terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Os Lusíadas


Os Lusíadas






Os Lusíadas são uma obra do séc. XVI. Este século, caracterizado por uma grande viragem no pensamento humano, é marcado por três grandes movimentos culturais: o Humanismo, o Renascimento e o Classicismo.

No Humanismo, o Homem encontra-se no centro das atenções, dando lugar ao antropocentrismo (antropos significa Homem) que se opôe ao teocentrismo (Deus no centro). Trata-se de um movimento intelectual europeu que procurou vigorosamente descobrir e reabilitar a literatura e o pensamento da Antiguidade Clássica e que tem como interesse central o Homem, no pleno desenvolvimento das suas virtualidades e empenhado na acção, havendo aqui uma nítida oposição à concepção hierárquica e feudalista do Homem medieval.

O Renascimento desenvolveu-se em países da Europa Central e Ocidental, como a Itália (passando sucessivamente de Florença a Siena e depois a Roma, e alastrando posteriormente a toda a Península Italiana), nos séculos XIV a XVI e veio a irradiar e a ter fundas repercussões na cultura de praticamente todos os países do continente europeu. As figuras de proa do movimento gostavam de se apresentar como críticos do "obscurantismo" medieval, numa atitude de contestação à tradicional influência da religião na cultura, no pensamento e na vida quotidiana ocidental. O movimento renascentista começa por ser uma contestação da ideologia dominante durante o milénio medieval: à civilização cristã contrapõe-se uma ideologia antropocêntrica, revelando um desiderato de fazer renascer a Antiguidade greco-latina, que, na interpretação então prevalecente, se caracterizara precisamente por colocar o Homem no centro do Universo e representava um ideal de civilização natural.

O Classicismo consiste num sentimento de admiração pela Antiguidade Clássica e no desejo de imitação da cultura greco-romana e de retoma dos seus valores, reflectindo-se em todas as artes como a pintura, a escultura e a literatura. Com base nos modelos clássicos greco-romanos, este movimento tem como principais valores a harmonia, a simplicidade, o equilíbrio, a precisão e o sentido das proporções. Refira-se, como exemplo na pintura, Leonardo da Vinci e Rafael. Os estudos das poéticas de Horácio e de Aristóteles disciplinam a desordem artística medieval.O enriquecimento filosófico e estético que oferece o estudo de Platão, Homero, Sófocles, Ésquilo, Ovídio, Virgílio e Fídias, dá aos valores ocidentais maior dignidade artística e intelectual. A Itália, detentora dos valores clássicos, latinos e gregos, é considerada o berço deste movimento, com Dante, Francesco Petrarca e Giovanni Boccaccio.


Foi durante o século XVI que viveu Camões. A vida de Luís Vaz de Camões já se tornou uma lenda pois, concretamente, com base documental, sabe-se muito pouco da sua história.
Pensa-se que terá nascido por volta de 1524. A sua formação académica foi realizada em Coimbra. A sua vida foi especialmente marcada por duas actividades: as armas, nos combates em que participou no Norte de África e onde perdeu um dos seus olhos, e as letras. Terá sido na Índia que o poeta iniciou a escrita do primeiro Canto d’Os Lusíadas. Mais tarde, em Macau, terá composto mais seis Cantos. Conta-se que durante uma viagem para Goa, o barco em que Camões seguia naufragou e o poeta salvou o seu poema épico, nadando apenas com um braço e erguendo o outro fora da água. Pensa-se que foi em Moçambique que terminou a epopeia, que veio a ser publicada pela primeira vez em 1572 com o apoio do rei D. Sebastião. Esta obra é, hoje, mundialmente conhecida e Camões tornou-se o escritor português mais célebre. Apesar da sua grandiosidade, Camões viveu sempre com muitas dificuldades e desilusões. A sociedade corrompida e decadente em que se inseria nunca o reconheceu. As pessoas do seu tempo não souberam valorizar nem a obra nem o poeta. Após vários anos amargurados pela doença e pela miséria, o poeta morreu em 1580, no dia 10 de Junho.
Camões escreveu Os Lusíadas sob a forma de narrativa épica ou epopeia, forma muito utilizada na Antiguidade Clássica e que Camões conhecia bem.
Definição de epopeia Uma epopeia, forma literária da Antiguidade Clássica, define-se como uma narrativa, estruturada em verso, que narra, através de uma linguagem cuidada, os feitos grandiosos, de um herói, com interesse para toda a Humanidade.
Estrutura da Obra

Os Lusíadas podem ser considerados uma síntese da cultura renascentista, quer nos aspectos literários e filosóficos de cariz classicista e humanista, quer nos aspectos científicos, revelando um grande interesse documental para a compreensão da mentalidade da época.
Assim, o poeta seguiu fielmente os ensinamentos da Antiguidade greco-latina no que se refere à estrutura de uma epopeia:


ESTRUTURA CLÁSSICA DA OBRA

Divisão em partes:
1. Proposição
2. Invocação
3. Dedicatória
4. Narração

A narração inclui:
Intervenções do maravilhoso
Episódios (narrativas menores)
Narrações retrospectivas, retrocesso no tempo em relação à acção central, isto é, 1498, ano em que se efectuou a primeira viagem de Vasco da Gama para a Índia:
1. De Vasco da Gama ao rei de Melinde, contando a história de Portugal desde a sua fundação lendária - cantos III e IV
2. De Vasco da Gama ao rei de Melinde, contando a viagem de Lisboa a Moçambique, já que no canto I a narração começa in medias res - canto V
3. Profecias, avanços no tempo em relação à acção central:
Profecia de Júpiter a Vénus - canto II;
Profecia dos rios Indo e Ganges a D. Manuel - canto IV;
Profecias do Gigante Adamastor a Vasco da Gama - canto V;
Profecias de Tétis a Vasco da Gama durante o banquete - canto X;
Profecias de Tétis no monte, frente à bola de cristal - canto X,

Matéria Épica
O Poeta soube adaptar sabiamente a matéria épica à realidade portuguesa, respeitando o cânone do género: grandeza do assunto e da personagem principal (herói da epopeia), unidade de acção, concentrada no tempo e no espaço.

Forma
Em termos formais, o Poema está escrito em estilo "sublime", elevado, adequado à temática abordada e seguindo estritamente as regras clássicas para a elaboração de uma epopeia. O Poema está dividido em 10 cantos, totalizando 1102 estâncias, sendo cada uma constituída por oito versos.

Planos narrativos
1. Plano da viagem
2. Plano dos Deuses
3. Plano da História de Portugal
4. Plano do Poeta
5. A descoberta de caminho marítimo para a Índia
6. A viagem de Vasco da Gama

A descoberta de caminho marítimo para a Índia
O alargamento territorial por via marítima não era novidade em Portugal, visto que já no reinado de D. Afonso IV (1325-1357) se tinha realizado uma expedição às Canárias. A navegação de longa distância fazia-se há muito, e recebera particular impulso com D. Dinis (1279-1325); mas os navios seguiam rotas ao longo da costa, condição fundamental para garantir o abastecimento e diminuir os riscos.
Para que a viagem de Bartolomeu Dias fosse possível, os portugueses tiveram de construir a caravela, um navio revolucionário para a época: rápido, leve, ágil, capaz de navegar tanto em alto mar como junto à costa, foi o verdadeiro instrumento das viagens de descoberta.
A caravela estava equipada com velas triangulares (velas latinas), importantes para que fosse possível bolinar, isto é, navegar mesmo quando os ventos eram contrários. Foram também utilizados, pela primeira vez, meios práticos e seguros de fazer cálculos astronómicos e determinar a posição e a rota dos navios, com instrumentos como o astrolábio, o quadrante e a balestilha.
O feito de Bartolomeu Dias teve longos antecedentes de tentativas, estudos e esforços científicos. O próprio Infante D. Henrique se rodeou, na sua casa de Lagos, de um conjunto de cosmógrafos e cartógrafos de origem catalã, maiorquina e genovesa, com o objectovo de preparar devidamente os comandantes das suas expedições. Foi esta a verdadeira "escola náutica". Os resultados deste esforço foram notáveis: pela primeira vez fazia-se navegação astronómica, rigorosa e científica.
Em 1488, o pequeno grupo de navios conduzidos por Bartolomeu Dias, que seguia ao longo da Costa Ocidental de África, ignorando que estava muito perto do seu extremo, desviou-se cerca de 30º para sul, e encontrou-se em pleno Atlântico, sem conseguir avistar terra.
Para retomar o contacto com a costa, as caravelas tiveram de seguir para nordeste, e acabaram por dobrar o temível cabo das Tormentas, identificado n' Os Lusíadas com a figura do gigante Adamastor, que parecia marcar o fim do mundo. A frota estava a leste do Cabo, pela primeira vez na história dos Descobrimentos portugueses. A zona passou a ter o nome de Cabo da Boa Esperança.
A dobragem do cabo da Boa Esperança foi simultaneamente o descobrimento da passagem para o oceano Índico, e o apontar do caminho para o Oriente tão desejado, terra rica e promissora, quase mítica no imaginário europeu.

A viagem de Vasco da Gama

O Oriente era conhecido pelos Europeus, que muito apreciavam os produtos exóticos de lá trazidos pelo comerciantes árabes, através das rotas do Levante.
Mas o contacto directo com as zonas produtoras da Índia, da Pérsia e da China, ricas em especiarias, sedas, tapetes, porcelanas, madeiras preciosas e outros objectos de luxo, tinha as suas rotas tradicionais bem estabelecidas.
O comércio a partir do mar Vermelho e do golfo Pérsico era monopolizado pelos mercadores muçulmanos, a quem as cidades italianas, que dominavam o Mediterrâneo (sobretudo Génova e Veneza), compravam a mercadoria, que depois se encarregavam de vender à Europa a peso de ouro.
Era um negócio de lucros imensos, que D. João II (1482-1495) desejava para si; evitar a concorrência dos Italianos e a resistência dos Árabes só era possível contornando a África pelo Sul, para alcançar a Índia por um caminho alternativo ao tradicional.
O sonho de D. João II foi retomado por D. Manuel I (1495-1521). D. Estêvão da Gama, capitão-mor da vila de Sines, fora o primeiro escolhido para a continuação dos descobrimentos da costa oriental africana, e para o empreendimento da Índia. Mas a sua morte fez com que o seu quarto filho, Vasco da Gama, se visse à frente do projecto com apenas 29 anos de idade.
A frota comandada por Vasco da Gama, simultaneamente almirante e embaixador do reino, encarregado de estabelecer relações diplomáticas e comerciais com o samorim de Calecute, partiu do Restelo a 8 de Julho de 1497. Era constituída por três naus: a S. Gabriel, comandada pelo chefe da expedição, a S. Rafael, comandada pelo seu irmão Paulo da Gama, e a Bérrio, dirigida pelo navegador Nicolau Coelho, além de uma pequena caravela com mantimentos.
A frota seguiu pelo alto mar, quase se aproximando do Brasil, fazendo aquilo que os marinheiros chamavavam "a volta", para evitar os ventos contrários da Costa Ocidental Africana, visto que levavam naus e não as ágeis e manobráveis caravelas.
O cabo da Boa Esperança, onde Camões imagina o encontro de Vasco da Gama com o gigante Adamastor, foi atingido em Novembro e, a partir daí, a navegação fez-se pelo Índico. Muitos dos marinheiros estavam então atacados de escorbuto, doença terrível motivada pela carência de alimentos frescos, que minou a tripulação.
Durante a viagem ao longo da costa oriental de África, os marinheiros portugueses tiveram alguns encontros com nativos locais, que inspiraram o episódio de Fernão Veloso em Os Lusíadas.
Em Março de 1498, no porto da ilha de Moçambique, Vasco da Gama viu barcos árabes a carregar mercadorias, e quis beneficiar de vantagens semelhantes, o que acabou por desencadear manifestações de hostilidade do chefe local.
Mais tarde, em Mombaça, os portugueses tiveram um acolhimento semelhante, sofrendo a traição de um piloto negro, pelo que foram obrigados a usar a artilharia de bordo para escapar.
Finalmente, o sultão de Melinde recebeu muito bem o almirante português, visitou as naus, e colocou à sua disposição um excelente piloto árabe, que ajudou a conduzir a frota à costa do Malabar.
A cidade de Calecute foi alcançada em 20 de Maio de 1498, concluindo-se assim a primeira ligação marítima, por via atlântica, entre a Europa e o Oriente. A primeira recepção do samorim de Calecute foi favorável ao estabelecimento de relações comerciais entre a região e a Coroa portuguesa.
Todavia, a missão de Vasco da Gama, ficaria também marcada pela hostilidade dos mercadores árabes estabelecidos na zona, que temendo a concorrência, fizeram tudo o que estava ao seu alcance para sabotar as negociações do representante de Portugal.
Mas, Vasco da Gama, revelando-se excelente diplomata, acabou por conseguir um carregamento de especiarias que cobriu os gastos da expedição, quando regressou ao reino, recebeu excelentes recompensas régias.
O Malabar parecia então aberto ao comércio com Portugal, e permitiu a criação do Estado Português da Índia, mantido até finais do séc. XVI, sob a direcção de vários Governadores e Vice-reis, representantes da Coroa portuguesa, entre os quais esteve o próprio Vasco da Gama.
O tráfico com o Oriente seria, durante quase todo o século XVI, um monopólio real.
Esquematização dos cantos


Legenda:

© = Amor
& = História
% = Aviso de perigo
h = Viagem
O = Perigo
V = Religião
? = Opinião do Poeta
J = Cómico


Canto I
· 1-3 Proposição: o Poeta expõe o tema do seu poema.
· 4-5 Invocação: O Poeta pede inspiração às ninfas do Tejo, Tágides, para escrever a sua obra.
· 6-18 O Poeta dedica o seu poema ao rei: D. Sebastião.
· 19 h Início da narração: a armada de Vasco da Gama está no Oceano Índico.
· 20-42 % Consílio dos deuses para decidir o futuro dos Portugueses.
· 43-104 h A viagem prossegue com alguns problemas e intervenções dos deuses e finalmente chegam a Mombaça.
· 105-106 ? O Poeta reflecte sobre a fragilidade do homem.

