domingo, 1 de fevereiro de 2009

D.Duarte

Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
em dia e letra escrupuloso e fundo.

Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.



D.Pedro, o Regente

Claro em pensar, e claro no sentir,
é claro no querer;
indifferente ao que há em conseguir
que seja só obter;
duplice dono, sem me dividir,
de dever e de ser-

não me podia a Sorte dar guarida
por não ser eu dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
calmo sob mudos céus,
fiel à palavra dada e à ideia tida.
Tudo o mais é com Deus!

D.João, Infante de Portugal

Não fui alguém. Minha alma estava estreita
entre tam grandes almas minhas pares,
inutilmente eleita,
virgemmente parada;

porque é do portuguez, pae de amplos mares,
querer, poder só isto:
o inteiro mar, ou a orla vã desfeita-
o todo, ou o seu nada.

Comentários:
D.Duarte Rei de Portugal: "A regra de ser Rei almou meu ser"- A disciplina de ser rei encheu a minha vida (isto é, como D.Duarte viveu o fim do seu curto reinado no remorso das consequências da falhada expedição a Tânger e da prisão do irmão Fernando não tinha prazer na vida, dedicando-se inteiramente ao dever da governação). Esse remorso é a razão da frase do poema: "firme em minha tristeza".
D.Pedro Regente de Portugal: "indiferente ao que há em conseguir que seja só obter"- não fui movido pelo desejo de posse; não fui ambicioso de bens materiais.
"Dúplice dono, sem me dividir, de dever e de ser"- eu e o meu dever fomos um só.
D.João Infante de Portugal- "Minha alma estava estreita entre tão grandes almas...etc"- os meus irmãos (o Infante D.Henrique, o Rei D.Duarte, o Infante D.Pedro, e o Infante D.Fernando) tiveram tal grandeza que me ofuscaram completamente.
"virginalmente parada"- sem actividade; virgem de acção (esta afirmação é inexacta em relação ao Infante D.João que foi um homem de mérito e de préstimo para o País. Aliás, qualquer comparação com um homem de estatura mundial como o Infante D.Henrique só pode resultar injusta para o comparado!).
"é do português querer só isto: o inteiro mar ou a orla vã desfeita"- para um português não há meios termos: ou tudo ou nada (por isso, como não fui tudo, então eu não fui nada!).
"a orla vã desfeita"- a cercadura do mar; a espuma das ondas que se desfazem futilmente na costa.
NOTA: Para os que queiram saber mais sobre D.Duarte sugiro ESTA página.
Sobre D.Pedro sugiro ESTA página excepcional que mostra como o infante, apesar da sua morte trágica e inútil na batalha de Alfarrobeira (que inspirou a ilustração a esta página) teve uma vida verdadeiramente extraordinária e um papel importante no início das Descobertas.
Sobre o Infante D.João Sugiro ESTA página, notando apenas uma correcção: o ano da sua morte foi 1442 e não 1422 como refere a página aconselhada na versão que existia à data em que preparei esta página.

D.João I (Mensagem) e D. Filipa de Lencastre


O homem e a hora são um só
Quando Deus faz e a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita.

Mestre, sem o saber, do Templo
Que Portugal foi feito ser,
Que houveste a glória e deste o exemplo
De o defender.

Teu nome, eleito em sua fama,
É, na ara da nossa alma interna,
A que repelle, eterna chama,
A sombra eterna.


