a uma sábia mediania ("aurea mediocritas", na expressão dos latinos), já que foi a desmedida ambição que lançou o ser humano na idade de ferro, em que agora vive (cf. est. 98). Neste sentido o episódio pode ser entendido como a manifestação do espírito humanista, favorável à paz e tranquilidade, contrário ao espírito guerreiro da Idade Média.
Assim, o episódio do "Velho do Restelo" está de certo modo em contradição com aquilo mesmo que Os Lusíadas , no seu conjunto, procuram exaltar - o esforço guerreiro e expansionista dos portugueses. Essa contradição é real e traduz, de forma talvez inconsciente, as contradições da sociedade portuguesa da época e do próprio poeta. De facto, Camões soube interpretar, melhor que ninguém, o sentimento de orgulho nacional resultante da consciência de que durante algum tempo Portugal foi capaz de se destacar das demais nações europeias. Mas Camões era também um homem de sólida formação cultural, atento aos valores estéticos do classicismo literário e imbuído de ideais humanistas. Se, ao cantar os feitos dos portugueses, ele dá voz a esse orgulho nacional, que sentia também como seu, na fala do "Velho do Restelo" e em outras intervenções disseminadas ao longo do poema, exprime as suas ideias de humanista.