Canto II
· 1-10 A armada está em Mombaça.
· 11-63 Intervenções de Baco, Vénus, Júpiter e Mercúrio.
· 64-108 h Chegada a Melinde: o rei pede a Vasco da Gama que lhe conte onde fica Portugal, como foi a viagem e a História de Portugal.

Canto III
· 1-2 O Poeta invoca a musa Calíope para, através de Vasco da Gama, iniciar a narração da história de Portugal.
· 3-143 Discurso de Vasco da Gama que responde às perguntas do rei de Melinde. Assim, começa por dar a localização de Portugal; em seguida fala da dinastia de Borgonha: de D. Afonso Henriques a D. Fernando. Neste discurso são referidos vários episódios:
· 42-54 V Batalha de Ourique.
· 101-106 © Formosíssima Maria.
· 107-117 & Batalha do Salado.
· 118-135 © Inês de Castro.

Canto IV
· 1-75 Continua o discurso de Vasco da Gama ao rei de Melinde: história da dinastia de Avis (de D. João I a D. Manuel), inclui dois episódios:
· 28-44 & Batalha de Aljubarrota.
· 67-75 % Sonho de D. Manuel
· 76-104 Os preparativos para a viagem e as despedidas em Belém, inclui um episódio:
· 94-104 % Velho do Restelo

Canto V
· 1-89 h Vasco da Gama conta ao Rei de Melinde como foi a viagem de Lisboa até ali, que inclui os seguintes episódios:
· 18 O Fogo de Santelmo
· 19-23 O Tromba Marítima
· 30-36 J Fernão Veloso
· 37-60 O Gigante Adamastor
· 81-83 O Escorbuto
· 90-100 ? O poeta lamenta-se do desprezo pelas artes e letras.

Canto VI
· 1-91 h A armada sai de Melinde, inicia-se aqui a última etapa da viagem rumo à Índia, no decorrer da qual são inseridos os seguintes episódios:
· 16-37 % Consílio dos deuses marinhos.
· 43-69 O Os doze de Inglaterra.
· 70-91 O Tempestade
· 92-94 h Chegada à Índia.

Canto VII
· 1-77 Na Índia: contactos; Vasco da Gama visita o Samorim e o Catual visita as naus.
· 78-87 ? O Poeta invoca as ninfas do Tejo e do Mondego e comenta quem (não) merece ser incluído no seu poema.
Canto VIII
· 1-46 Na Índia: Paulo da Gama recebe o Catual a bordo da sua nau e, através da descrição das bandeiras, refere alguns ilustres portugueses. Em seguida o Catual regressa a terra
· 47-95 Intervenção de Baco e alguns incidentes, mas finalmente Vasco da Gama consegue regressar à nau.
· 96-99 ? Reflexões do Poeta sobre o poder do ouro.
Canto IX
· 1-17 h Inicia-se aqui a viagem de regresso a Portugal.
· 18-91 h A armada avista uma ilha e resolve aportar; trata-se afinal da ilha que Vénus preparou para homenagear os Portugueses: um paraíso povoado de ninfas; inclui episódio:
· 52-91 © Ilha dos Amores
· 92-95 ? Considerações do Poeta: como atingir a glória.
Canto X
· 1-142 Na Ilha de Vénus ou dos Amores: decorre um banquete. Tétis explica a máquina do mundo e faz profecias sobre o futuro dos Portugueses na Ásia, África e América. O próprio naufrágio de Camões é referido. Inclui os seguintes episódios:
· 1-7 © Ilha dos Amores (continuação)
· 10-42 © Ilha dos Amores (continuação)
· 108-118 V Episódio de S. Tomé.
· 143-144 h Embarque e regresso a Portugal.
· 145-156 ? Considerações do Poeta: lamenta a decadência do seu país; apela ao rei, D. Sebastião, para que governe bem.

Figuras de estilo

As figuras de estilo são recursos que tornam a linguagem mais expressiva, permitindo condensar múltiplas ideias em poucas palavras. Deste modo, o escritor /o poeta, sugere ao leitor várias interpretações para os seus textos / poemas e leva-o, por vezes, a associá-los a outros textos ou temas do conhecimento geral.

Alegoria
Metáfora desenvolvida de modo a sugerir, por alusão, uma ideia diferente; geralmente, o autor pretende apresentar uma verdade moral ou espiritual subjacente à acção.
N’Os Lusíadas
A alegoria da ilha dos Amores
(Ilha = recompensa, paraíso)
C. IX, 52-91
C. X, 1-7; 10-142


Aliteração
Repetição de um som ou sílaba no início, no meio ou no fim das palavras; utilizada para criar um efeito auditivo de harmonia ou de onomatopeia.
N’Os Lusíadas
Que um fraco rei faz fraca a forte gente
C. III, 138.8


Alusão
Referência breve a uma pessoa ou circunstância supostamente conhecida do leitor, de modo a alargar o saber para além do próprio texto.
N’Os Lusíadas
D’água do esquecimento
C.I, 32.7
= Rio Letes que, segundo a lenda, se situava no Inferno pagão, cujas águas tiravam a memória aos que dela bebessem.


Anáfora
Repetição de uma ou mais palavras no início de dois ou mais versos.
N’Os Lusíadas
Dai-me agora um som alto e sublimado,
................................................................
Dai-me ua fúria grande e sonorosa,
................................................................
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
C.I, 4.5, 5.1, 5

Anástrofe
Processo que consiste na inversão da ordem habitual das palavras, de forma a pôr em relevo elementos da frase. Neste caso, a inversão é menos violenta do que no Hipérbato.
Que sejam, determino, agasalhados (Os Lusíadas, I, 29, v. 5

Antítese
Expressão de ideias opostas numa só frase; tese significa afirmação, anti- contra.
N’Os Lusíadas
A pequena grandura de um batel
C. VI, 74.6


Antonomásia
Identificação de alguém através de um epíteto ou de qualquer outro termo que não seja o seu nome próprio.
N’Os Lusíadas
Cessem do sábio Grego e do Troiano
C. I, 3.1
(Sábio Grego: Ulisses; Troiano: Eneias)


Apóstrofe
Interpelação de uma pessoa, entidade ou coisa personificada, no meio de uma narração, por exemplo, a invocação às Musas na poesia. Pode ser utilizado para chamar a atenção do leitor, mudando de assunto.
N’Os Lusíadas
"Tu só, tu, puro Amor, com força crua,
III, 119.1


Assíndeto
Sequência de palavras ou frases às quais se omitiu a conjunção e, substituída por vírgula, condensando várias ideias numa só frase, possibilitando, por vezes, diversas interpretações.
N’Os Lusíadas
Fere, mata, derriba, denodado;
C.III, 67.3


Assonância
Repetição dos mesmos sons vocálicos em palavras muito próximas.
N’Os Lusíadas
As armas e os barões assinalados
C.I, 1.1


Comparação
Método de aproximação de duas pessoas, ideias ou circunstâncias de modo a evidenciar as suas semelhanças ou diferenças. Distingue-se da metáfora pela utilização de alguns nexos inter-frásicos: como, tal como, assim como.
N’Os Lusíadas
Assi como a bonina, que cortada
C.III, 134
Qual o reflexo lume do polido
Espelho de aço ou de cristal fermoso
C.VIII, 87.1-2


Elipse
Supressão de palavras que facilmente se adivinham, tendo em consideração o contexto.
N’Os Lusíadas
Agora, pelos povos seus vizinhos,
Agora, pelos húmidos caminhos.
C. II, 108.7-8
(Agora, pergunta pelos povos seus vizinhos)


Eufemismo
Suavização de uma ideia desagradável ou cruel através de palavras ou expressões seleccionadas. Pode confundir--se com a perífrase.
N’Os Lusíadas
Tirar Inês ao Mundo determina
C. III, 123.1
(=matar Inês)


Hipérbato (cf. Anástrofe)
Inversão violenta dos elementos da frase, alterando a ordem sintáctica normal. Utiliza-se para enfatizar o discurso ou para imitar a estrutura sintáctica do latim. Os versos de Os Lusíadas são formados por uma série de hipérbatos.
N’Os Lusíadas
A Deus pedi que removesse os duros
Casos, que Adamastor contou futuros.
C. V.60.7-8


Hipérbole
Expressões que exageram intencionalmente o pensamento. Utiliza-se para enfatizar o discurso. É um dos recursos estilísticos mais utilizados n’Os Lusíadas.
N’Os Lusíadas
Agora sobre as nuvens os subiam
As ondas de Neptuno furibundo;
Agora a ver parece que desciam
As íntimas entranhas do Profundo.
C.VI, 76.1-4


Imagem
Impressão mental ou representação de um animal, pessoa ou coisa que permite criar imagens nítidas, através de uma linguagem metafórica.
N’Os Lusíadas
O mar se via em fogos acendido
C.II, 91.6


Ironia
Recurso, que segundo Aristóteles é um disfarce que conduz à essência da verdade, pois as palavras adquirem um significado diferente daquele em que são empregues.
N’Os Lusíadas
Vede, Ninfas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos,
Que assim sabem prezar, com tais favores,
A quem os faz, cantando, gloriosos!
C.VII, 82.1-4
(Camões ironiza a incompreensão dos seus compatriotas)


Metáfora
Comparação abreviada, implícita, sem a partícula comparativa como, que permite identificar uma coisa com outra através de um processo imaginativo.
Tomai as rédeas Vós do Reino vosso
(Tomai as rédeas = governai)
C. I, 15.3


Metonímia
Substituição do nome dum objecto ou duma ideia por outro relacionado com ele. Assim, dizer a coroa ou o ceptro em vez de o soberano; a cruz e a espada em vez de a religião e o exército; os copos em vez de as bebidas alcoólicas são exemplos de metonímia.
N’Os Lusíadas
De Portugal, armar madeiro leve
(madeiro = nau, feita de madeira)
C. VI, 52.3


Onomatopeia
Palavras cujo som evoca um determinado objecto ou ideia, muitas vezes, são sons da natureza. Trata-se, portanto, da utilização de palavras imitativas para alcançar um efeito estilístico. Pode coincidir com a aliteração.
N’Os Lusíadas
Bramindo, o negro mar de longe brada
C. V, 38.3


Perífrase
Consiste em dizer em muitas palavras, o que poderia ser dito apenas numa.
N’Os Lusíadas
Mas assim como os raios espalhados
Do Sol foram no mundo, e num momento
Apareceu no rúbido Horizonte
Na moça de Titão a roxa fronte,
C. II, 13.5-8
(= Aurora, deusa; aurora, nascer do dia)


Personificação / Prosopopeia
Atribuição de características humanas a abstracções, animais, ideias ou objectos inanimados.
N’Os Lusíadas
A figura do Gigante Adamastor, personificação de um cabo, que aparece a falar.
... e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso
C. IV, 28.3-4


Pleonasmo
Repetição desnecessária da mesma ideia utilizando muitas palavras.
N’Os Lusíadas
Vi, claramente visto, o lume vivo
C. V, 18.1


Sinédoque
Consiste em se tomar a parte pelo todo ou o todo pela parte.
É uma espécie de metáfora, por exemplo, dizer velas por navios ou cabeças por animais; na expressão o pão nosso de cada dia, pão significa não apenas alimento, mas todo o sustento duma maneira geral. Esta figura de estilo tem ainda algumas semelhanças com a perífrase e a metonímia.
N’Os Lusíadas
Vós, ó novo temor da Maura lança,
(canto I,6.5),
(= poderio militar dos mouros)


Sinestesia
Associação de sensações recebidas por vários sentidos, por exemplo, uma nota azul (ouvido, vista) ou um verde frio (vista, tacto). são expressões sinestésicas.
N’Os Lusíadas
As areias ali de prata fina;
C. VI, 9.2
(vista: prateado; tacto: textura fina)

Para mais informações consulta:
http://lusiadas.gertrudes.com/poesia1.html
Noção de epopeia
Uma epopeia é a narrativa dos feitos grandiosos de um indivíduo ou de um povo. Nesta definição encontramos os elementos essenciais de qualquer texto épico.
Enquadra-se no género narrativo - é sempre um relato de acontecimentos: o sujeito da enunciação assume-se como narrador e dispõe-se a fazer o relato de um acontecimento ou conjunto de acontecimentos a um determinado público; a dimensão e a natureza do público depende do assunto objecto do relato, presumindo-se que será sempre constituído pelas pessoas nele interessadas; se o assunto disser respeito a uma determinada comunidade o público será mais restrito; se o assunto tiver um interesse mais vasto, o público será mais alargado, podendo abranger potencialmente toda a humanidade.

O assunto deverá ter um carácter excepcional. Nem todas as acções são susceptíveis de serem tratadas de forma épica; é necessário que, no entendimento do narrador (e do seu público), essas acções se distanciem dos acontecimentos vulgares, assumam um carácter de excepcionalidade. Nas epopeias primitivas os feitos narrados são de carácter lendário, embora essas ficções tenham sempre um fundo histórico. Em algumas epopeias de imitação, no entanto, o assunto é histórico.