Comentários:
D.João o Primeiro: "O homem e a hora são um só, quando Deus faz e a História é feita"- Fernando Pessoa exprime de novo a ideia de que o destino é traçado por Deus e rege inexoravelmente a História. Quando uma nação atinge uma encruzilhada (como Portugal em 1383) é a hora e os escolhidos executam os actos determinados. O homem é o papel que desempenhou, este é o requerido pela ocasião (pela hora), a ocasião é determinada pelo Destino, o Destino foi traçado por Deus... (simples, não?). Conhecemos D.João I porque teve a sua hora; sem ela teria sido um obscuro mestre de uma ordem militar obscura. Sem a hora não teria havido o homem...
"na ara da nossa alma interna"- no altar do nosso espírito nacional.
"repele a sombra eterna"- repele o olvido, que seria o destino de Portugal se perdesse a sua identidade como nação.
D.Filipa de Lencastre: "Que enigma havia em teu seio que só génios concebia"- referência à chamada "ínclita geração" dos filhos de D.Filipa e D.João I.
"Volve a nós teu rosto sério"- vira o teu rosto (sisudo...) e olha para nós; lembra-te de Portugal; reza por nós!
"Princesa do Santo Gral"- referência ao Graal procurado pelos cavaleiros medievais das lendas da Távola Redonda. Existem várias versões sobre o que seria, mas a mais comum refere-o como a taça de onde Cristo bebera na Última Ceia e/ou que teria recolhido o seu sangue na Cruz. A referência deve ser interpretada como "Princesa mística" porque fadada por Deus para ser mãe dos principes da ínclita geração e muito particularmente do Infante D.Henrique; ou "Princesa da grandeza (futura) de Portugal" (o Graal era suposto trazer felicidade à Terra).


D. Filipa de Lencastre

Que enigma havia em teu seio
Que só génios concebia?
Que archanjo teus sonhos veio
Vellar, maternos, um dia?

Volve a nós teu rosto sério,
Princeza do Santo Gral,
Humano ventre do Império,
Madrinha de Portugal!

D.Filipa de Lencastre: "Que enigma havia em teu seio que só génios concebia"- referência à chamada "ínclita geração" dos filhos de D.Filipa e D.João I.
"Volve a nós teu rosto sério"- vira o teu rosto (sisudo...) e olha para nós; lembra-te de Portugal; reza por nós!
"Princesa do Santo Gral"- referência ao Graal procurado pelos cavaleiros medievais das lendas da Távola Redonda. Existem várias versões sobre o que seria, mas a mais comum refere-o como a taça de onde Cristo bebera na Última Ceia e/ou que teria recolhido o seu sangue na Cruz. A referência deve ser interpretada como "Princesa mística" porque fadada por Deus para ser mãe dos principes da ínclita geração e muito particularmente do Infante D.Henrique; ou "Princesa da grandeza (futura) de Portugal" (o Graal era suposto trazer felicidade à Terra).

D.Dinis


Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
o plantador de naus a haver,
e ouve um silêncio múrmuro comsigo:
é o rumor dos pinhaes que, como um trigo
de Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
busca o oceano por achar;
e a falla dos pinhaes, marulho obscuro,
é o som presente desse mar futuro,
é a voz da terra anciando pelo mar.


No século XIII a Europa estava deflorestada após séculos de exploração selvagem das florestas primevas. D.Dinis levou a cabo um vasto plano de reflorestação através do plantio de matas reais de pinheiros bravos. A madeira foi depois utilizada na construção das caravelas das Descobertas, o que é o tema deste belo oitavo poema da Mensagem.
"Cantar de Amigo"- poema medieval, cantado pelos trovadores. D.Dinis escreveu vários destes cantares.
"silêncio murmuro"- silêncio murmurante.
"arroio"- riacho; "marulho"- som do mar.

D.Afonso Henriques


Pae, foste cavalleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A bênção como espada,
A espada como benção!


"Pai" (da nacionalidade).
"hora errada"- épocas em que a caminhada de Portugal para o seu destino- que Pessoa confiava ir ser esplendoroso- sofra retrocessos.
"novos infiéis"- pessoas que, na opinião de Fernando Pessoa, criavam obstáculos (ou viriam a criá-los...) ao destino glorioso que ele sonhava para Portugal.

D.Henrique e D.Teresa



Conde D.Henrique


Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O heroe a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
"Que farei eu com esta espada?"

Ergueste-a, e fez-se





D.Henrique: "Todo o começo é involuntário. Deus é o agente"- exprime a ideia de Fernando Pessoa segundo a qual o Destino rege inexoravelmente a História e foi traçado por Deus desde a origem dos tempos. Assim, aqueles que, na Terra, determinam a História não são mais do que agentes da vontade primeva de Deus e assistem aos seus próprios actos confusos ("vários") e inconscientes de estar a cumprir um plano.
"À espada em tuas mãos achada... etc"- A ideia anterior é particularizada para o pai de D.Afonso Henriques, que talhou à espada os alicerces da futura independência de Portugal. Confuso, pegou em armas e inconscientemente cumpriu a sua missão na Terra... O trabalho que lhe estava destinado "fez-se" (isto é, cumpriu-se, não por sua vontade, mas pela de Deus).



