“Eu que sou feio, sólido, leal(...)/eu que sou hábil, prático, viril(...)/cismático, doente, azedo, apoquentado(...) / eu que não cedo às atracções do gozo(...) /e que abafo uns desesperos mudos(...) / sem custo hei-de deixar as mágoas deste mundo”
Há exactamente 154 anos, no dia 25 de Fevereiro, nascia em Lisboa José Joaquim Cesário Verde, o poeta de quem Alberto Caeiro dizia: “Ele era um camponês/que andava preso em liberdade pela cidade”, a cidade de Lisboa que ele poetizou fazendo parecer que “cada rua é um canal de uma Veneza de tédios”, no dizer de Álvaro de Campos.
Na realidade, Cesário Verde vê a Lisboa do século XIX de uma forma absolutamente realista e fornece-nos “fotografias verbais” que nos transportam para espaços de sofrimento relacionados com a humilhação, o sofrimento, a morte, a doença, produzidos sobretudo pela industrialização da cidade que a desumaniza constantemente, provocando tudo isto no homem um imenso tédio e desejo de evasão. Embora seja o grande poeta da cidade, Cesário opõe-lhe constantemente uma visão saudável, honesta e perfeita que é transmitida pelo campo que ele tão bem conhecia. Lisboa é o local onde o “povo folga, estúpido e grisalho”, o “populacho diverte-se na lama” e onde “à crua luz os pálidos barbeiros com óleos e maneiras femininas” co-habitam com as vizinhas que palram nas janelas enquanto ao fundo surgem vindos das minas os carvoeiros, os calafates voltam “de jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos”, os mestres-carpinteiros saltam de viva em viga e as varinas “hercúleas, galhofeiras (...) embalam nas canastras /os filhos que depois naufragam nas tormentas”. Uma cidade povoada de “lúbricas pessoas, velhas de bandós, caixeiros, cauteleiros roucos, tristes bebedores, dúbios caminhantes, imorais, rapagões morosos, duros baços, homens de carga, burguesinhas do catolicismo, mas também uma pobre engomadeira “pobre esqueleto branco”, “sem peito, os dois pulmões doentes e uma pequenina vendedeira de hortaliças “esguedelhada, feia, magra, enfezadita, mas pitoresca e audaz. O poeta tudo pinta com letras, relembra os coxos, os surdos, os manetas que sulcam as calçadas com as suas muletas. É este o poeta que conclui, numa breve síntese que “O mundo é velha cena ensanguentada,/ coberta de remendos, picaresca; /a vida é chula farsa assobiada /ou selvagem tragédia romanesca”.
Na realidade a sua vida foi uma verdadeira tragédia romanesca. Viveu apenas 31 anos que foram suficientes para numa única obra nos dar uma imagem da própria vida, nas suas oposições e nos seus contrastes, nas suas humilhações e desesperos.
Cesário, o pintor com palavras
Pintor nascido poeta, Cesário Verde é um daqueles artistas para quem o mundo externo conta de modo primacial , e as suas emoções poéticas só atingem plena expressão quando preliminarmente aquecidas pela visão pictórica. Não se confunda, todavia este sentido pictórico, como valor de motivação poética, com certa atracção do descritivo, essa muito mais vulgar em poetas portugueses... Um colorista e um selectivo: eis duas primeiras conclusões a que chegará, sem dúvida, quem reflicta um pouco sobre a obra de Cesário. Na sua visão pictórica, o elemento cor é fundamental e porventura o mais fecundo. Por isso nos seus versos, a cor não qualifica, antes se destaca e se impõe como valor substantivo, que requer, por seu turno,adjectivação particular. Outras vezes, a cor, agindo como intermediária na metáfora, transporta de um termo de comparação para o outro as virtualidades apenas características de um deles: “ E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas”. Trata-se, no fim de contas, de um curioso caso de hipálage(...) Por outro lado, fácil será reconhecer que os seus melhores poemas- ou os melhores trechos dos seus poemas- propõem sempre quadros já delimitados, em que parece ter havido uma selecção prévia e rigorosa. Não encontraremos, nos seus versos, nem a enumeração, tão vulgar em António Nobre, nem as aglomerações, tão frequentes em Junqueiro. A poesia de Cesário, por ser essencialmente pictórica, nutre-se de imediatez: as “telas da memória retocadas” perdem, com o retoque, a graça e a naturalidade- ou o vigor e o dramatismo- dos quadros pintados sobre modelos relativamente próximos. (David Mourão-Ferreira).
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