Os eventos exigem um agente e, tratando-se de eventos excepcionais, o agente deverá ser igualmente um ser de excepção, um ser que, pela sua origem, pelas suas características, se distancie, se imponha aos seus semelhantes (herói), pouco importando que se trate de um indivíduo ou de uma colectividade (herói individual ou herói colectivo). Na Ilíada e na Odisseia, escritas no século VI a.C., o herói é individual: num caso, Aquiles; no outro, Ulisses. N' Os Lusíadas o herói é, como o título indica, colectivo - o povo português. Já na Eneida de Virgílio há uma certa ambiguidade: o herói parece ser individual, Eneias, mas na realidade o objectivo do poema é exaltar o povo romano.

Característica de todas as epopeias é a utilização de um estilo elevado, correspondente à grandiosidade do assunto, e que se traduz na selecção vocabular, na construção frásica extremamente elaborada e na abundante utilização de recursos estilísticos.


Estrutura externa
Os Lusíadas estão divididos em dez cantos, cada um deles com um número variável de estrofes, que, no total, somam 1102. Essas estrofes são todas oitavas de decassílabos heróicos, obedecendo ao esquema rimático "abababcc" (rimas cruzadas, nos seis primeiros versos, e emparelhada, nos dois últimos).

Estrutura interna
Camões respeitou com bastante fidelidade a estrutura clássica da epopeia. N' Os Lusíadas são claramente identificáveis quatro partes:

Proposição - O poeta começa por declarar aquilo que se propõe fazer, indicando de forma sucinta o assunto da sua narrativa; propõe-se, afinal, tornar conhecidos os navegadores que tornaram possível o império português no oriente, os reis que promoveram a expansão da fé e do império, bem como todos aqueles que se tornam dignos de admiração pelos seus feitos.

Invocação - O poeta dirige-se às Tágides (ninfas do Tejo), para lhes pedir o estilo e eloquência necessários à execução da sua obra; um assunto tão grandioso exigia um estilo elevado, uma eloquência superior; daí a necessidade de solicitar o auxílio das entidades protectoras dos artistas.

Dedicatória - É a parte em que o poeta oferece a sua obra ao rei D. Sebastião. A dedicatória não fazia parte da estrutura das epopeias primitivas; trata-se de uma inovação posterior, que reflecte o estatuto do artista, intelectualmente superior, mas social e economicamente dependente de um mecenas, um protector.

Narração - Constitui o núcleo fundamental da epopeia. Aqui, o poeta procura concretizar aquilo que se propôs fazer na "proposição".






Estrutura da narração
A narração d' Os Lusíadas tem uma estrutura muito complexa, o que decorre dos objectivos que o poeta se propôs. Desenvolve-se em quatro planos diferentes, mas estreitamente articulados entre si.

Plano da viagem - A acção central do poema é a viagem de Vasco da Gama. Escrevendo mais de meio século depois, Luís de Camões tinha já o distanciamento suficiente para perceber a importância histórica desse acontecimento, devido às alterações que provocou, tanto em Portugal, como na Europa. Por essa razão considerou a primeira viagem marítima à Índia como o episódio mais significativo da história de Portugal.

No entanto, tratava-se de um acontecimento relativamente recente e historicamente documentado. Para manter a verosimilhança, o poeta estava obrigado a fazer um relato relativamente objectivo e potencialmente monótono, o que constituía um perigo fatal para o seu projecto épico. Daí que Camões tenha sentido a necessidade de introduzir um segundo nível narrativo.

Plano mitológico (conflito entre os deuses pagãos) - Camões imaginou um conflito entre os deuses pagãos: Baco opõe-se à chegada dos portugueses à Índia, pois receia que o seu prestígio seja colocado em segundo plano pela glória dos portugueses, enquanto Vénus, apoiada por Marte, os protege.

Pode parecer estranho que Camões incluísse num poema destinado a exaltar um povo cristão os deuses pagãos, mas algumas razões permitem compreender essa atitude:

1) Como vimos, a simples narrativa da viagem seria algo monótona, tanto mais que Vasco da Gama e os seus marinheiros têm um carácter rígido, quase inumano: são determinados e inflexíveis, imunes às hesitações, à dúvida, às angústias. Não há ao nível da viagem qualquer conflito. Para introduzir o necessário dramatismo na narrativa, Camões teve que imaginar um conflito externo, o conflito entre Vénus e Baco.

2) Os poemas épicos renascentistas são epopeias de imitação e como tal sujeitas a regras estritas. Uma dessas regras impunha ao poeta a introdução de episódios maravilhosos, envolvendo quase sempre deuses da mitologia greco-latina, à semelhança do que acontecia nos poemas homéricos ou na Eneida .

3) Finalmente, o recurso aos deuses pagãos é mais uma forma de o poeta engrandecer os feitos dos portugueses. Nas suas intervenções, os deuses frequentemente referem-se-lhe de forma elogiosa. Além disso, o simples facto de a disputa entre os deuses ter como objecto os portugueses é já uma forma indirecta de os exaltar.

Plano da História de Portugal - O objectivo de Camões era enaltecer o povo português e não apenas um ou alguns dos seus representantes mais ilustres. Não podia por isso limitar a matéria épica à viagem de Vasco da Gama. Tinha que introduzir na narrativa todas aquelas figuras e acontecimentos que, no seu conjunto, afirmavam o valor dos portugueses ao longo dos tempos. E fê-lo, recorrendo a duas narrativas secundárias, inseridas na narrativa da viagem, cujo narrador é o poeta.

1) Narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde - Ao chegar a este porto indiano, o rei recebe-o e procura saber quem é ele e donde vem. Para lhe responder, Vasco da Gama localiza o reino de Portugal na Europa e conta-lhe a História de Portugal até ao reinado de D. Manuel. Ao chegar a este ponto, conta inclusivamente a sua própria viagem desde a saída de Lisboa até chegarem ao Oceano Índico, visto que a narrativa principal iniciara-se "in media res" , isto é quando a armada já se encontrava em frente às costas de Moçambique.

2) Narrativa de Paulo da Gama ao Catual - Mais tarde surge outra narrativa secundária. Em Calecut, uma personalidade hindu (Catual) visita o navio de Paulo da Gama, que se encontra enfeitado com bandeiras alusivas a figuras históricas portuguesas. O visitante pergunta-lhe o significado daquelas bandeiras, o que dá a Paulo da Gama o pretexto para narrar vários episódios da História de Portugal.

3) Profecias - Os acontecimentos posteriores à viagem de Vasco da Gama não podiam ser introduzidos na narrativa como factos históricos. Para isso, Camões recorreu a profecias colocadas na boca de Júpiter, Adamastor e Thétis, principalmente.

Plano das considerações do poeta - Por vezes, normalmente em final de canto, a narração é interrompida para o poeta apresentar reflexões de carácter pessoal sobre assuntos diversos, a propósito dos factos narrados.

Análise da Proposição

As armas e os barões assinalados
Que, da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino , que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando;
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte .

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre lusitano ,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

Os Lusíadas (I, 1-3)

Como vimos, a finalidade da proposição, em qualquer epopeia, é a enunciação do assunto que o poeta se propõe tratar. Assim é, também, n' Os Lusíadas : Camões está decidido a tornar conhecido em todo o mundo o valor do povo português (" o peito ilustre lusitano "). E para isso estrutura a sua proposição em duas partes: nas duas estâncias iniciais, enuncia os heróis que vai cantar; na segunda parte, constituída pela terceira estrofe, estabelece um confronto entre os portugueses e os grandes heróis da Antiguidade, afirmando a superioridade dos primeiros sobre os segundos. Que o herói desta epopeia é colectivo, é um facto incontestável. Quanto a isso, o próprio título é inequívoco: os "lusíadas" são, afinal, os portugueses - todos, não apenas os passados, mas até os presentes e futuros, na medida em que assumam as virtudes que caracterizam, no entendimento do poeta, o povo português e que ele sintetiza, na dedicatória a D. Sebastião, desta forma:

amor da pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quase eterno

O facto de o seu herói ser colectivo e a sua acção se estender por um intervalo de tempo muito vasto permite-lhe desdobrá-lo em subgrupos, conforme verificaremos a seguir. O plural utilizado para designar cada um deles confirma o carácter colectivo do herói: "barões assinalados", "Reis", "aqueles".

A inversão da ordem sintáctica nessa primeira frase, que engloba as duas estâncias iniciais, pode tornar difícil, à primeira leitura, a compreensão do texto. A ordem normal seria esta: Cantando, espalharei por toda a parte as armas e os barões...

Pode esquematizar-se o conteúdo dessas duas estrofes da seguinte maneira:

Através da poesia,
se tiver talento para isso,
tornarei conhecidos em todo o mundo

os homens ilustres
que fundaram o império português do Oriente

os reis, de D. João I a D. Manuel,
que expandiram a fé cristã e o império português

todos os portugueses
dignos de admiração pelos seus feitos.

Pelo esquema, vemos que Camões apresenta três grupos de agentes ("agentes" e não heróis, porque herói é " o peito ilustre lusitano ").

O primeiro é constituído pelos " barões assinalados ", responsáveis pela criação do império português na Ásia. É evidente que o poeta destaca principalmente a actividade marítima, a gesta dos descobrimentos (" Por mares nunca dantes navegados,/ Passaram ainda além da Taprobana ").

O segundo grupo inclui os reis que contribuíram directamente para a expansão do cristianismo e do império português (" foram dilatando / A Fé o Império "). Aqui é sobretudo o esforço militar que se evidencia ("andaram devastando").

No terceiro grupo incluem-se todos os demais, todos os que se tornem dignos de admiração pelos seus feitos, quaisquer que eles sejam.

A enumeração é apresentada em gradação descendente: em primeiro lugar, os envolvidos na expansão marítima; depois, os reis envolvidos na expansão militar; finalmente, todos os outros. Essa valorização relativa é confirmada pelo espaço textual: oito versos, para o primeiro grupo; quatro, para o segundo; dois apenas, para o terceiro.

No entanto, este terceiro aparece como um grupo aberto: nele se incluem não apenas heróis passados, mas todos aqueles que se venham a evidenciar no futuro. Note-se que, para os dois primeiros grupos, o poeta utiliza o pretérito perfeito, enquanto aqui recorre ao presente perifrástico - "vão libertando" .

Ao contrário das epopeias primitivas, aqui o herói é colectivo, o que o próprio título logo indica - Os Lusíadas . Por outro lado, na proposição, como vimos, a indicação dos heróis, além de ser desdobrada em grupos diferenciados, em cada um deles é utilizado o plural.

A proposição não é uma simples indicação dos seus heróis, mas obedece já a uma estratégia de engrandecimento dos portugueses. A expressão "por mares nunca dantes navegados" evidencia o carácter inédito das navegações portuguesas; observe-se o destaque dado à palavra "nunca". A exaltação continua com a referência ao esforço desenvolvido, considerado sobre-humano (" esforçados / Mais do que prometia a força humana ").

Na segunda parte, esse esforço de engrandecimento continua, desta vez através de um paralelo com os grandes heróis da Antiguidade. O confronto é estabelecido com marinheiros famosos (Ulisses e Eneias), eles próprios heróis de duas epopeias clássicas, e conquistadores ilustres (os imperadores Alexandre Magno e Trajano). A escolha de navegadores e guerreiros não é inocente, visto que é exactamente nessas duas áreas que os portugueses se destacam. E quase a concluir, uma nota final, na mesma linha: " ... eu canto o peito ilustre lusitano, / A quem Neptuno e Marte obedeceram ". A submissão do deus do mar e do deus da guerra aos portugueses (" o peito ilustre lusitano ") é uma forma concisa e muito expressiva de exaltar o valor do seu herói.

Análise da Invocação
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre, em verso humilde, celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene .

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda ,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda.
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no Universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.
Os Lusíadas (I, 4-5)
Invocar significa "chamar em seu socorro ou auxílio, particularmente o poder divino ou sobrenatural" . Na proposição, o poeta apresentou o assunto que vai tratar e, dado o carácter excepcional, a grandiosidade desse assunto, sente necessidade de pedir às entidades protectoras auxílio para a execução de tarefa tão grandiosa.

Naturalmente, Camões , sendo um poeta cristão, não acreditava nas entidades míticas de que lançou mão. Utilizou-as sempre como um simples recurso poético. Isto é, a Invocação, para Camões, é mais um processo de engrandecimento do seu herói. De facto, é a grandiosidade do assunto que se propôs tratar que exige um estilo e uma eloquência superiores. Agora, precisa, não o " verso humilde ", por ele tantas vezes utilizado, mas um " um som alto e sublimado ". O carácter sublime do assunto justifica, portanto, a Invocação e é afirmado ao longo do texto, em mais do que uma expressão: "famosa gente vossa", digna de apreço pelos seus méritos guerreiros (" que a Marte tanto ajuda ") é como o poeta se refere ao seu herói. E termina, insinuando que esses feitos são tão espantosos que, possivelmente, nem com o auxílio das Tágides poderão ser transpostos, com a devida dignidade, para a poesia (" Que se espalhe e se cante no Universo, / Se tão sublime preço cabe em verso .").
Desde já, registe-se que o nosso poeta não se limitou a invocar as ninfas ou musas conhecidas dos antigos gregos e romanos. Embora as "Tágides" não sejam criação sua, adoptou-as como forma de sublinhar o carácter nacional do seu poema. Independentemente do interesse universal que possam ter, todos os feitos cantados, todos os agentes, são portugueses. Isso tinha já ficado claro na Proposição, mas reforça-se essa ideia na Invocação. E, pela fórmula utilizada ("Tágides minhas"), identifica-se pessoalmente com esse nacionalismo, estabelecendo, através do possessivo, uma espécie de relação afectiva com as ninfas do Tejo. A força expressiva do possessivo é reforçada pela inversão e sua colocação em posição forte (coincidindo com a 6ª sílaba).