D.TAREJA . . . (ouvir aqui o poema)


As naçôes todas são mystérios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de impérios,
Vella por nós!

Teu seio augusto amamentou
Com bruta e natural certeza
O que, imprevisto, Deus fadou.
Por elle reza!

Dê tua prece outro destino
A quem fadou o instincto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu.

Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não há o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!


D.Tareja (versão arcaica do nome de D.Teresa, mãe de Afonso Henriques): "cada nação é todo o mundo a sós"- cada nação constitui um todo que, enquanto tal, é diferente de todas as outras;
"mãe de reis e avó de impérios"- refere-se à linhagem real portuguesa que dela originou e ao futuro Império.
"...com bruta e natural certeza"- "bruta" significa aqui "de acordo com a natureza" e portanto "bruta e natural" constitui um pleonasmo (isto é, uma repetição).
"o que, imprevisto, Deus fadou."- Aquele que Deus determinou (que fundasse Portugal- isto é, Afonso Henriques). "imprevisto" porque improvável- o primeiro rei de Portugal enfrentou guerras contra o poderoso reino de Castela e Leão, e contra os potentados islâmicos. As probabilidades de sucesso pareciam, à partida, muito remotas, de onde a improbabilidade.
"dê tua prece outro destino"- faz com que Afonso Henriques seja visto pela História a uma luz mais favorável (ver a NOTA final).
"Mas todo vivo é eterno infante/ Onde estás e não há o dia"- no reino dos mortos Afonso Henriques é sempre menino para a sua mãe (?).
"No antigo seio vigilante de novo o cria"- dá-nos outro lider do mesmo calibre (?)



Viriato

Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instincto teu.

Nação porque reincarnaste,
Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste-
Assim se Portugal formou.

Teu ser é como aquella fria
Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.

Comentários:
"Se a alma... etc"- a nação portuguesa representa, segundo Pessoa, a memória colectiva do instinto de identidade e independência personificado por Viriato.
"povo porque ressuscitou (...) o de que eras a haste"- somos um povo porque renasceu (após a presença romana, nórdica e islâmica) o espírito nacional de que Viriato foi a origem.
Fernando Pessoa tem uma predilecção pelo uso, literal ou simbólico, do termo "antemanhã", isto é, o periodo antes do alvorecer quando começa a despontar uma luz muito ténue. Aqui o poeta compara Viriato à antemanhã da nacionalidade portuguesa.

Ulisses

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.


Comentários:
"O mito é o nada que é tudo"- esta frase exprime a ideia que Fernando Pessoa tinha dos mitos como potenciais motores sociológicos. Mesmo se falso (isto é, mesmo que não seja nada) um mito tem o potencial de provocar comportamentos sociais e, portanto, facilitar a evolução de uma nação segundo determinados vectores.
"O mesmo sol que abre os céus...etc"- provável referência aos deuses solares (ou mitos afins) que todos os dias eram supostos renascer à alvorada, depois de terem "morrido" no poente anterior.
"Este que aqui aportou"- referência a Ulisses, herói lendário da Odisseia e fundador mítico de Lisboa, onde teria aportado numa das suas navegações ("Lisboa" deriva de Olisippo e Ulixbona- em cuja raiz alguns creem ver o nome de Ulisses ou Odisseus).
"Foi por não ser existindo"- porque não era, foi existindo; foi-se insinuando na nossa realidade.
"a fecundá-la decorre"- a lenda tem uma interacção positiva com a realidade; "A vida, metade de nada, morre"- a vida por si só nada vale porque logo desaparece (mas o mito persiste!).

Ulisses

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Ulisses

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Segundo- O DAS QUINAS (Mensagem)

Os Deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

Baste a quem baste o que Ihe basta
O bastante de Ihe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Christo definiu:
Assim o oppoz à Natureza
E Filho o ungiu.

Comentários:
"Os Deuses vendem quando dão" é uma frase que remonta pelo menos à Grécia Clássica e que corresponde a uma visão mesquinha da divindade: os favores dos deuses pagam-se!
"Ai dos felizes porque são só o que passa"- a felicidade é transitória e os que se contentam em ser apenas felizes não têm consequência na História; "Baste a quem baste...etc"- a mesma noção referida: a quem basta o que tem, por esses limites se fica! "ter é tardar"- a posse do bastante adia os cometimentos.
"Foi com desgraça e...etc"- mas Deus tem outro ideal: concebeu o Cristo para ser infeliz e baixo (e, contra a natureza humana, para não desejar felicidade material ou posses) e, tendo-o assim determinado, sagrou-o como Filho, mostrando o Seu caminho (não material, mas espiritual). O campo das quinas simboliza, em geral, a espiritualidade em Portugal, o sonho. Em particular é um elogio ao sacrifício da felicidade material a altos ideais (que o poeta cria ser o seu próprio caso).

O dos Castelos - Mensagem

A Europa jaz, posta nos cotovellos:
De Oriente a Occidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabellos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovello esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquelle diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se appoia o rosto.

Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Occidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.



O poema é uma descrição do mapa da Europa que Pessoa assemelha a uma mulher reclinada. Compare-se com um trecho d' Os Lusiadas de que a parte referente a Portugal pode ser lida (com comentários meus) seguindo este "link", ou a totalidade (a partir da Estância 6) este outro. O campo dos castelos representa a materialidade (ver "O das Quinas").
"olhos gregos, lembrando"- lembrando a herança cultural da Europa que Pessoa remontava à Grécia Antiga.
"olhar esfíngico e fatal"- olhar enigmático (imperscutável) e (mas) pré-destinado. Note-se que, por fidelidade, foi mantida a ortografia original o que permite, também, conservar a métrica que seria alterada pela grafia "esfíngico" em vez de "sphyngico". Ao que parece, Fernando Pessoa favorecia a ortografia clássica por razões de estilo mas também de elitismo.
"o Ocidente, futuro do passado"- o Mar, onde a Europa se lançou, através de Portugal, na grande Idade das Descobertas com a qual traçou o seu próprio futuro (o actual e, pensa Pessoa, também o futuro a haver).
NOTA: sobre este poema leia-se o comentário de Soares Feitosa que se segue e que pode ser lido na sua integralidade no Jornal da Poesia:
" O leitor já tem todo o direito de ir dizendo: "Também, com Pessoa, é moleza...". Nada disso. Só neste poema, de tudo o que li de Pessoa, há o abismo-absoluto-e-inesperado — hifenizei: abismo-absoluto-e-inesperado. A mesma angústia da falta de tempo do Anjo sobre as águas... Em análise: Trata-se de um poema “geográfico”, mero comparatório do mapa físico da Europa com a efígie de uma pessoa. A Europa jaz, posta nos cotovellos: De Oriente a Occidente jaz, fitando, E toldam-lhe romanticos cabellos Olhos gregos, lembrando. Nada de extraordinário até aqui. Os fiordes escandinavos realmente parecem uma cabeleira vasta. O cotovello esquerdo é recuado; O direito é em angulo disposto. Aquelle diz Italia onde é pousado; Este diz Inglaterra onde, afastado, A mão sustenta, em que se appoia o rosto. Ainda sem maior interesse. Dir-se-ia — e aí precisamente mora o perigo — um poema bobo. Confira no mapa da Europa — é assim mesmo: os acidentes Itália e Inglaterra seriam os cotovelos de uma jovem. Fita, com olhar sphyngico e fatal, Occidente, futuro do passado. Aqui a coisa já começa a “complicar”. Anunciam-se borrascas e temporais: Fita, com olhar sphyngico e fatal,/ O Occidente, futuro do passado. Mas, finalmente, mas: O rosto com que fita é Portugal. Feche o livro, caro leitor, respire fundo e contemple o Infante preparando as navegações daquela nesga minúscula, simplório enclave geográfico no mapa d’Espanha... — quanta glória!!! Ah, meu Deus, quanta glória em 7 (sete, misticamente sete — dizem que Mensagem é uma mensagem misticamente cifrada, parece que é!), sete palavras apenas para tamanha grandiosidade. Os lusos, Os Lusíadas, a própria Ode Marítima, esta do mesmo Pessoa, contidos nesta frase perfeita: O rosto com que fita é Portugal.! Disse Pessoa a frase perfeita. Veja o caro leitor se tenho razão em chamá-la perfeita. O rosto — de quem, o rosto? — do mapa anteriormente descrito, o rosto da Europa, símbolo então de toda a civilização ocidental, o rosto da Humanidade, o rosto de Deus? Quem, afinal, fita o mundo?! Agora percebemos que a estrofe anterior — o olhar sphyngico — era terreno preparatório (Batista, às margens do Jordão, batizando o Cristo) para o grande final, o rosto que fita, onde fitar não é simplesmente sinônimo de olhar. Portugal, no extremo (ou no início!) do mapa e no extremo do verso, FUNDA o mundo e o domina! E na ponta da lança dos seus guerreiros, o missal dos frades enlouquecidos, a esmagar os deuses das novas terras, em nome do Cristo! Quem olha, afinal? A Cruz-de-Malta?! Já não há mais tempo: eis o abismo, caia nele, de ponta!".