Tratando-se de um pedido, a Invocação assume a forma de discurso persuasivo, onde predomina a função apelativa da linguagem e as marcas características desse tipo de discurso - o vocativo e os verbos no modo imperativo - determinam a estrutura do texto:

E vós, Tágides minhas, (...)
Dai-me (...)
Dai-me (...)
Dai-me (...)

E este esquema revela imediatamente um dos recursos estilísticos utilizados pelo poeta: a repetição anafórica, que identifica claramente o pedido e evidencia o seu carácter reiterativo.

Por outro lado, este tipo de discurso é sempre acompanhado de argumentos, implícitos ou explícitos, de forma a mais facilmente persuadir o receptor. O primeiro deles antecede o próprio pedido ("pois criado / Tendes em mi um novo engenho ardente") e a sua força é evidente: já que as ninfas lhe concederam essa nova inspiração, o desejo de cantar os feitos dos portugueses, então devem igualmente dar-lhe o estilo, a eloquência necessários. Este primeiro argumento tem como fundamento a obrigação moral: quem cria a necessidade, deve fornecer os meios.

E logo após a primeira formulação do pedido, surge o segundo argumento: "Por que de vossas águas Febo ordene / Que não tenham enveja às de Hipocrene." Agora, o fundamento psicológico é outro: o poeta procura despertar o sentimento de emulação nas Tágides, sugerindo que, ao atender o seu pedido, as águas do Tejo poderão igualar ou até suplantar a fama da fonte de Hipocrene, como inspiradoras de grandes poetas.

O terceiro argumento encerra o pedido: "Que se espalhe e se cante no Universo". Para que os feitos dos portugueses possam ser admirados no mundo inteiro, é necessário que as ninfas atendam o seu pedido. Neste caso, recorre a uma argumentação finalística: pressupõe-se que esses feitos são dignos de serem apreciados, mas para o serem é necessário um estilo extremamente elevado. Aliás, o último verso sugere a ideia de que os feitos dos portugueses são tão grandiosos que dificilmente poderão ser traduzidos em verso de forma adequada. Como se vê, a estratégia de engrandecimento do povo português, iniciada na Proposição, é retomada aqui, quase nos mesmos termos. Comparem-se estes dois últimos versos com aqueles com que encerra a primeira parte da Proposição:

Cantando, espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Que se espalhe e se cante no Universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.

Vimos já que o poeta pede às Tágides o estilo elevado que a epopeia e a grandiosidade do assunto requerem; o " som alto e sublimado ", exigido pelo " novo engenho ardente " que as ninfas colocaram nele. Como poeta experiente que é, sabe que a tarefa a que agora se propôs exige um estilo e uma linguagem de grau superior, por isso estabelece ao longo destas duas estâncias um confronto entre a poesia lírica, há muito por ele cultivada, e a poesia épica, a que agora se abalança.

POESIA LÍRICA
verso humilde
agreste avena
frauta ruda

POESIA ÉPICA
novo engenho ardente
som alto e sublimado
estilo grandíloco e corrente
fúria grande e sonorosa
tuba canora e belicosa

Esse confronto serve-lhe para marcar a superioridade relativa da poesia épica sobre a lírica, o que uma análise medianamente atenta comprova facilmente.

Nota-se, desde logo, a maior quantidade de expressões dedicadas à poesia épica. Igualmente significativa é a abundância da adjectivação e, mais ainda, o recurso à dupla adjectivação. Por outro lado, o valor semântico desses adjectivos merece também alguma atenção: alguns afirmam o carácter elevado dessa poesia e do estilo correspondente (alto, sublimado, grandíloco, grande); outros, a musicalidade e sonoridade que os deve distinguir (corrente, sonorosa, canora); alguns, ainda, sugerem a exaltação típica dos feitos épicos (ardente, belicosa).

O efeito dessas expressões é, de certo modo, ampliado pelo recurso ao paralelismo sintáctico ( substantivo + adjectivo + adjectivo ), que conduz à imediata associação dessas expressões.

Até os instrumentos musicais associados a cada um dos tipos de poesia são significativos: à simplicidade da flauta, que associa à lírica, contrapõe a sonoridade guerreira da tuba, própria da epopeia.

E ao referir-se à " tuba canora e belicosa ", acrescenta: " que o peito acende e a cor ao gesto muda ". Com esse verso pretende transmitir a ideia de que o estilo épico exerce sobre o leitor um intenso efeito emotivo, semelhante à exaltação sentida pelos próprios heróis que vai cantar. Note-se o recurso à metáfora "o peito acende", que sugere uma espécie de fogo interior avassalador, reforçada pela inversão (colocação do complemento directo antes do verbo).

O "Velho do Restelo"
Mas um velho, de aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

"-Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cúa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles exprimentas!

Dura inquietação d' alma e da vida,
Fonte de desemparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios !
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana.

A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente ?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

Mas, ó tu, gèração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado, mais que humano,
Da quieta e da simpres inocência,
Idade de ouro , tanto te privou,
Que na de ferro e de armas te deitou:

Já que nesta gostosa vaïdade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome "esforço e valentia",
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la Quem a dá :

Não tens junto contigo o Ismaelita ,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a Lei maldita ,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riquezas mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?

Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia ,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!

Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,
Nas ondas vela pôs em seco lenho !
Dino da eterna pena do Profundo ,
Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!

Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras (grande engano!).
Quanto milhor nos fora, Prometeu,
E quanto pera o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos que a movera!

Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquitector co filho , dando,
Um, nome ao mar , e o outro, fama ao rio .
Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana gèração.
Mísera sorte! Estranha condição!"

Os Lusíadas (IV, 94-104)

Este episódio insere-se na narrativa feita por Vasco da Gama ao rei de Melinde. No momento em que a armada do Gama está prestes a largar de Lisboa para a grande viagem, uma figura destaca-se da multidão e levanta a voz, para condenar a expedição.

O texto é constituído por duas partes: a apresentação da personagem feita pelo narrador (est. 94) e o discurso do Velho do Restelo (est. 95 a 104).

A caracterização destaca a idade ("velho"), o aspecto respeitável (" aspeito venerando "), a atitude de descontentamento (" meneando / Três vezes a cabeça, descontente "), a voz solene e audível (" A voz pesada um pouco alevantando "), e a sabedoria resultante da experiência de vida (" Cum saber só de experiências feito"; "experto peito ").
Não foi certamente por acaso que Camões optou por esta figura e não outra. A figura do Velho do Restelo ressuma uma autoridade, uma respeitabilidade, que lhe permitem falar e ser ouvido sem contestação. As suas palavras têm o peso da idade e da experiência que daí resulta. E a autoridade provém exactamente dessa vivida e longa experiência.
No seu discurso é possível identificar três partes:
Na primeira (est. 95-97), condena o envolvimento do país na aventura dos descobrimentos, a que se refere de forma claramente negativa ("vã cobiça", "vaidade", "fraudulento gosto", "dina de infames vitupérios"). Denuncia de forma inequívoca o carácter ilusório das justificações de carácter heróico que eram apresentadas para esse empreendimento ("Fama", "honra", "Chamam-te ilustre, chamam-te subida", "Chamam-te Fama e Glória soberana"), sendo certo que tudo isso são apenas "nomes com quem se o povo néscio engana". E apresenta um rol extenso de consequências negativas dessa aventura: mortes, perigos tormentas, crueldades, desamparo das famílias, adultérios, empobrecimento material e destruição.
Esta primeira parte é introduzida por uma série de apóstrofes ("Ó glória de mandar", "ó vã cobiça". "Ó fraudulento gosto"), com as quais revela que o que ele condena é de facto a ambição desmedida do ser humano, neste caso materializada na expansão ultramarina. O sentimento de exaltada indignação manifesta-se, sobretudo, pela utilização insistente de exclamações e interrogações retóricas.
A segunda parte abrande as estrofes 98 a 101. É introduzida por uma nova apóstrofe, desta vez dirigida, não a um sentimento, mas aos próprios seres humanos ("ó tu, gèração daquele insano"). Se na primeira parte manifestou a sua oposição às aventuras insensatas que lançam o ser humano na inquietação e no sofrimento, agora propõe uma alternativa menos má, sugerindo que a ambição seja canalizada para um objectivo mais próximo - o Norte de África.
A estância 99 é toda ela preenchida com orações subordinadas concessivas, anaforicamente introduzidas por "já que", antecedendo a sua proposta de forma reiterada e cobrindo todas as variantes dessa ambição: religiosa ("Se tu pola [Lei] de Cristo só pelejas?"), material ("Se terras e riquezas mais desejas?"), militar ("Se queres por vitórias ser louvado?"). E aproveita para apresentar novas consequências maléficas da expansão marítima: fortalecimento do inimigo tradicional ("Deixas criar às portas o inimigo"), despovoamento e enfraquecimento do reino. E mais uma vez recorre às interrogações retóricas como recurso estilístico dominante.
Vem depois a terceira parte (est. 102-104). O poeta recorda figuras míticas do passado, que, de certo modo, representam casos paradigmáticos de ambição, com consequências dramáticas. Começa por condenar o inventor da navegação à vela - "o primeiro que, no mundo, / Nas ondas vela pôs em seco lenho!". Faz depois referência a Prometeu, que, segundo a mitologia grega, teria criado a espécie humana, dando assim origem a todas as desgraças consequentes - "Fogo que o mundo em armas acendeu, / Em mortes, em desonras (grande engano!". Logo a seguir, narra os casos de Faetonte e Ícaro, que, pela sua ambição, foram punidos. E os quatro versos finais da fala do Velho do Restelo sintetizam bem esse desejo desmedido de ultrapassar os limites:

Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana gèração.
Mísera sorte! Estranha condição!



Simbologia do episódio do "Velho do Restelo"

Naturalmente, o "Velho do Restelo" não é uma personagem histórica, mas uma criação de Camões com um profundo significado simbólico.

Por um lado, representa aquela corrente de opinião que via com desagrado o envolvimento de Portugal nos Descobrimentos, considerando que a tentativa de criação de um império colonial no Oriente era demasiado custosa e de resultados duvidosos. Preferiam que a expansão do país se fizesse pela ampliação das conquistas militares no Norte de África.
Essa ideia era, sobretudo, defendida pela nobreza, que assim encontravam possibilidades de mostrarem o seu valor no combate com os mouros e, ao mesmo tempo, encontravam nele justificação para as benesses que a Coroa lhes concedia. A burguesia, por seu lado, inclinava-se mais para a expansão marítima, vendo aí maiores oportunidades de comércio frutuoso.
Por outro lado, se ignorarmos o contexto histórico em que o episódio é situado, podemos ver na figura do Velho o símbolo daqueles que, em nome do bom senso, recusam as aventuras incertas, defendendo que é preferível a tranquilidade duma vida mediana à promessa de riquezas que, geralmente, se traduzem em desgraças. Encontramos aqui um eco de uma ideia cara aos humanistas: a nostalgia da idade de ouro, tempo de paz e tranquilidade, de que o homem se viu afastado e a que pode voltar, reduzindo as suas ambições a uma sábia mediania ("aurea mediocritas", na expressão dos latinos), já que foi a desmedida ambição que lançou o ser humano na idade de ferro, em que agora vive (cf. est. 98). Neste sentido o episódio pode ser entendido como a manifestação do espírito humanista, favorável à paz e tranquilidade, contrário ao espírito guerreiro da Idade Média.
Assim, o episódio do "Velho do Restelo" está de certo modo em contradição com aquilo mesmo que Os Lusíadas , no seu conjunto, procuram exaltar - o esforço guerreiro e expansionista dos portugueses. Essa contradição é real e traduz, de forma talvez inconsciente, as contradições da sociedade portuguesa da época e do próprio poeta. De facto, Camões soube interpretar, melhor que ninguém, o sentimento de orgulho nacional resultante da consciência de que durante algum tempo Portugal foi capaz de se destacar das demais nações europeias. Mas Camões era também um homem de sólida formação cultural, atento aos valores estéticos do classicismo literário e imbuído de ideais humanistas. Se, ao cantar os feitos dos portugueses, ele dá voz a esse orgulho nacional, que sentia também como seu, na fala do "Velho do Restelo" e em outras intervenções disseminadas ao longo do poema, exprime as suas ideias de humanista.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

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O Livro de Cesário Verde -José Joaquim Cesário Verde

Antologia -Antero de Quental

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Estrutura da Mensagem

Introdução à Primeira Parte- BRAZÃO

.

-BRAZÃO: I- OS CAMPOS
- Primeiro- O DOS CASTELLOS (1928-12-08)
- Segundo- O DAS QUINAS (1928-12-08)

.

-BRAZÃO: II- OS CASTELLOS
- Primeiro- ULYSSES
- Segundo- VIRIATO (1934-01-22)
- Terceiro- O CONDE D.HENRIQUE
- Quarto- D.TAREJA (1928-09-24)
- Quinto- D.AFFONSO HENRIQUES
- Sexto- D.DINIZ (1934-02-09)
- Sétimo (I)- D.JOÃO O PRIMEIRO (1934-02-12)
- Sétimo (II)- D.PHILIPPA DE LENCASTRE (1928-09-26)

.

-BRAZÃO: III- AS QUINAS
- Primeira- D.DUARTE REI DE PORTUGAL (1928-09-26)
- Segunda- D.FERNANDO INFANTE DE PORTUGAL (1913-07-21)
- Terceira- D.PEDRO REGENTE DE PORTUGAL (1934-02-15)
- Quarta- D.JOÃO INFANTE DE PORTUGAL (1930-03-28)
- Quinta- D.SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL (1933-02-20)

.