Mensagem por Fernando Pessoa (Introdução e Brasão)


ilustrada por Carlos Alberto Santos , anotada por João Manuel Mimoso

Mensagem é um Poema constituído por 44 poemas independentes que foram inseridos numa espécie de esqueleto que deu coerência ao conjunto. Este esqueleto está dividido em três partes (Brasão, Mar Português e O Encoberto que tratei individualmente em textos introdutórios) e a coerência é dada, não pelos poemas propriamente ditos, mas antes pelos seus nomes e pelos títulos e subtítulos das partes em que se inserem. Esta é uma solução deveras inovadora!! Para evitar confusões, quando falar do Poema (com maiúscula) estarei a referir Mensagem; se falar de poema (com minúscula) referir-me-ei a qualquer dos 44 poemas que constituem o Poema.

.Mensagem foi publicada em livro no dia 1 de Dezembro de 1934, em vida de Fernando Pessoa, mas em condições muito particulares que influenciaram a sua composição: destinava-se a participar num concurso com regras rígidas em relação ao prazo e número de páginas. Das três partes do Poema a segunda "Mar Português" já existia como um conjunto e é evidente a sua homogeneidade e a constância da qualidade da generalidade dos poemas; as duas restantes foram fabricadas a partir de poemas soltos. Destes, pelo menos quatro dos dezanove poemas da primeira parte (Brasão) foram escritos no próprio ano da publicação (as datas dos poemas, quando conhecidas, estão indicadas no índice) enquanto que pelo menos sete dos treze da terceira parte (O Encoberto) foram escritos em 1933 ou 1934. Talvez por ter sido mais apressadamente preparada, esta é a "menos boa" (todas são boas!!) do conjunto. Segundo as regras do concurso o livro teria que ter pelo menos cem páginas que foram conseguidas com muita dificuldade à custa dos 44 poemas e das páginas interpostas entre eles (artifício que, aliás, o júri não aceitou). Daqui resultaram enxertos de poemas soltos, anteriores, num conjunto para o qual não teriam sido pensados (pelo menos na posição que vieram a ocupar), duplicações e acrescentos. Quer isto dizer que Fernando Pessoa teve que construir de forma relativamente rápida um Poema que, provavelmente, teria sido diferente se as circunstâncias o não tivessem pressionado.

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Os Lusíadas foi escrito ainda no apogeu da expansão portuguesa (na sua fase final, que hoje sabemos ser já irremediavelmente decadente mas que, na época, não seria necessariamente apercebido como tal) glorificando o esforço da Raça e apontando para uma ainda maior predominância futura. Quando a si próprio se pôs como desafio produzir um Poema de grandeza semelhante (se possível superior), Pessoa vivia num Portugal descolorido e atrasado, sem nada que o recomendasse excepto a criatividade dos seus literatos. Há duas caracteristicas de Fernando Pessoa que importa notar: por um lado amava apaixonadamente a Pátria, de uma maneira que hoje, na Europa onde as nacionalidades se diluem, nos é difícil compreender; por outro era um lógico obsessivo cujas tentativas "científicas" de racionalizar o irracionalizável impressionam e, às vezes, divertem pela candura que demonstram.
Posto perante a inelutável equação do seu tempo, parece ter racionalizado a situação da seguinte maneira: o Universo teve uma causa que o contém, um Criador a que podemos convenientemente chamar "Deus"; se Deus contém em si o Universo então também contém toda a História, que deve ter determinado desde o início (a esta determinação chama-se "Destino"); alguns homens conseguem por vezes entrever o futuro porque ele já está estabelecido; um destes homens foi o Bandarra que profetizou nas suas "Trovas" (pensava o Padre António Vieira e com ele Fernando Pessoa, embora reconhecendo-lhes uma autoria múltipla) a hegemonia portuguesa numa época futura; o único trunfo de que Portugal dispunha era a cultura duma elite e, particularmente, um génio poético desproporcionado à sua população; logo a hegemonia terá uma base cultural e será alcançada através de uma poesia tão superior que inspire os homens à fruição da beleza em paz e concórdia...
Este será o Quinto Império, uma época de união e paz universais sem limite final no tempo. Se Portugal está predestinado, então terá que produzir um grande poeta (a que Pessoa chamava super-Camões referindo-se, presumivelmente, a si próprio) e um grande lider que inspirem e conduzam todo o Mundo à união cultural que marcará o advento do Quinto Império. Esse lider é convenientemente chamado de "O Desejado", "O Encoberto" ou "D.Sebastião", uma designação que Pessoa valorizava por pensar ser mais fácil passar a ideia de um mito já estabelecido do que criar um inteiramente novo. Na prática é uma esperança semelhante à do Grand Roi da mitologia francesa, que seria o Carlos Magno do futuro.
A insistência de Fernando Pessoa na figura de D.Sebastião não significa realmente que esperasse ver o espírito do rei morto reencarnar para conduzir o País à glória. Até porque a história nos ensina (e Pessoa sabê-lo-ia melhor do que eu) que D.Sebastião tinha muito pouco que o recomendasse. Só me ocorre uma coisa: soube morrer bem! Quando o nome do rei morto em Alcácer Quibir ocorre nos poemas, ou se trata de uma passagem histórica e, portanto, literal, ou então deve subentender-se que Pessoa se refere Àquele que há-de guiar Portugal e o Mundo ao Quinto Império.

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Introdução a BRASÃO

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A primeira parte de Mensagem é curiosíssima na ideia que a estruturou: considera uma versão do brasão real português utilizado no século XV e a cada uma das suas partes relevantes associa um poema relativo a Portugal. O Brasão tem dois campos: o escudo central que é o campo dos cinco escudetes azuis com besantes brancos a que chamamos "quinas", e a bordadura periférica que é o campo dos castelos (ver a figura abaixo). Cada um destes campos inspirou um poema adequado: "O dos Castelos" refere-se à terra (ou mais genericamente à materialidade) e consiste numa descrição geográfica da Europa e da posição de Portugal nela; "O das Quinas" ( segundo a lenda as quinas representariam as cinco chagas de Cristo) refere-se à divindade, ao Deus Cristão cuja religião se entrelaça indissociavelmente com a história de Portugal e ao sacrifício da felicidade à obrigação para com a História (genericamente representa, assim, os valores espirituais). Nenhum dos campos é explicitamente dedicado ao povo português: Mensagem é um poema sobre elites (e, creio, também para elites).
Aos poemas relativos aos Campos, segue-se um conjunto de poemas chamado "Os Castelos". A cada um dos sete castelos do brasão associa-se um herói (incluindo o mítico Ulisses) ou um monarca que pela sua acção tenha moldado a História de Portugal de uma maneira materialmente relevante.
Segue-se, em "As Quinas", um conjunto de cinco poemas dedicados a figuras portuguesas que, por uma razão ou por outra, foram vítimas da engrenagem implacável da História, e dela sofreram as consequências (tais como o Infante Santo ou D.Sebastião). Num caso realça-se o triunfo da espiritualidade ("D.Fernando Infante de Portugal"), mas o tema comum é a infelicidade terrena.