-BRAZÃO: IV- A COROA
- NUN'ÁLVARES PEREIRA (1928-12-08)

.

-BRAZÃO: V- O TIMBRE
- A cabeça do grypho- O INFANTE D.HENRIQUE (1928-09-26)
- Uma asa do grypho- D.JOÃO O SEGUNDO (1928-09-26)
- A outra asa do grypho- AFFONSO DE ALBUQUERQUE (1928-09-26)

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Introdução à Segunda Parte- MAR PORTUGUÊS

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-MAR PORTUGUEZ
- O INFANTE
- HORIZONTE
- PADRÃO (1918-09-13)
- O MOSTRENGO (1918-09-09)
- EPITAPHIO DE BARTHOLOMEU DIAS
- OS COLOMBOS (1934-04-02)
- OCCIDENTE
- FERNÃO DE MAGALHÃES
- ASCENÇÃO DE VASCO DA GAMA (1922-01-10)
- MAR PORTUGUEZ
- A ÚLTIMA NAU
- PRECE (1922-01-01)

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Introdução à Terceira Parte- O ENCOBERTO

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-O ENCOBERTO: I- OS SYMBOLOS
- Primeiro- D.SEBASTIÃO
- Segundo- O QUINTO IMPÉRIO (1933-02-21)
- Terceiro- O DESEJADO (1934-01-18)
- Quarto- AS ILHAS AFORTUNADAS (1934-03-26)
- Quinto- O ENCOBERTO (1933-02-21; 1934-02-11)

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-O ENCOBERTO: II- OS AVISOS
- Primeiro- O BANDARRA (1930-03-28)
- Segundo- ANTÓNIO VIEIRA (1929-07-31)
- TERCEIRO (1928-12-10)

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-O ENCOBERTO: III- OS TEMPOS
- Primeiro- NOITE
- Segundo- TORMENTA (1934-02-26)
- Terceiro- CALMA (1934-02-15)
- Quarto- ANTEMANHÃ (1933-07-08)
- Quinto- NEVOEIRO (1928-12-10)

O Padrão (Mensagem)


O esforço é grande e o homem é pequeno
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
este padrão ao pé do areal moreno
e para deante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão signala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por fazer é só com Deus.

E ao immenso e possível oceano
Ensinam estas quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é portuguez.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.



Comentários:
Este é outro dos poemas mais conhecidos de Mensagem e tal como os seus pares (Infante, Mar Português, e Mostrengo) a linguagem é clara e quase não requer explicações.
"o mar com fim..."- o Mediterrâneo; "o mar sem fim..."- o Oceano.
"o que me há na alma (...) só encontrará, de Deus na eterna calma, o porto sempre por achar"- irei sempre mais longe porque, por mais longe que vá, haverá sempre um porto por descobrir; só descansarei (só encontrarei esse porto) depois de morrer.
palavras mantidas em ortografia antiga: deante= diante; signala= sinala (assinala); immenso= imenso; portuguez= português.

Horizonte


Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mysterio,
Abria em flor o Longe, e o Sul siderio
'Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa -
Quando a nau se approxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe, a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distancia imprecisa, e, com sensiveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte-
Os beijos merecidos da Verdade.


Comentários:
"teus medos tinham coral, e praias e arvoredos"- o medo do desconhecido é o temor infundado do que se imagina como real. Fernando Pessoa exemplifica dizendo que o medo ancestral do mar era sem fundamento: não havia monstros ou turbilhões que afundassem os navios- quando ultrapassámos o medo só encontrámos praias e arvoredos, flores e aves...
"mistério"- termo muito utilizado por Pessoa na acepção de desconhecido, indescoberto.
"Sul sidéreo"- Sul sideral, isto é, sul celeste- aqui refere-se à constelação Cruzeiro do Sul que indica a direcção do polo austral
"iniciação"- cerimónia pela qual se começa a explicar a alguém os mistérios de alguma religião ou doutrina. O termo está frequentemente associado aos ritos das sociedades ditas secretas. Aqui a iniciação refere-se ao esclarecimento geográfico.
"resplendia sobre as naus da iniciação"- brilhava (resplandecia) sobre as naus que demandavam o desconhecido para o desvendar.

O Infante




Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quiz que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou creou-te portuguez.
Do mar e nós em ti nos deu signal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!




Comentários: Este poema é um dos mais conhecidos de Mensagem.

"Foste desvendando a espuma e a orla branca foi de ilha em continente..."- a espuma das ondas que acabam nas praias ou rebentam contra os rochedos marca as costas com uma orla branca. A frase anterior é uma forma poética de dizer que as costas foram sendo descobertas, primeiro as ilhas e depois os continentes, "até ao fim do mundo".
"Quem te sagrou criou-te português"- porque, segundo Fernando Pessoa, Deus fadou Portugal para um magno destino e o Infante foi, por assim dizer, parte do "puzzle".
"Do mar e nós, em ti nos deu sinal"- através de ti revelou-nos que o nosso destino era o Mar.
"Cumpriu-se o Mar e o Império se desfez...falta cumprir-se Portugal"- cumpriu-se o destinado: o Mar foi desvendado; o Império Português (isto é, o controle das rotas oceânicas e a hegemonia no Índico) desfez-se. Pessoa pensa que Portugal está destinado à grandeza futura, e isso ainda não se cumpriu!

Brasão - o Timbre e Introdução à 2ªparte da Mensagem




BRAZÃO: V- O TIMBRE
- A cabeça do grypho- O INFANTE D.HENRIQUE (1928-09-26)




Em seu throno entre o brilho das espheras,
com seu manto de noite e solidão,
tem aos pés o mar novo e as mortas eras-
-o único imperador que tem, deveras,
o globo mundo em sua mão.




Comentários:
"entre o brilho das esferas"- refere-se ao modelo ptolomaico do Universo, que era o geralmente aceite na época do Infante, e que se baseava num conjunto de esferas concêntricas. Pode, eventualmente, tratar-se alternativamente de uma referência às esferas metálicas que representavam o firmamento..
"o mar novo e as mortas eras"- o mar desvendado e o passado de ignorância e temor do desconhecido.
"o único que tem deveras o globo mundo em sua mão"- os imperadores e alguns reis tomavam como simbolo do poder uma esfera que sustentavam na mão, representando a universalidade do seu estatuto. Só no caso do Infante, diz Pessoa, tal se justificaria!







- Uma asa do grypho- D.JOÃO O SEGUNDO (1928-09-26)


Braços cruzados, fita além do mar.
Parece em promontório uma alta serra-
O limite da terra a dominar
O mar que possa haver além da terra.

Seu formidável vulto solitário
Enche de estar presente o mar e o céu
E parece temer o mundo vário
Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu.


Comentários:
"parece temer o mundo vário que ele abra os braços e lhe rasgue o véu"- parece temer o mundo perplexo que ele revele os seus mistérios.


- A outra asa do grypho- AFFONSO DE ALBUQUERQUE (1928-09-26)

. De pé, sobre os paízes conquistados
desce os olhos cansados
de ver o mundo e a injustiça e a sorte.
Não pensa em vida ou morte,
tam poderoso que não quere o quanto
póde, que o querer tanto
calcára mais do que o submisso mundo
sob o seu passo fundo.
Trez impérios do chão lhe a Sorte apanha.
Creou-os como quem desdenha.

Introdução à Segunda Parte- MAR PORTUGUÊS

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Introdução a MAR PORTUGUÊS

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A segunda parte de Mensagem tem como epígrafe "POSSESSIO MARIS" (Posse do Mar- escrita em maiúsculas porque o latim não tinha minúsculas) e o seu tema é, não tanto a hegemonia marítima como essa divisa poderia fazer supôr (e muito menos o império baseado nessa hegemonia), mas antes o desvendar do mar ignoto pelo Portugal dos séculos XV e XVI que representa a vitória do querer e da ousadia sobre a ignorância. O medo do desconhecido, uma fabricação do espírito que não tem, realmente, causa palpável, é vencido pela vontade de desvendar a Verdade. Essa vontade, inicialmente um sonho, materializa-se na Descoberta- este é, aliás, o tema do segundo poema do Ciclo: "Horizonte". Fernando Pessoa privilegiava os triunfos do espírito sobre os ganhos materiais e, conscientemente ou não, faz poucas referências ao império físico e nenhuma às riquezas materiais dele derivadas.
Mas então, perguntar-se-á: porque não ter feito de "Horizonte" o primeiro poema de "Mar Português"? É que esta parte de Mensagem é também sobre os homens que levaram a cabo a Grande Obra e o primeiro poema é dedicado àquele que esteve na origem do desvendar dos mares, o Infante D.Henrique. Mas esta dedicação está sobretudo no título ("O Infante") porque o texto é de índole geral e poderia também aplicar-se ao esforço da Raça na época das grandes viagens de descobrimento, ao contrário do poema "O Infante D.Henrique" de Brasão que se refere inequivocamente a um só homem.
Os poemas de "Mar Português" seguem uma ordem aproximadamente cronológica referindo (directa ou indirectamente) o Infante, Diogo Cão, D.JoãoII, ... até ao antepenúltimo poema, que dá o nome ao conjunto, "Mar Português" (geralmente considerado o melhor de Mensagem) que olha em retrospectiva a época das Descobertas e pergunta "Valeu a pena?" oferecendo, como resposta, duas das frase mais célebres de toda a literatura portuguesa; "tudo vale a pena se a alma não é pequena" e "quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor".
No penúltimo poema do ciclo (A Última Nau) a época de ouro é encerrada com o desaparecimento de D.Sebastião que, qual Rei Artur depois da batalha de Camlan, embarca para uma ilha desconhecida, e o poeta transporta-nos subitamente à actualidade em que escreve, interrompendo a narrativa para confiar ao leitor o seu pensamento. Mas a visão de Pessoa atira-nos imediatamente para o futuro, um futuro em que O Desejado regressa para retomar o sonho interrompido de um império universal. A intimidade entre poeta e leitor transforma-se no derradeiro poema do ciclo (Prece) em súplica a Deus a quem pede que reacenda a Alma Lusitana para que de novo "conquistemos a Distância".

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O ciclo poético de "Mar Português" é anterior a "Mensagem", tendo sido publicado pela primeira vez em 1922, e manteve a generalidade do conteúdo com apenas a substituição de um poema e alterações aos títulos de outros e a alguns versos. Compreende 12 poemas, incluindo quatro dos cinco através dos quais a poesia de Fernando Pessoa é realmente conhecida da generalidade dos portugueses: "O Infante", "Padrão", "O Mostrengo" e "Mar Português" (o quinto é "O menino da sua mãe" que não faz parte de "Mensagem"). Vale a pena notar que em todos estes o Poeta utiliza uma linguagem sumamente simples, sem recurso a termos estritamente eruditos. Eis alguns dos meus favoritos desta Parte, com links directos para as respectivas páginas, bem como uma selecção de grandes versos e frases escolhidas que ofereço à vossa atenção:
"O Infante" inclui o famosíssimo início Deus quer, o homem sonha, a obra nasce bem como Cumpriu-se o Mar e, em sequência, Falta cumprir-se Portugal!
"Horizonte" inclui uma sequência de quatro versos cuja sonoridade e imagem que invocam muito me agradam:
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.
"Padrão" inclui as frases O esforço é grande e o homem é pequeno, e o mar com fim será grego ou romano; o mar sem fim é português.
"O Mostrengo" é conhecido, não por grandes frases mas pelo ritmo e pela imagem de um timoneiro que combate o pavor de sulcar os mares do fim do mundo com a lembrança múrmura das ordens que lho impõem até que, na última estrofe, vence o terror e se alevanta para gritar ao Medo o desafio de um povo condensado na vontade do seu Rei.
"Ascensão de Vasco da Gama" é notável pela descrição poética do indescritível.
"Mar Português" é O poema de "Mensagem" e é praticamente uma sucessão de grandes frases: Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal! ; Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar! ; Tudo vale a pena se a alma não é pequena. ; Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor. ; e Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu.
"A Última Nau" é o primeiro poema de "Mensagem" que se pode designar de místicamente complexo, indiciando um sentido oculto que será precisado na Terceira Parte do Poema. Tem excepcional beleza mas há que lê-lo e relê-lo até começar a saboreá-lo. De notar que este poema constitui o verdadeiro fulcro de Mensagem, concluindo a parte que diz respeito ao Passado, transportando o leitor ao presente e logo à visão do poeta para o futuro de Portugal... e tudo em quatro estrofes!
"Prece" é mais um poema de grande beleza que inclui os versos: Restam-nos hoje, no silêncio hostil, o mar universal e a saudade e Outra vez conquistemos a Distância- do mar ou outra, mas que seja nossa!

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NUN'ÁLVARES PEREIRA


Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando,
faz que o ar alto perca
seu azul negro e brando.

Mas que espada é que, erguida,
faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
que o Rei Artur te deu.

'Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
ergue a luz da tua espada
para a estrada se ver!


Comentários:
Segundo lendas pagãs de origem irlandesa a espada Excalibur foi dada ao Rei Artur pela Dama do Lago. Era mágica e tornava-o quase invencível. De acordo com uma tradição guerreira muito antiga, era costume ser dado nome a uma arma notável pela sua beleza ou qualidade. Excalibur não podia ser quebrada e o seu nome tem origem céltica e quer dizer "relâmpago duro".
"S.Portugal em ser"- personificação do que há de místico em Portugal (ou do melhor e mais puro em Portugal).
"Ergue a luz da tua espada para a estrada se ver!"- inspira-nos para que encontremos o caminho (da grandeza de Portugal).