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Uma parte individual, chamada "A Coroa", distingue com um belo poema o cavaleiro que combinou em si as qualidades de comando do Rei Artur, a bravura de Sir Lancelote e a piedade pura de Sir Galahad: Nuno Álvares Pereira.
Finalmente "O Timbre" (que no sécXV era uma espécie de dragão conhecido na Mitologia como grifo) justifica três poemas referidos aos três alicerces da política de expansão portuguesa: o Infante D.Henrique que a iniciou, D.João II que apontou a meta das Índias e traçou o futuro de Portugal, e Afonso de Albuquerque que foi o arquitecto e o braço do Império Português do Oriente.

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Cada uma das partes do Poema inclui uma divisa ou epígrafe em latim e que em "Brasão" é: BELLUM SINE BELLO (literalmente "Guerra sem a guerra") que eu, não sendo latinista, traduziria por "Guerra sem combate". Este parece ser, pois, o mote que Fernando Pessoa associaria a Portugal através da lição da sua história e, como tal, merece-me um curto comentário, sobretudo porque, de certa maneira, me recordou o Fado Tropical do Chico Buarque (e do Ruy Guerra) em que ele diz pela boca de um português-brasileiro da época dos holandeses: "Meu coração tem um sereno jeito e as minhas mãos o golpe duro e presto, de tal maneira que depois de feito, desencontrado eu mesmo me contesto. Se trago as mãos distantes do meu peito é que há distância entre a intenção e o gesto...". BELLUM SINE BELLO é um ideal português de paz a que hoje se convencionou chamar "brandos costumes". "Guerra sem combate" é o poder associado à recusa consciente da violência, recusa essa que enobrece o poder. A divisa poderia igualmente ser "A Paz dos fortes" embora, claro, lhe faltasse então a subtileza da epígrafe escolhida por Fernando Pessoa!
Uma outra explicação da epígrafe (que imaginei não porque me pareça provável mas apenas para exemplificar as dúvidas que se deparam a quem tenta interpretar alegorias alheias) poder-se-ia basear na tradução alternativa "Guerra sem armas". Neste caso a divisa representaria um ideal de conquista espiritual e humana (pela difusão da cultura portuguesa e não apenas da religião) que foi no passado um importante vector da expansão portuguesa e seria no futuro, presumivelmente, a via para o Quinto Império. A cultura é, afinal, o único remanescente da colonização que não é efémero...

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Brasão inclui 19 poemas, muitos dos quais verdadeiramente extraordinários. Todos valem a pena ler! Eis alguns dos meus favoritos, com links directos para as respectivas páginas, bem como uma selecção de grandes versos e frases escolhidas que ofereço à vossa atenção:
"O dos Castelos" é um dos melhores poemas do conjunto. É nele que o poeta diz que A Europa fita com olhar esfíngico e fatal o Ocidente- o rosto com que fita é Portugal!
De "O das Quinas" (lembre-se que o nome refere O Campo das Quinas no brasão português) pode não se gostar à primeira, mas aconselho a leitura até se mudar de opinião. É nele que Pessoa escreve: Os Deuses vendem quando dão: compra-se a glória com desgraça. e também o verso maravilhoso: Foi com desgraça e com vileza que Deus ao Cristo definiu: assim o opôs à natureza, e Filho o ungiu.
Em "Ulisses" escreve Pessoa uma frase famosa: O mito é o nada que é tudo.
"D.Tareja" tem uma singular beleza. É neste poema que se encontra o verso: As nações todas são mistérios, cada uma é todo o mundo a sós. Ó mãe de reis e avó de impérios, vela por nós!
"D.Dinis" é uma sucessão de grandes versos (tantos que para os citar necessitaria uma transcrição integral do poema!) sugerindo imagens dos pinhais plantados pelo rei-lavrador e da sua contrapartida futura nas caravelas da Descoberta.
Em "D.João, O Primeiro" diz Pessoa: O homem e a Hora são um só quando Deus faz e a História é feita.
"D.Fernando, Infante de Portugal" (também conhecido como "Gládio") é, para mim, o melhor poema de Brasão e um dos melhores de Mensagem. IMPERDÍVEL!!
Finalmente em "O Infante D.Henrique" Pessoa precisa apenas de cinco versos para demonstrar, quase com desdém, a sua extraordinária craveira.