D.SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL


Louco, sim, louco, porque quiz grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nella ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver addiado que procria?


Comentários:
"areal"- o campo de Alcácer Quibir.
"ficou meu ser que houve, não o que há"- ficou o meu corpo, não a minha alma que vive eterna.
"sem a loucura que é o homem mais do que a besta sadia"- sem o sonho (impossível, neste caso) o homem é apenas um animal vivente.
"cadáver adiado que procria"- vivo e a reproduzir-se (sem outra finalidade do que, como nos animais, a propagação da espécie) mas inexorávelmente destinado à morte.

D.FERNANDO INFANTE DE PORTUGAL


Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça
A sua sancta guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.

Poz-me as mãos sobre os hombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer-grandeza são Seu nome
Dentro em mim a vibrar.

E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.



Comentários:
Este poema, sem dúvida um dos mais belos de Mensagem, foi o primeiro a ser escrito (em 1913) e destinava-se a servir de mote a um livro que Fernando Pessoa pensou chamar "Portugal". O conteúdo incluiria, pelo menos, o equivalente às duas primeiras Partes de Mensagem, mas a índole talvez não tivesse sido integralmente afim. Este poema, inicialmente chamado "Gládio", foi rebaptizado mas não está totalmente sintonizado com o seu novo nome. É provável que tenha sido originalmente escrito com D.Sebastião em mente.
O D.Fernando referido no poema é o Infante Santo, que morreu refém em Marrocos.
O gládio era uma espada curta como as utilizadas pelos gregos e pelos romanos. A sonoridade da palavra era muito apreciada pelos autores italianos, espanhóis e portugueses que a usavam amiúde designando uma espada de qualquer tipo ou, simplesmente, o seu equivalente simbólico.

D.Duarte

Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
em dia e letra escrupuloso e fundo.

Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.



D.Pedro, o Regente

Claro em pensar, e claro no sentir,
é claro no querer;
indifferente ao que há em conseguir
que seja só obter;
duplice dono, sem me dividir,
de dever e de ser-

não me podia a Sorte dar guarida
por não ser eu dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
calmo sob mudos céus,
fiel à palavra dada e à ideia tida.
Tudo o mais é com Deus!

D.João, Infante de Portugal

Não fui alguém. Minha alma estava estreita
entre tam grandes almas minhas pares,
inutilmente eleita,
virgemmente parada;

porque é do portuguez, pae de amplos mares,
querer, poder só isto:
o inteiro mar, ou a orla vã desfeita-
o todo, ou o seu nada.

Comentários:
D.Duarte Rei de Portugal: "A regra de ser Rei almou meu ser"- A disciplina de ser rei encheu a minha vida (isto é, como D.Duarte viveu o fim do seu curto reinado no remorso das consequências da falhada expedição a Tânger e da prisão do irmão Fernando não tinha prazer na vida, dedicando-se inteiramente ao dever da governação). Esse remorso é a razão da frase do poema: "firme em minha tristeza".
D.Pedro Regente de Portugal: "indiferente ao que há em conseguir que seja só obter"- não fui movido pelo desejo de posse; não fui ambicioso de bens materiais.
"Dúplice dono, sem me dividir, de dever e de ser"- eu e o meu dever fomos um só.
D.João Infante de Portugal- "Minha alma estava estreita entre tão grandes almas...etc"- os meus irmãos (o Infante D.Henrique, o Rei D.Duarte, o Infante D.Pedro, e o Infante D.Fernando) tiveram tal grandeza que me ofuscaram completamente.
"virginalmente parada"- sem actividade; virgem de acção (esta afirmação é inexacta em relação ao Infante D.João que foi um homem de mérito e de préstimo para o País. Aliás, qualquer comparação com um homem de estatura mundial como o Infante D.Henrique só pode resultar injusta para o comparado!).
"é do português querer só isto: o inteiro mar ou a orla vã desfeita"- para um português não há meios termos: ou tudo ou nada (por isso, como não fui tudo, então eu não fui nada!).
"a orla vã desfeita"- a cercadura do mar; a espuma das ondas que se desfazem futilmente na costa.
NOTA: Para os que queiram saber mais sobre D.Duarte sugiro ESTA página.
Sobre D.Pedro sugiro ESTA página excepcional que mostra como o infante, apesar da sua morte trágica e inútil na batalha de Alfarrobeira (que inspirou a ilustração a esta página) teve uma vida verdadeiramente extraordinária e um papel importante no início das Descobertas.
Sobre o Infante D.João Sugiro ESTA página, notando apenas uma correcção: o ano da sua morte foi 1442 e não 1422 como refere a página aconselhada na versão que existia à data em que preparei esta página.

D.João I (Mensagem) e D. Filipa de Lencastre


O homem e a hora são um só
Quando Deus faz e a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita.

Mestre, sem o saber, do Templo
Que Portugal foi feito ser,
Que houveste a glória e deste o exemplo
De o defender.

Teu nome, eleito em sua fama,
É, na ara da nossa alma interna,
A que repelle, eterna chama,
A sombra eterna.


Comentários:
D.João o Primeiro: "O homem e a hora são um só, quando Deus faz e a História é feita"- Fernando Pessoa exprime de novo a ideia de que o destino é traçado por Deus e rege inexoravelmente a História. Quando uma nação atinge uma encruzilhada (como Portugal em 1383) é a hora e os escolhidos executam os actos determinados. O homem é o papel que desempenhou, este é o requerido pela ocasião (pela hora), a ocasião é determinada pelo Destino, o Destino foi traçado por Deus... (simples, não?). Conhecemos D.João I porque teve a sua hora; sem ela teria sido um obscuro mestre de uma ordem militar obscura. Sem a hora não teria havido o homem...
"na ara da nossa alma interna"- no altar do nosso espírito nacional.
"repele a sombra eterna"- repele o olvido, que seria o destino de Portugal se perdesse a sua identidade como nação.
D.Filipa de Lencastre: "Que enigma havia em teu seio que só génios concebia"- referência à chamada "ínclita geração" dos filhos de D.Filipa e D.João I.
"Volve a nós teu rosto sério"- vira o teu rosto (sisudo...) e olha para nós; lembra-te de Portugal; reza por nós!
"Princesa do Santo Gral"- referência ao Graal procurado pelos cavaleiros medievais das lendas da Távola Redonda. Existem várias versões sobre o que seria, mas a mais comum refere-o como a taça de onde Cristo bebera na Última Ceia e/ou que teria recolhido o seu sangue na Cruz. A referência deve ser interpretada como "Princesa mística" porque fadada por Deus para ser mãe dos principes da ínclita geração e muito particularmente do Infante D.Henrique; ou "Princesa da grandeza (futura) de Portugal" (o Graal era suposto trazer felicidade à Terra).


D. Filipa de Lencastre

Que enigma havia em teu seio
Que só génios concebia?
Que archanjo teus sonhos veio
Vellar, maternos, um dia?

Volve a nós teu rosto sério,
Princeza do Santo Gral,
Humano ventre do Império,
Madrinha de Portugal!

D.Filipa de Lencastre: "Que enigma havia em teu seio que só génios concebia"- referência à chamada "ínclita geração" dos filhos de D.Filipa e D.João I.
"Volve a nós teu rosto sério"- vira o teu rosto (sisudo...) e olha para nós; lembra-te de Portugal; reza por nós!
"Princesa do Santo Gral"- referência ao Graal procurado pelos cavaleiros medievais das lendas da Távola Redonda. Existem várias versões sobre o que seria, mas a mais comum refere-o como a taça de onde Cristo bebera na Última Ceia e/ou que teria recolhido o seu sangue na Cruz. A referência deve ser interpretada como "Princesa mística" porque fadada por Deus para ser mãe dos principes da ínclita geração e muito particularmente do Infante D.Henrique; ou "Princesa da grandeza (futura) de Portugal" (o Graal era suposto trazer felicidade à Terra).

D.Dinis


Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
o plantador de naus a haver,
e ouve um silêncio múrmuro comsigo:
é o rumor dos pinhaes que, como um trigo
de Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
busca o oceano por achar;
e a falla dos pinhaes, marulho obscuro,
é o som presente desse mar futuro,
é a voz da terra anciando pelo mar.


No século XIII a Europa estava deflorestada após séculos de exploração selvagem das florestas primevas. D.Dinis levou a cabo um vasto plano de reflorestação através do plantio de matas reais de pinheiros bravos. A madeira foi depois utilizada na construção das caravelas das Descobertas, o que é o tema deste belo oitavo poema da Mensagem.
"Cantar de Amigo"- poema medieval, cantado pelos trovadores. D.Dinis escreveu vários destes cantares.
"silêncio murmuro"- silêncio murmurante.
"arroio"- riacho; "marulho"- som do mar.

D.Afonso Henriques


Pae, foste cavalleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A bênção como espada,
A espada como benção!


"Pai" (da nacionalidade).
"hora errada"- épocas em que a caminhada de Portugal para o seu destino- que Pessoa confiava ir ser esplendoroso- sofra retrocessos.
"novos infiéis"- pessoas que, na opinião de Fernando Pessoa, criavam obstáculos (ou viriam a criá-los...) ao destino glorioso que ele sonhava para Portugal.

D.Henrique e D.Teresa



Conde D.Henrique


Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O heroe a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
"Que farei eu com esta espada?"

Ergueste-a, e fez-se





D.Henrique: "Todo o começo é involuntário. Deus é o agente"- exprime a ideia de Fernando Pessoa segundo a qual o Destino rege inexoravelmente a História e foi traçado por Deus desde a origem dos tempos. Assim, aqueles que, na Terra, determinam a História não são mais do que agentes da vontade primeva de Deus e assistem aos seus próprios actos confusos ("vários") e inconscientes de estar a cumprir um plano.
"À espada em tuas mãos achada... etc"- A ideia anterior é particularizada para o pai de D.Afonso Henriques, que talhou à espada os alicerces da futura independência de Portugal. Confuso, pegou em armas e inconscientemente cumpriu a sua missão na Terra... O trabalho que lhe estava destinado "fez-se" (isto é, cumpriu-se, não por sua vontade, mas pela de Deus).



D.TAREJA . . . (ouvir aqui o poema)


As naçôes todas são mystérios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de impérios,
Vella por nós!

Teu seio augusto amamentou
Com bruta e natural certeza
O que, imprevisto, Deus fadou.
Por elle reza!

Dê tua prece outro destino
A quem fadou o instincto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu.

Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não há o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!


D.Tareja (versão arcaica do nome de D.Teresa, mãe de Afonso Henriques): "cada nação é todo o mundo a sós"- cada nação constitui um todo que, enquanto tal, é diferente de todas as outras;
"mãe de reis e avó de impérios"- refere-se à linhagem real portuguesa que dela originou e ao futuro Império.
"...com bruta e natural certeza"- "bruta" significa aqui "de acordo com a natureza" e portanto "bruta e natural" constitui um pleonasmo (isto é, uma repetição).
"o que, imprevisto, Deus fadou."- Aquele que Deus determinou (que fundasse Portugal- isto é, Afonso Henriques). "imprevisto" porque improvável- o primeiro rei de Portugal enfrentou guerras contra o poderoso reino de Castela e Leão, e contra os potentados islâmicos. As probabilidades de sucesso pareciam, à partida, muito remotas, de onde a improbabilidade.
"dê tua prece outro destino"- faz com que Afonso Henriques seja visto pela História a uma luz mais favorável (ver a NOTA final).
"Mas todo vivo é eterno infante/ Onde estás e não há o dia"- no reino dos mortos Afonso Henriques é sempre menino para a sua mãe (?).
"No antigo seio vigilante de novo o cria"- dá-nos outro lider do mesmo calibre (?)



Viriato

Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instincto teu.

Nação porque reincarnaste,
Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste-
Assim se Portugal formou.

Teu ser é como aquella fria
Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.

Comentários:
"Se a alma... etc"- a nação portuguesa representa, segundo Pessoa, a memória colectiva do instinto de identidade e independência personificado por Viriato.
"povo porque ressuscitou (...) o de que eras a haste"- somos um povo porque renasceu (após a presença romana, nórdica e islâmica) o espírito nacional de que Viriato foi a origem.
Fernando Pessoa tem uma predilecção pelo uso, literal ou simbólico, do termo "antemanhã", isto é, o periodo antes do alvorecer quando começa a despontar uma luz muito ténue. Aqui o poeta compara Viriato à antemanhã da nacionalidade portuguesa.

Ulisses

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.


Comentários:
"O mito é o nada que é tudo"- esta frase exprime a ideia que Fernando Pessoa tinha dos mitos como potenciais motores sociológicos. Mesmo se falso (isto é, mesmo que não seja nada) um mito tem o potencial de provocar comportamentos sociais e, portanto, facilitar a evolução de uma nação segundo determinados vectores.
"O mesmo sol que abre os céus...etc"- provável referência aos deuses solares (ou mitos afins) que todos os dias eram supostos renascer à alvorada, depois de terem "morrido" no poente anterior.
"Este que aqui aportou"- referência a Ulisses, herói lendário da Odisseia e fundador mítico de Lisboa, onde teria aportado numa das suas navegações ("Lisboa" deriva de Olisippo e Ulixbona- em cuja raiz alguns creem ver o nome de Ulisses ou Odisseus).
"Foi por não ser existindo"- porque não era, foi existindo; foi-se insinuando na nossa realidade.
"a fecundá-la decorre"- a lenda tem uma interacção positiva com a realidade; "A vida, metade de nada, morre"- a vida por si só nada vale porque logo desaparece (mas o mito persiste!).