Pode-se ver na visão de Mensagem uma estranha beleza, bem como uma inegável grandiosidade. Mas não pode ser ocultado que essa visão é também decadente já que, ao dizer que o futuro nos está traçado em grandeza, desincentiva o esforço que poderia levar a essa meta. Não se trata do tradicional efeito de uma "self-fulfilling prophecy" (que pode realmente ter ocorrido no caso das Trovas do Bandarra em relação à Restauração) mas de um convite à inacção porque nos bastaria esperar pelos Tempos e ter fé no Destino! Mas este meu ensaio é sobre beleza e não sobre decadência, por isso passemos a examinar as grandes linhas do Poema.

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As duas primeiras partes de Mensagem percorrem a história de Portugal através de personalidades (quer heróis, quer pessoas-chave que, mesmo sem saber, tiveram consequência no futuro do País, quer ainda e até alguns anti-heróis), mitos e sinopses históricas. A Primeira Parte, chamada Brasão, propõe um extraordinário tour-de-force ao percorrer os campos, peças e figuras de um brasão real do tipo do utilizado por D.Joao II associando, a cada, um traço marcante ou uma personalidade relevante da nossa história. A Segunda, chamada Mar Português, aborda a Idade das Descobertas que foi a época individualizante da história portuguesa. No penúltimo poema do ciclo (A Última Nau) a época de ouro é encerrada com o desaparecimento de D.Sebastião e o poeta como que desperta de um sonho transportando subitamente o leitor à sua actualidade e confiando-lhe os seus pensamentos. Mas esses pensamentos são uma janela para um futuro em que O Desejado regressa para retomar o caminho interrompido para o Império Universal. No último poema (Prece) Pessoa invoca a intercessão de Deus para reacender a Alma Lusitana para que de novo "conquiste a Distância".
A Terceira Parte de Mensagem, O Encoberto, é quase inesperada e totalmente extraordinária: Fernando Pessoa retoma o tema só indiciado em "A Última Nau" e precisa o que entende pela "Distância" que haveremos de conquistar. Trata-se do advento do Quinto Império do Mundo, um império de cultura, paz e harmonia entre os povos que será liderado por um português- O Encoberto, O Desejado, o Rei ou D.Sebastião, como é indistintamente chamado. Nesta Parte vai intercruzar profecias, mitos antigos, símbolos de vária origem, e factos históricos sempre orientado por três vectores básicos: Portugal que dorme e que tem que despertar; o Quinto Império que há-de seguramente ser estabelecido mas que depende desse despertar; e O Desejado que realizará a visão do poeta.
Apesar de publicado numa época em que uma revisão ortográfica tinha já imposto um padrão muito semelhante ao que ainda hoje utilizamos, Fernando Pessoa optou por utilizar em Mensagem uma ortografia arcaica. Por isso, essa ortografia é parte do Poema ( e, de facto, está-lhe de tal maneira associada que choca ler "Mar Português" em vez do clássico "Mar Portuguez") e nos textos que transcrevi optei pela fidelidade à intenção do poeta, utilizando a ortografia em que ele quis que Mensagem fosse lido.
Antes de passar à apresentação detalhada de cada parte de Mensagem, deixo-vos com um pensamento: sugere a lógica e comprova a história recente que uma agregação pacífica de estados baseada no entendimento terá necessariamente que advir dentro de alguns séculos, quando a tecnologia tal como a conhecemos já for irrelevante, a menos que a Humanidade sofra um retrocesso. Os grandes passos em frente são em geral fruto da influência de alguém extraordinário, com uma visão revolucionária e a capacidade de a levar à prática. Dentro de alguns séculos, quem sabe, talvez o encoberto se descubra e seja mesmo português (ou portuguesa). Afinal, como diz Pessoa, "Deus guarda o corpo e a forma do futuro"!

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