Ulisses

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Ulisses

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Segundo- O DAS QUINAS (Mensagem)

Os Deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

Baste a quem baste o que Ihe basta
O bastante de Ihe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Christo definiu:
Assim o oppoz à Natureza
E Filho o ungiu.

Comentários:
"Os Deuses vendem quando dão" é uma frase que remonta pelo menos à Grécia Clássica e que corresponde a uma visão mesquinha da divindade: os favores dos deuses pagam-se!
"Ai dos felizes porque são só o que passa"- a felicidade é transitória e os que se contentam em ser apenas felizes não têm consequência na História; "Baste a quem baste...etc"- a mesma noção referida: a quem basta o que tem, por esses limites se fica! "ter é tardar"- a posse do bastante adia os cometimentos.
"Foi com desgraça e...etc"- mas Deus tem outro ideal: concebeu o Cristo para ser infeliz e baixo (e, contra a natureza humana, para não desejar felicidade material ou posses) e, tendo-o assim determinado, sagrou-o como Filho, mostrando o Seu caminho (não material, mas espiritual). O campo das quinas simboliza, em geral, a espiritualidade em Portugal, o sonho. Em particular é um elogio ao sacrifício da felicidade material a altos ideais (que o poeta cria ser o seu próprio caso).

O dos Castelos - Mensagem

A Europa jaz, posta nos cotovellos:
De Oriente a Occidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabellos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovello esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquelle diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se appoia o rosto.

Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Occidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.



O poema é uma descrição do mapa da Europa que Pessoa assemelha a uma mulher reclinada. Compare-se com um trecho d' Os Lusiadas de que a parte referente a Portugal pode ser lida (com comentários meus) seguindo este "link", ou a totalidade (a partir da Estância 6) este outro. O campo dos castelos representa a materialidade (ver "O das Quinas").
"olhos gregos, lembrando"- lembrando a herança cultural da Europa que Pessoa remontava à Grécia Antiga.
"olhar esfíngico e fatal"- olhar enigmático (imperscutável) e (mas) pré-destinado. Note-se que, por fidelidade, foi mantida a ortografia original o que permite, também, conservar a métrica que seria alterada pela grafia "esfíngico" em vez de "sphyngico". Ao que parece, Fernando Pessoa favorecia a ortografia clássica por razões de estilo mas também de elitismo.
"o Ocidente, futuro do passado"- o Mar, onde a Europa se lançou, através de Portugal, na grande Idade das Descobertas com a qual traçou o seu próprio futuro (o actual e, pensa Pessoa, também o futuro a haver).
NOTA: sobre este poema leia-se o comentário de Soares Feitosa que se segue e que pode ser lido na sua integralidade no Jornal da Poesia:
" O leitor já tem todo o direito de ir dizendo: "Também, com Pessoa, é moleza...". Nada disso. Só neste poema, de tudo o que li de Pessoa, há o abismo-absoluto-e-inesperado — hifenizei: abismo-absoluto-e-inesperado. A mesma angústia da falta de tempo do Anjo sobre as águas... Em análise: Trata-se de um poema “geográfico”, mero comparatório do mapa físico da Europa com a efígie de uma pessoa. A Europa jaz, posta nos cotovellos: De Oriente a Occidente jaz, fitando, E toldam-lhe romanticos cabellos Olhos gregos, lembrando. Nada de extraordinário até aqui. Os fiordes escandinavos realmente parecem uma cabeleira vasta. O cotovello esquerdo é recuado; O direito é em angulo disposto. Aquelle diz Italia onde é pousado; Este diz Inglaterra onde, afastado, A mão sustenta, em que se appoia o rosto. Ainda sem maior interesse. Dir-se-ia — e aí precisamente mora o perigo — um poema bobo. Confira no mapa da Europa — é assim mesmo: os acidentes Itália e Inglaterra seriam os cotovelos de uma jovem. Fita, com olhar sphyngico e fatal, Occidente, futuro do passado. Aqui a coisa já começa a “complicar”. Anunciam-se borrascas e temporais: Fita, com olhar sphyngico e fatal,/ O Occidente, futuro do passado. Mas, finalmente, mas: O rosto com que fita é Portugal. Feche o livro, caro leitor, respire fundo e contemple o Infante preparando as navegações daquela nesga minúscula, simplório enclave geográfico no mapa d’Espanha... — quanta glória!!! Ah, meu Deus, quanta glória em 7 (sete, misticamente sete — dizem que Mensagem é uma mensagem misticamente cifrada, parece que é!), sete palavras apenas para tamanha grandiosidade. Os lusos, Os Lusíadas, a própria Ode Marítima, esta do mesmo Pessoa, contidos nesta frase perfeita: O rosto com que fita é Portugal.! Disse Pessoa a frase perfeita. Veja o caro leitor se tenho razão em chamá-la perfeita. O rosto — de quem, o rosto? — do mapa anteriormente descrito, o rosto da Europa, símbolo então de toda a civilização ocidental, o rosto da Humanidade, o rosto de Deus? Quem, afinal, fita o mundo?! Agora percebemos que a estrofe anterior — o olhar sphyngico — era terreno preparatório (Batista, às margens do Jordão, batizando o Cristo) para o grande final, o rosto que fita, onde fitar não é simplesmente sinônimo de olhar. Portugal, no extremo (ou no início!) do mapa e no extremo do verso, FUNDA o mundo e o domina! E na ponta da lança dos seus guerreiros, o missal dos frades enlouquecidos, a esmagar os deuses das novas terras, em nome do Cristo! Quem olha, afinal? A Cruz-de-Malta?! Já não há mais tempo: eis o abismo, caia nele, de ponta!".

Mensagem por Fernando Pessoa (Introdução e Brasão)


ilustrada por Carlos Alberto Santos , anotada por João Manuel Mimoso

Mensagem é um Poema constituído por 44 poemas independentes que foram inseridos numa espécie de esqueleto que deu coerência ao conjunto. Este esqueleto está dividido em três partes (Brasão, Mar Português e O Encoberto que tratei individualmente em textos introdutórios) e a coerência é dada, não pelos poemas propriamente ditos, mas antes pelos seus nomes e pelos títulos e subtítulos das partes em que se inserem. Esta é uma solução deveras inovadora!! Para evitar confusões, quando falar do Poema (com maiúscula) estarei a referir Mensagem; se falar de poema (com minúscula) referir-me-ei a qualquer dos 44 poemas que constituem o Poema.

.Mensagem foi publicada em livro no dia 1 de Dezembro de 1934, em vida de Fernando Pessoa, mas em condições muito particulares que influenciaram a sua composição: destinava-se a participar num concurso com regras rígidas em relação ao prazo e número de páginas. Das três partes do Poema a segunda "Mar Português" já existia como um conjunto e é evidente a sua homogeneidade e a constância da qualidade da generalidade dos poemas; as duas restantes foram fabricadas a partir de poemas soltos. Destes, pelo menos quatro dos dezanove poemas da primeira parte (Brasão) foram escritos no próprio ano da publicação (as datas dos poemas, quando conhecidas, estão indicadas no índice) enquanto que pelo menos sete dos treze da terceira parte (O Encoberto) foram escritos em 1933 ou 1934. Talvez por ter sido mais apressadamente preparada, esta é a "menos boa" (todas são boas!!) do conjunto. Segundo as regras do concurso o livro teria que ter pelo menos cem páginas que foram conseguidas com muita dificuldade à custa dos 44 poemas e das páginas interpostas entre eles (artifício que, aliás, o júri não aceitou). Daqui resultaram enxertos de poemas soltos, anteriores, num conjunto para o qual não teriam sido pensados (pelo menos na posição que vieram a ocupar), duplicações e acrescentos. Quer isto dizer que Fernando Pessoa teve que construir de forma relativamente rápida um Poema que, provavelmente, teria sido diferente se as circunstâncias o não tivessem pressionado.

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Os Lusíadas foi escrito ainda no apogeu da expansão portuguesa (na sua fase final, que hoje sabemos ser já irremediavelmente decadente mas que, na época, não seria necessariamente apercebido como tal) glorificando o esforço da Raça e apontando para uma ainda maior predominância futura. Quando a si próprio se pôs como desafio produzir um Poema de grandeza semelhante (se possível superior), Pessoa vivia num Portugal descolorido e atrasado, sem nada que o recomendasse excepto a criatividade dos seus literatos. Há duas caracteristicas de Fernando Pessoa que importa notar: por um lado amava apaixonadamente a Pátria, de uma maneira que hoje, na Europa onde as nacionalidades se diluem, nos é difícil compreender; por outro era um lógico obsessivo cujas tentativas "científicas" de racionalizar o irracionalizável impressionam e, às vezes, divertem pela candura que demonstram.
Posto perante a inelutável equação do seu tempo, parece ter racionalizado a situação da seguinte maneira: o Universo teve uma causa que o contém, um Criador a que podemos convenientemente chamar "Deus"; se Deus contém em si o Universo então também contém toda a História, que deve ter determinado desde o início (a esta determinação chama-se "Destino"); alguns homens conseguem por vezes entrever o futuro porque ele já está estabelecido; um destes homens foi o Bandarra que profetizou nas suas "Trovas" (pensava o Padre António Vieira e com ele Fernando Pessoa, embora reconhecendo-lhes uma autoria múltipla) a hegemonia portuguesa numa época futura; o único trunfo de que Portugal dispunha era a cultura duma elite e, particularmente, um génio poético desproporcionado à sua população; logo a hegemonia terá uma base cultural e será alcançada através de uma poesia tão superior que inspire os homens à fruição da beleza em paz e concórdia...
Este será o Quinto Império, uma época de união e paz universais sem limite final no tempo. Se Portugal está predestinado, então terá que produzir um grande poeta (a que Pessoa chamava super-Camões referindo-se, presumivelmente, a si próprio) e um grande lider que inspirem e conduzam todo o Mundo à união cultural que marcará o advento do Quinto Império. Esse lider é convenientemente chamado de "O Desejado", "O Encoberto" ou "D.Sebastião", uma designação que Pessoa valorizava por pensar ser mais fácil passar a ideia de um mito já estabelecido do que criar um inteiramente novo. Na prática é uma esperança semelhante à do Grand Roi da mitologia francesa, que seria o Carlos Magno do futuro.
A insistência de Fernando Pessoa na figura de D.Sebastião não significa realmente que esperasse ver o espírito do rei morto reencarnar para conduzir o País à glória. Até porque a história nos ensina (e Pessoa sabê-lo-ia melhor do que eu) que D.Sebastião tinha muito pouco que o recomendasse. Só me ocorre uma coisa: soube morrer bem! Quando o nome do rei morto em Alcácer Quibir ocorre nos poemas, ou se trata de uma passagem histórica e, portanto, literal, ou então deve subentender-se que Pessoa se refere Àquele que há-de guiar Portugal e o Mundo ao Quinto Império.

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Introdução a BRASÃO

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A primeira parte de Mensagem é curiosíssima na ideia que a estruturou: considera uma versão do brasão real português utilizado no século XV e a cada uma das suas partes relevantes associa um poema relativo a Portugal. O Brasão tem dois campos: o escudo central que é o campo dos cinco escudetes azuis com besantes brancos a que chamamos "quinas", e a bordadura periférica que é o campo dos castelos (ver a figura abaixo). Cada um destes campos inspirou um poema adequado: "O dos Castelos" refere-se à terra (ou mais genericamente à materialidade) e consiste numa descrição geográfica da Europa e da posição de Portugal nela; "O das Quinas" ( segundo a lenda as quinas representariam as cinco chagas de Cristo) refere-se à divindade, ao Deus Cristão cuja religião se entrelaça indissociavelmente com a história de Portugal e ao sacrifício da felicidade à obrigação para com a História (genericamente representa, assim, os valores espirituais). Nenhum dos campos é explicitamente dedicado ao povo português: Mensagem é um poema sobre elites (e, creio, também para elites).
Aos poemas relativos aos Campos, segue-se um conjunto de poemas chamado "Os Castelos". A cada um dos sete castelos do brasão associa-se um herói (incluindo o mítico Ulisses) ou um monarca que pela sua acção tenha moldado a História de Portugal de uma maneira materialmente relevante.
Segue-se, em "As Quinas", um conjunto de cinco poemas dedicados a figuras portuguesas que, por uma razão ou por outra, foram vítimas da engrenagem implacável da História, e dela sofreram as consequências (tais como o Infante Santo ou D.Sebastião). Num caso realça-se o triunfo da espiritualidade ("D.Fernando Infante de Portugal"), mas o tema comum é a infelicidade terrena.

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Uma parte individual, chamada "A Coroa", distingue com um belo poema o cavaleiro que combinou em si as qualidades de comando do Rei Artur, a bravura de Sir Lancelote e a piedade pura de Sir Galahad: Nuno Álvares Pereira.
Finalmente "O Timbre" (que no sécXV era uma espécie de dragão conhecido na Mitologia como grifo) justifica três poemas referidos aos três alicerces da política de expansão portuguesa: o Infante D.Henrique que a iniciou, D.João II que apontou a meta das Índias e traçou o futuro de Portugal, e Afonso de Albuquerque que foi o arquitecto e o braço do Império Português do Oriente.

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Cada uma das partes do Poema inclui uma divisa ou epígrafe em latim e que em "Brasão" é: BELLUM SINE BELLO (literalmente "Guerra sem a guerra") que eu, não sendo latinista, traduziria por "Guerra sem combate". Este parece ser, pois, o mote que Fernando Pessoa associaria a Portugal através da lição da sua história e, como tal, merece-me um curto comentário, sobretudo porque, de certa maneira, me recordou o Fado Tropical do Chico Buarque (e do Ruy Guerra) em que ele diz pela boca de um português-brasileiro da época dos holandeses: "Meu coração tem um sereno jeito e as minhas mãos o golpe duro e presto, de tal maneira que depois de feito, desencontrado eu mesmo me contesto. Se trago as mãos distantes do meu peito é que há distância entre a intenção e o gesto...". BELLUM SINE BELLO é um ideal português de paz a que hoje se convencionou chamar "brandos costumes". "Guerra sem combate" é o poder associado à recusa consciente da violência, recusa essa que enobrece o poder. A divisa poderia igualmente ser "A Paz dos fortes" embora, claro, lhe faltasse então a subtileza da epígrafe escolhida por Fernando Pessoa!
Uma outra explicação da epígrafe (que imaginei não porque me pareça provável mas apenas para exemplificar as dúvidas que se deparam a quem tenta interpretar alegorias alheias) poder-se-ia basear na tradução alternativa "Guerra sem armas". Neste caso a divisa representaria um ideal de conquista espiritual e humana (pela difusão da cultura portuguesa e não apenas da religião) que foi no passado um importante vector da expansão portuguesa e seria no futuro, presumivelmente, a via para o Quinto Império. A cultura é, afinal, o único remanescente da colonização que não é efémero...

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Brasão inclui 19 poemas, muitos dos quais verdadeiramente extraordinários. Todos valem a pena ler! Eis alguns dos meus favoritos, com links directos para as respectivas páginas, bem como uma selecção de grandes versos e frases escolhidas que ofereço à vossa atenção:
"O dos Castelos" é um dos melhores poemas do conjunto. É nele que o poeta diz que A Europa fita com olhar esfíngico e fatal o Ocidente- o rosto com que fita é Portugal!
De "O das Quinas" (lembre-se que o nome refere O Campo das Quinas no brasão português) pode não se gostar à primeira, mas aconselho a leitura até se mudar de opinião. É nele que Pessoa escreve: Os Deuses vendem quando dão: compra-se a glória com desgraça. e também o verso maravilhoso: Foi com desgraça e com vileza que Deus ao Cristo definiu: assim o opôs à natureza, e Filho o ungiu.
Em "Ulisses" escreve Pessoa uma frase famosa: O mito é o nada que é tudo.
"D.Tareja" tem uma singular beleza. É neste poema que se encontra o verso: As nações todas são mistérios, cada uma é todo o mundo a sós. Ó mãe de reis e avó de impérios, vela por nós!
"D.Dinis" é uma sucessão de grandes versos (tantos que para os citar necessitaria uma transcrição integral do poema!) sugerindo imagens dos pinhais plantados pelo rei-lavrador e da sua contrapartida futura nas caravelas da Descoberta.
Em "D.João, O Primeiro" diz Pessoa: O homem e a Hora são um só quando Deus faz e a História é feita.
"D.Fernando, Infante de Portugal" (também conhecido como "Gládio") é, para mim, o melhor poema de Brasão e um dos melhores de Mensagem. IMPERDÍVEL!!
Finalmente em "O Infante D.Henrique" Pessoa precisa apenas de cinco versos para demonstrar, quase com desdém, a sua extraordinária craveira.

Pode-se ver na visão de Mensagem uma estranha beleza, bem como uma inegável grandiosidade. Mas não pode ser ocultado que essa visão é também decadente já que, ao dizer que o futuro nos está traçado em grandeza, desincentiva o esforço que poderia levar a essa meta. Não se trata do tradicional efeito de uma "self-fulfilling prophecy" (que pode realmente ter ocorrido no caso das Trovas do Bandarra em relação à Restauração) mas de um convite à inacção porque nos bastaria esperar pelos Tempos e ter fé no Destino! Mas este meu ensaio é sobre beleza e não sobre decadência, por isso passemos a examinar as grandes linhas do Poema.

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As duas primeiras partes de Mensagem percorrem a história de Portugal através de personalidades (quer heróis, quer pessoas-chave que, mesmo sem saber, tiveram consequência no futuro do País, quer ainda e até alguns anti-heróis), mitos e sinopses históricas. A Primeira Parte, chamada Brasão, propõe um extraordinário tour-de-force ao percorrer os campos, peças e figuras de um brasão real do tipo do utilizado por D.Joao II associando, a cada, um traço marcante ou uma personalidade relevante da nossa história. A Segunda, chamada Mar Português, aborda a Idade das Descobertas que foi a época individualizante da história portuguesa. No penúltimo poema do ciclo (A Última Nau) a época de ouro é encerrada com o desaparecimento de D.Sebastião e o poeta como que desperta de um sonho transportando subitamente o leitor à sua actualidade e confiando-lhe os seus pensamentos. Mas esses pensamentos são uma janela para um futuro em que O Desejado regressa para retomar o caminho interrompido para o Império Universal. No último poema (Prece) Pessoa invoca a intercessão de Deus para reacender a Alma Lusitana para que de novo "conquiste a Distância".
A Terceira Parte de Mensagem, O Encoberto, é quase inesperada e totalmente extraordinária: Fernando Pessoa retoma o tema só indiciado em "A Última Nau" e precisa o que entende pela "Distância" que haveremos de conquistar. Trata-se do advento do Quinto Império do Mundo, um império de cultura, paz e harmonia entre os povos que será liderado por um português- O Encoberto, O Desejado, o Rei ou D.Sebastião, como é indistintamente chamado. Nesta Parte vai intercruzar profecias, mitos antigos, símbolos de vária origem, e factos históricos sempre orientado por três vectores básicos: Portugal que dorme e que tem que despertar; o Quinto Império que há-de seguramente ser estabelecido mas que depende desse despertar; e O Desejado que realizará a visão do poeta.
Apesar de publicado numa época em que uma revisão ortográfica tinha já imposto um padrão muito semelhante ao que ainda hoje utilizamos, Fernando Pessoa optou por utilizar em Mensagem uma ortografia arcaica. Por isso, essa ortografia é parte do Poema ( e, de facto, está-lhe de tal maneira associada que choca ler "Mar Português" em vez do clássico "Mar Portuguez") e nos textos que transcrevi optei pela fidelidade à intenção do poeta, utilizando a ortografia em que ele quis que Mensagem fosse lido.
Antes de passar à apresentação detalhada de cada parte de Mensagem, deixo-vos com um pensamento: sugere a lógica e comprova a história recente que uma agregação pacífica de estados baseada no entendimento terá necessariamente que advir dentro de alguns séculos, quando a tecnologia tal como a conhecemos já for irrelevante, a menos que a Humanidade sofra um retrocesso. Os grandes passos em frente são em geral fruto da influência de alguém extraordinário, com uma visão revolucionária e a capacidade de a levar à prática. Dentro de alguns séculos, quem sabe, talvez o encoberto se descubra e seja mesmo português (ou portuguesa). Afinal, como diz Pessoa, "Deus guarda o corpo e a forma do futuro"!

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terça-feira, 11 de novembro de 2008

As rosas, poema de Ricardo Reis

As Rosas amo dos jardins de Adónis, (hipérbato)
Essas volucres amo, Lídia, rosas, (hipérbato)
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.

A luz para elas é eterna, porque (transporte)
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.

2ª parte – Mais apelativo - sugere a Lídia que faça qualquer coisa

Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente (hipérbato)
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

Vocabulário útil:
Volucres – efémeras, que morrem cedo
Inscientes – que desconhecem, não sabem
Jardim de Adónis – diz a mitologia que as rosas do jardim de Adónis não duravam mais que um dia e como nasciam e cresciam com o dia, o dia era a única realidade que conheciam.

Tema: o poeta incita Lídia a viverem juntos como as rosas de Adónis, porque a vida é breve tal como a das rosas. O “pouco que duramos” revela de novo a brevidade da vida, e assim sendo é preferível ter tudo num só dia, viver intensamente um só dia, mas vivê-lo como se ignorássemos que a vida dura um pouco mais.
Nesta ode há inversão na ordem natural das palavras. Colocando alguma ordem no pensamento teríamos:

Lídia, eu amo as rosas volucres dos jardins de Adónis, que no mesmo dia em que nascem também morrem. (1ª estrofe)
A luz para elas é eterna porque quando nascem já o sol nasceu e quando morrem o sol ainda não morreu (2º estrofe)
Façamos o mesmo da nossa vida, Lídia, inscientes como as rosas que duram só um dia, porque a vida é breve (3ª estrofe)

Importante o binómio vida/morte e dia/noite
A vida para as rosas é o dia, a morte a noite
Para o ser humano a vida é o conhecimento (dia) e o não conhecimento (noite)

Prefiro Rosas.... Ricardo Reis

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre

Se cada ano com a primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam

E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

"Prefiro rosas, meu amor, à pátria, / E antes magnólias amo / Que a glória e a virtude." - Reis demite-se da vida, e prefere as flores à realidade. Não é em vão que Reis clama pelas rosas ao iniciar este poema. As rosas, para os Gregos representam um ideal estético por excelência e opõe-se eficazmente à realidade crua e dolorosa da vida imposta. Estas flores, sobretudo as rosas, são um símbolo da contraposição entre o ideal estético nobre do poeta face à obrigação de viver. Efémeras e belas, as flores não prolongam a dor. Reis prefere as rosas (símbolo do amor), mas ama as magnólias (símbolo da nobreza).
"Logo que a vida me não canse, deixo / Que a vida por mim passe / Logo que eu fique o mesmo." - Marcada indiferença pela vida, um leit motif de Reis ao longo de todas as suas odes. A vida ao passar, deixa-o na margem do rio, do mesmo rio onde ele se senta com Lídia, apenas a observar. Ser alheio, ser estrangeiro é a forma de Reis se proteger da dor, mesmo que assim tenha de se proteger da vida. De notar também aqui os traços clássicos ("Logo que a vida" e "Que a vida").
"Que importa àquele a quem já nada importa / Que um perca e outro vença, /
Se a aurora raia sempre," - o ritmo morto do poema sugere isto mesmo, que Reis está indiferente à vida, às tribulações e movimento, em favor de um "quietismo" assustador, mas ao mesmo tempo mágico e infinito. Para além do homem e das suas preocupações, afinal está o destino e a natureza. Tudo se move e acontece mesmo sem as nossas acções e o egoísmo (de quem vence ou perde) dilui-se no momento.
"Se cada ano com a primavera / As folhas aparecem / E com o Outono cessam?" - eis o reforço do que dizíamos antes. Os ritmos incessantes da natureza. Da primavera (símbolo da renovação) e do Outono (símbolo da negatividade e do fluir do tempo).
"E o resto, as outras coisas que os humanos / Acrescentam à vida, /
Que me aumentam na alma?" - o que os homens acrescentam à vida opõe-se ao que é natural, às flores de gosto clássico. O passar pela vida sem a modificar opõe-se também à mudança, ao que os homens acrescentam à vida.
A interrogação retórica de Reis fica no ar e leva-nos de novo à pátria (em minúsculas, diminuída), à glória e à virtude - "as outras coisas".
"Nada, salvo o desejo de indiferença / E a confiança mole / Na hora fugitiva." - Responde Reis à sua própria interrogação. As coisas da vida trazem-lhe apenas indiferença. Reis espera apenas pela "hora fugitiva", pelo passar do tempo, e fica sereno, sempre igual.
Veja-se agora como é curioso todo o poema. Reis dirige-se a alguém (ao seu amor), mas fala como a um confidente, de maneira calma e solitária. Como se quem o ouvisse não existisse, senão na sua concepção ideal. Até a maneira como o vocativo está intercalado no verso 1 é clássica, fria, formal. Reis fala, mas é como se falasse consigo mesmo, não conseguindo quebrar a barreira que o impede de se encarar o exterior. Esta contemplação, sinal do seu epicurismo, não permite comunicação sincera, nem laços emocionais.
Estilisticamente o poema é constituído por 6 estrofes isomórficas, com um verso decassilábico e dois hexassílabos cada. Os versos são brancos, sem rima, uma marca também de Reis, que lhe advém da influência Horaciana."

"O poema "Prefiro rosas..." de Ricardo Reis, como outros deste heterónimo de Fernando Pessoa, é marcado por temas fortes e constantes da sua obra. Nomeadamente observamos, quase de imediato, a atitude expectante perante a vida, a resignação e a nobreza de espectador perante a realidade que se desenrola perante os seus olhos.
Heterónimo clássico por definição, Reis tem de Pessoa toda a sua disciplina mental, incorporando quase em ícone um classicismo perfeito, quer na forma quer no conteúdo dos seus poemas. Terá surgido a Pessoa como contraposição ao futurismo, representando em teoria uma perfeita imagem do passado no presente - um verdadeiro poeta neoclássico.
Por ser clássico Reis traz uma atitude contemplativa da vida, mas que já não é ingénua como a de Caeiro. Reis é um homem perturbado e a sua aceitação, a sua ataraxia é uma aceitação muito menos pacífica. Por isso podemos dizer que Reis vê na sua atitude perante a vida uma decisão nobre e não apenas uma inevitabilidade, embora esta última perspectiva seja também essencial para o compreender.
Reis sabe que é diferente da Natureza e está revoltado com isso, em vez de, como Caeiro, procurar a proximidade com as coisas. Afasta-se para dentro e encontra nesse afastamento a razão de viver. Austero e contido, ele é - usando palavras de Jacinto do Prado Coelho - civilizado, na beleza do artifício e na prática constante e perfeccionista da Ode.
Esta indiferença, aceitação da vida, recusa do esforço ou do compromisso - tudo isto se encontra nesta Ode.